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A dinâmica das profissões e o “saber” digital…

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Nelson Faria

A nossa era vê a ascensão de um paradoxo perigoso, a desvalorização sistemática do saber especializado, meticuloso e fundamentado, em favor da deturpação, da desinformação e do culto da opinião imediata. A desvalorização do saber estruturado em favor da retórica fácil, da deturpação e das fake news”.

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A história da humanidade é, também, a história do seu trabalho. Profissões nascem, adaptam-se, transformam-se e, por vezes, desaparecem, tal como as espécies no grande teatro da evolução. A roda, a imprensa, a máquina a vapor, a linha de montagem, toda a revolução tecnológica redefiniu o mapa do emprego, extinguindo funções e criando novas, exigindo dos indivíduos a capacidade de adaptação que Darwin identificou como essência da sobrevivência. Hoje, assistimos a um novo capítulo, acelerado pela Internet, pelas redes sociais e pela inteligência artificial. É natural e esperado que editores de texto deem lugar a algoritmos de processamento de linguagem, que algumas funções administrativas se dissolvam em automação, e que surjam especialistas em cibersegurança, cientistas de dados ou gestores de comunidade digital.

Todavia, esta transição técnica traz consigo uma inquietante metamorfose cultural. Se outrora a mudança profissional estava ligada principalmente a ferramentas e processos, hoje atinge o próprio alicerce sobre o qual construímos a realidade coletiva, sobre a informação e o conhecimento. A nossa era vê a ascensão de um paradoxo perigoso, a desvalorização sistemática do saber especializado, meticuloso e fundamentado, em favor da deturpação, da desinformação e do culto da opinião imediata. A desvalorização do saber estruturado em favor da retórica fácil, da deturpação e das “fake news”. Enquanto antes a autoridade de um conhecimento dependia de formação, método e verificação, hoje o ruído digital pode amplificar vozes pouco informadas até torná-las influentes. O fenómeno dos influencers mostra que notoriedade e audiência nem sempre se baseiam em conhecimento sólido. Quando a popularidade substitui a credibilidade, correntes inteiras de opinião podem deslocar saberes estabelecidos e comprometer decisões coletivas.

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Neste efeito paradoxal, a internet democratiza o acesso à palavra, o que é positivo e, ao mesmo tempo, facilita que qualquer cidadão, num comentário, se apresente como sociólogo, jurista, jornalista, psicólogo, entre outras especialidades. Essa “inflação de especialistas” é a expressão máxima da liberdade de expressão em fluxo contínuo que tem beleza e utilidade, mas, também gera caos quando a substância do discurso é duvidosa. Num ambiente onde a verdade pode ficar soterrada por um volume avassalador de perceções, likes e visualizações, a simples existência de muitas vozes não garante melhor conhecimento, sendo que muitas vezes garante apenas mais ruído.

Perante este cenário, as tradicionais “três peneiras” da verdade, da bondade e da utilidade, muitas vezes não chegam. Precisamos de filtros adicionais e mais sofisticados alicerçados no espírito crítico capaz de avaliar fontes e argumentos, na humildade intelectual para reconhecer a própria ignorância, na literacia informática e mediática para identificar manipulações e pluralidade de fontes para reconstruir um quadro fiável dos factos. Esses instrumentos não restringem a liberdade de expressão, pelo contrário, antes a protegem contra a sua própria fragilidade quando mal informada.

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Além do mais, há que distinguir com clareza entre reprovar práticas e condenar pessoas. Não há nada de intrinsecamente errado em alguém ganhar a vida, e até alcançar prestígio, utilizando a internet, redes sociais, com uma câmara ou um telemóvel. O problema está quando a remuneração e a notoriedade se tornam substitutos do rigor e quando audiências consideráveis legitimam opiniões, conselhos técnicos ou científicos sem base. A convivência saudável entre novos ofícios digitais e saberes tradicionais exige reconhecimento mútuo, pois, a inovação merece espaço e o conhecimento sustentado merece respeito.

O futuro é incerto, não sabemos todas as consequências que esta dinâmica irá trazer, mas, o imediato convida à vigilância e à ação pedagógica. Investir em educação crítica, promover práticas jornalísticas responsáveis, regulamentar plataformas quando necessário e valorizar carreiras do conhecimento são medidas que ajudam a preservar o saber coletivo. Na minha perspetiva, assim poderemos evitar que a pós-verdade, uma ordem onde predominam suposições, opiniões e convicções pessoais em detrimento de factos verificáveis, se torne o modo dominante de entender o mundo.

No longo prazo, porém, a própria sociedade poderá desenvolver os seus anticorpos. A adaptação darwiniana de que referi pode não ser apenas técnica, mas também cívica e cognitiva. Sobreviver e prosperar neste novo mundo exigirá mais do que aprender a programar, exigirá aprender a pensar, a discernir e a valorizar, novamente, a profundidade sobre o ruído. O desafio, então, não é travar a dinâmica das profissões ou a liberdade de expressão, mas forjar, no meio do caos criativo das redes, um renovado e resiliente compromisso com a verdade.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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