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Elsie Lopes, médica cabo-verdiana em Portugal: “As medidas preventivas deveriam ter sido tomadas muito mais cedo”

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Elsie Lopes, médica cabo-verdiana do Centro Hospitalar de Leira, entende que, além de trazer “medo e desolação”, a pandemia do Covid-19 despertou o que há de melhor no ser humano: a solidariedade. Nesta entrevista exclusiva ao Mindelinsite, esta profissional residente em Portugal realça que a ansiedade e a depressão são uma dura realidade tanto para os profissionais de saúde como para a população. Para ela, o mundo vive o maior recolher obrigatório da sua história e diz entender a dificuldade das pessoas em interiorizar a catástrofe lançada sobre a humanidade pelo vírus. A médica revela ainda que tem estado a usar as redes sociais com moderação, apoiando as suas mensagens em fontes credíveis, e garante que se sentiria uma privilegiada se fosse convidada a ajudar Cabo Verde neste combate à Covid-19.

Por: João A. do Rosário

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Mindel Insite – Pelas informações de que dispõe sobre o novo coronavírus, o que nos pode reportar das medidas já tomadas em Cabo Verde e como é que as considera?

Elsie Lopes – A declaração de pandemia pela OMS ocorreu a 11 de Março deste ano de 2020. Por si já faz uma caracterização ou descrição da situação de ameaça representada por esse vírus. O Presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, esteve a aguardar autorização da Assembleia Nacional para declarar estado de emergência no país, enquanto se registou o primeiro caso de transmissão local. O estado de emergência foi anunciado no sábado dia 28 de Março. O país fechou a fronteira para voos internacionais e impôs várias restrições para impedir o alastramento da pandemia pelo arquipélago. O estado de emergência tem consequências para os cidadãos pelo que se compreende alguma demora. Deve haver prudência e equilíbrio pois as pessoas podem passar necessidades e os estados de pobreza podem agravar.

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No entanto, medidas preventivas – por exemplo usar máscara, distanciamento social, etiqueta respiratória, a higienização das mãos, controlo de circulação de pessoas – possivelmente deveriam ter sido tomadas muito mais cedo. Mas também não é fácil impor tantas regras de uma só vez a uma população que possivelmente não percebe o que se está a passar verdadeiramente. Quando as pessoas têm noção do perigo, elas tomam suas próprias iniciativas para se resguardarem a si e aos entes mais queridos. Há pessoas mais proactivas, outras menos. Há aquelas muito otimistas que acham que nada de mal lhes vai acontecer. As pessoas não acatam as ordens se não perceberem o porquê de as executar. Cabe ao Governo informar, ganhar a confiança do povo para que tenha sucesso a implementar as medidas. Se o povo achar que estão a mentir ou a omitir vão se revoltar e não cumprem. Por outro lado, informação a mais pode não ser produtiva. Pode levar ao pânico. É uma situação difícil de gerir. Neste momento, todas as medidas estão a ser tomadas, nomeadamente para conter a circulação de pessoas que têm de ter uma autorização do Ministério da Administração Interna.

MI – Com certeza tem a noção de que grande parte das pessoas e países terá desvalorizado a situação da epidemia, agora pandemia do Covid-19. O que pensa sobre esta situação?

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EL – É natural que as pessoas demorem a interiorizar uma informação tão catastrófica. Os peritos também demoraram a aceitar, a divulgar e a tomar medidas. Imagine a população em geral. No início até se pensou tratar-se de uma brincadeira. Que não era importante. Uma fake news. Mas, com o passar dos dias deu-se conta do que realmente se estava a passar. No entanto, há ainda pessoas que não estão sensibilizadas para a realidade da situação. Continuam a sair de casa para passear como se estivessem de férias. Não perceberam que devem sair só em caso de extrema necessidade. E, saindo, deverão cumprir com as medidas de prevenção: usar máscara, distanciamento social, etiqueta respiratória, a higienização das mãos…

MI – Os cabo-verdianos demoram às vezes em perceber alguns alertas de saúde e em relação a este do Covid-19 algumas pessoas terão brincado um pouco com isto. Como interpreta esta questão e qual é o aconselhamento a este respeito?

EL – Não é o cabo-verdiano. É a humanidade. Numa altura de grande incerteza e medo, o humor pode e deve ser uma das formas de se encarar o surto de COVID-19, sem alarmismos. Muitos foram os que, recorrendo às redes sociais, partilharam a forma como estavam a sentir o impacto do surto, adoptando uma abordagem divertida e otimista. Piadas, os memes, as canções e os poemas nos fazem rir. Rir ainda é o melhor remédio e ajuda a melhorar a imunidade.

MI – Como viu, então, o comportamento dos cabo-verdianos na sua área de residência em relação a esta doença?

EL – Os cabo-verdianos da minha área de residência, e que conheço, estão todos recolhidos e a cumprir com o que foi recomendado. Quando precisam, ligam-me a tirar dúvidas, passar receitas ou algum apoio moral. Aliás, através das redes sociais é possível chegar a qualquer parte do globo. E é o que acontece. Tenho tentado dar o meu apoio a qualquer pessoa que mo solicite. O que é um pouco desgastante também.

MI – Para vocês os profissionais de saúde que lidam diariamente com uma situação destas – de a qualquer hora também poderem infectar-se -, este perigo não poderá condicionar o vosso estado psicológico?

EL – Com certeza que afeta o emocional. Chegar a casa e não poder ter o contacto habitual com a família; não abraçar ou beijar os filhos quando saio ou entro em casa, ou quando me apetece… É duro para alguém como eu, cabo-verdiana, dada ao contacto físico. Ansiedade e depressão são uma potencial realidade, não só para os profissionais da saúde, mas também para qualquer indivíduo a atravessar esta situação de pandemia. Há que arranjar estratégias e apoios.

Esse risco nos profissionais da saúde é inerente à própria profissão tendo em atenção o trabalho de extrema exigência psicológica e física. Mas é necessário estarmos atentos uns aos outros, pois alguns profissionais sentem-se desmotivados e, por diversos motivos, não conseguem admitir que estão esgotados, talvez porque foram preparados para tratar e cuidar, não para desistir. É esperado encontrarmos o medo associado ao risco de infeção e de contagiar a sua família, esgotamento físico e emocional proveniente da sobrecarga de trabalho, de uma alimentação deficitária e da falta de sono regular, ansiedade, depressão…

Há uma frase muito difundida nas redes sociais que se aplica bem a esta necessidade: cuidar de quem cuida. No entanto, para que isto seja possível, é preciso aceitar que estas pessoas também precisam de ajuda. Aliás, parte desta ajuda tem sido dada pela própria população. Além do medo e desolação, a pandemia despertou o que há de melhor nos seres humanos: a solidariedade

Informação social credível      

MI – Tem estado muito ativa nas redes sociais com aconselhamentos à população. É este o seu objetivo, sensibilizar as pessoas?

EL – Sim. Com certeza que é esse o objetivo. Ajudar as pessoas a não baixarem a guarda. O uso das redes sociais deve, no entanto, ser com moderação e seguindo fontes credíveis. Pode ser uma espécie de “remédio” a informação social na era que estamos a viver. Não posso ir ver as pessoas, mas consigo chegar a algumas a partir das redes sociais. Milhões de pessoas em todo o planeta estão isoladas em casa e dezenas de países estão em estado de alerta por causa da pandemia, as redes sociais são locais privilegiados para se transmitir informação atual em tempo real.

MI – Se for chamada a ajudar o seu país de origem – numa situação de pandemia ou qualquer outra necessidade médica – como receberia o apelo? Estaria na disposição de dar o seu contributo?

EL – Uma chamada dessas far-me-ia sentir uma criatura privilegiada. E é claro que estaria disposta a contribuir. No entanto, devem ser constituídas equipas de peritos/especialistas (task-force) para dar resposta à epidemia. Os restantes médicos podem dar o seu contributo na sua área de conforto e saber, libertando os peritos/especialistas para que possam dar o seu contributo específico na área do COVID-19.

MI – Na qualidade de médica, gostaríamos que nos ajudasse a compreender o que é se passa neste momento no mundo,com o ataque, digamos assim, do novo coronavírus e que provoca a COVID-19.

Elsie Lopes – Antes de mais é necessário compreender o que é o coronavírus, porque é que estamos numa situação de pandemia e porque é que medidas tão drásticas foram tomadas para o seu controlo. O novo coronavírus, designado SARS-CoV-2, foi identificado pela primeira vez em dezembro de 2019 na China, na cidade de Wuhan. Este novo agente nunca tinha sido identificado anteriormente em seres humanos. SARS-CoV-2 é o nome do novo vírus e significa Severe Respiratory Acute Syndrome (Síndrome Respiratória Aguda Grave). Existe outro coronavírus que causa uma Síndrome Respiratória Aguda Grave, que foi identificado em 2002, este é chamado “SARS-CoV”, por isso o Novo Coronavírus é designado por “SARS-CoV-2”. COVID-19 (Coronavirus Disease) é o nome da doença e significa Doença por Coronavírus 2019, fazendo referência ao ano em que foi descoberta.

A COVID-19 transmite-se principalmente por contacto próximo com pessoas infetadas pelo vírus, pelo contacto com superfícies ou objetos contaminados. Assim, as principais vias de transmissão são de pessoa a pessoa, através de gotículas que se emitem, por exemplo, quando se tosse ou espirra, através do contacto de mãos contaminadas que, posteriormente, contactam os olhos, nariz ou a boca. As mãos contaminam-se facilmente em contacto com objetos ou superfícies por sua vez contaminados com gotículas de pessoa infetada. A saber, ainda, os contactos próximos podem ser de alto risco de exposição se estiverem em proximidade (até 2 metros) ou se ficarem em ambientes fechados durante 15 minutos e a menos de 2 metros com um doente com COVID-19. Estas pessoas devem ficar em vigilância ativa, ou seja, com acompanhamento diário de sintomas pela autoridade de saúde local, durante 14 dias desde a data da última exposição. 

MI – Então foi devido a sua rápida propagação e os seus efeitos devastadores é que obrigou a OMS a tomar medidas enérgicas?

EL – Certamente. A OMS declarou pandemia de coronavírus e estamos a vivenciar o maior recolher obrigatório do Mundo. Na prática, o termo pandemia refere-se ao momento em que uma doença já está espalhada por diversos continentes com transmissão sustentada entre as pessoas. O número de pacientes infetados, de mortes e de países atingidos cresceu a um ritmo acelerado, devido ao elevado grau de contágio e disseminação do novo coronavírus. Cada pessoa infetada poderá passar o vírus a uma média de 5-6 indivíduos.

MI – Neste momento, as medidas de prevenção ficam bastante limitadas abrangendo apenas os habituais cuidados que devemos ter e de que já conhecemos?

EL – Enquanto não houver imunidade ou uma vacina, as medidas de distanciamento social terão de continuar em vigor durante muito tempo. O distanciamento abranda a propagação da doença e ajuda a proteger recursos essenciais para as pessoas mais doentes. A contagem global ultrapassou a barreira dos 100 mil mortos desde que apareceu na China em dezembro de 2019.

Percurso

A médica Elsie Helga Lopes  é Assistente Hospitalar de Cirurgia Geral. Desempenha atualmente as funções de Assistente Eventual de Cirurgia Geral no Centro Hospitalar de Leiria desde 21 de Novembro de 2011. Concluiu o Ensino Secundário em 1988 no Liceu Ludgero Lima, na cidade do Mindelo. Licenciou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1998. Foi médica eventual de 1 de Agosto a 31 de Dezembro de 2000 no Serviço de Neurocirurgia do Centro Hospitalar de Coimbra.

Internato Complementar de Cirurgia Geral (2001-2008), Assistente Eventual de Cirurgia Geral no Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E., até 14 de Dezembro de 2008, Assistente Eventual de Cirurgia Geral no Hospital do Litoral Alentejano, de 15 de Dez 2008 a 28 de Fevereiro de 2009. Assistente de Cirurgia Geral no Hospital Distrital de Pombal, a partir de 01 Março de 2008 a 20 de Novembro de 2011. É Assistente Eventual de Cirurgia Geral no Centro Hospitalar Leiria, desde 2 de Novembro de 2011.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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3 Comentários

  1. Excelente entrevista, não poderiam ter escolhido melhor pessoa!
    Como médica e pessoa, é do melhor que se pode encontrar.
    Sempre disponível para ajudar o próximo e com conselhos muito elucidativos!
    Proud of you, Elsie Lopes!

  2. Excelente entrevista e excelente profissional e de uma personalidade Vincada de princípios nobres do ajudar as pessoas ! Parabéns colega Elsie e boa continuação . Bom trabalho e take care . Igualmente desejo que todos cumprem severamente para mais cedo do que se espera se possa cantar alguma Vitória de todos para todos! Bjinhos

  3. Muito boa entrevista. Parabéns João do Rosário. A médica está fazendo um bom trabalho. Vamos cuidar de quem cuida.

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