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Tanhuca: “Apanhei muito, mas nunca deixei de jogar futebol”

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Neste dia da Mulher Cabo-verdiana, 27 de Março, Mindelinsite faz o retrato de uma mulher guerreira que conseguiu singrar no mundo masculino. Antónia Micaela do Rosário, mais conhecida por Tanhuca, sofreu muito preconceito por causa do futebol. Apanhou muito da mãe e era mal vista por outras pessoas, mas pôde realizar o seu sonho de ser das primeiras jogadoras de São Vicente. Hoje, com 63 anos, já pendurou as chuteiras, mas não perde um jogo da sua equipa, o Mindelense, seja feminino ou masculino, e nem do Benfica na televisão. “Amo o desporto, mas o futebol sempre foi e continua a ser o meu favorito”,  afirma. 

Começou a jogar futebol aos oito anos. A mãe ía trabalhar e ficava aos cuidados dos dois irmãos mais velhos, que a levavam para os campos pelados de São Vicente. De início ficava atrás das balizas e apanhava as bolas que saiam para fora das quatro linhas. Depois começou a dar alguns passes. “Acho que nasci com este dom para jogar futebol. Tinha muitos brinquedos porque o meu pai trabalhava na Shell e me trazia e também outras pessoas me ofereciam. Mas não me despertavam atenção. Nunca tive prazer em brincar com bonecas, saltar cordas e outros. Aliás, sequer sei jogar rinque, que era um jogo que as meninas da Bela Vista, minhas colegas, praticavam muito”, conta Tanhuca. 

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Aos sete anos, já disputava a bola no meio dos rapazes, o que era proibido. Não ficava bem uma menina jogar bola entre garotos. Sempre que a mãe regressava do trabalho os vizinhos iam fazer queixa e apanhava, sobretudo quando chegava com os vestidos rasgados e os dedos quebrados, mas não desistia. “Com dez anos já saia para catar meias para fazer as minhas bolas para jogar balizinha e golo-a-golo. Jogava com os rapazes porque não havia meninas no futebol nesta altura. Era conhecida entre as colegas da minha mãe por ‘Maria matchinha’. As pessoas paravam para me ver jogar entre os rapazes.”

Apesar do preconceito, Tanhuca nunca desistiu. Ao contrário, ficava cada dia mais determinada. Acabou mesmo por montar a sua equipa porque nem sempre os garotos a deixavam jogar por ser “melhor”. Ficou mais livres porque ia participar de torneios em todos os bairros do Mindelo. Tinham o seu equipamento, oferecido por um rapaz de nome Armando de Nha Chica Pom. “Quando íamos participar nos jogos, sempre aparecia alguém a dizer que meninas não podiam jogar. Então respondia que ia retirar o meu time e logo liberavam. Jogávamos em campos de terra batida e eu adorava, apesar dos dedos quebrados. Campo relvado é limpo, mas tcham t’sossegod que nhe comp terra”, confessa.  

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Volvidos alguns anos, surgiu uma outra menina que jogava futebol, Xia de Ribeira Bote/Ilha de Madeira. Tanhuca conta que Xia jogava bem, mas ela era mais ágil por ser franzina. “As pessoas pagavam cinco escudos para ver eu e Xia a jogarmos balizinha na Ilha de Madeira. Conseguia ganhar quase sempre porque tinha muita técnica e era muito rápida. Nas bolas de corrida ela ficava sempre para trás”. 

Equipas femininas 

Nesta altura, conta, começaram a aparecer as primeiras equipas de futebol feminino: Ribeira Bote, Monte e Bela Vista. Mais tarde, surgiu Chã de Alecrim e Mindelense, onde encontrou a Cely Freitas, Nhuk, Nancy, Helena de Bela Vista, Lourdes, Regina, de entre outras. Era uma equipa forte e ganhava quase todos os jogos e torneios. “Hoje digo que sofri muito preconceito, mas tenho boas lembranças. Fico satisfeita por saber que abri o caminho para muitas jogadoras de futebol, mas não gosto de avaliar o potencial de cada um. Deixo para outras pessoas avaliarem.”

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Aos 18 anos, revela, teve o seu primeiro filho. E quando completou 26 anos já tinha cinco rebentos. Mesmo assim, nunca parou de jogar futebol. “Fazia uma pequena pausa, mas retornava logo que possível. Felizmente, tive muito apoio da minha mãe, sobretudo durante a criação dos meus filhos. Aliás, só fiz uma pausa, por um período de um ano, depois que ela faleceu. Minha mãe era meu alicerce.”

O companheiro teve de aceitar a sua decisão porque, afirma, quando conheceram já era uma futebolista e, se tivesse de escolher, o futebol ganharia. E, 40 anos depois, os dois continuam juntos e felizes. “Pendurei as chuteiras somente depois dos 50 anos. Mas ainda posso treinar e onde o Mindelense for jogar, lá vou eu. Gosto de estar com as atletas porque somos uma família. Vesti a camisola encarnada por mais de 20 anos”, diz, lembrando que iniciaram como EPIF, uma equipa montada por José Maria “Djedje” Ramos, um dos grandes incentivadores do desporto em Cabo Verde. 

Não obstante os longos anos dedicados ao futebol, Tanhuca garante que ganhou apenas amizade, conhecimentos e admiração das pessoas que gostavam de a ver jogar nos vários campos de São Vicente e também em algumas deslocações nas ilhas para participar de torneios, sendo que a sua viagem mais distante foi para Itália onde disputou uma prova organizada pela comunidade cabo-verdiana, em 2009. “Ganhei tudo o que havia para ganhar com o Mindelense, excepto o nacional de futebol feminino e isto porque, como se sabe, no futebol existe muita injustiça. Por diversas vezes formos afastados do título por manobras fora do campo”, desabafa esta veterana, que admite uma grande evolução no futebol feminino que se joga hoje.

Herança

Satisfeita, comemora o facto de ter passado o gosto pelo futebol aos filhos, inclusive o mais pequeno é neste momento federado. “Comecei a levar os meus filhos para o campo desde muito cedo. Minha mãe não gostava, mas levava escondido. E nunca impedi nenhum de jogar porque sei as dificuldades por que passei. Nunca faria o mesmo aos meus filhos. Apanhei muito, sobretudo quando chegava em casa com os meus vestidos rasgados. Por isso, passei a vestir os calções dos meus irmãos e, até hoje, só uso calças, fatos de treino ou shorts. Deixei de usar vestidos aos 10 anos.”

Com uma vida rica e bem vivida, o único concelho de Tanhuca é para as mulheres perseguirem os seus sonhos, independente das dificuldades, e não se deixarem influenciar por pessoas com discursos moralistas e preconceituosos. “Nunca baixei a cabeça, também nunca levei um soco de homem. Um companheiro, namorado ou marido tem de respeitar e tratar uma mulher como um igual. A mulher não pode rebaixar porque é esposa ou mãe. A mulher deve e pode fazer as suas escolhas.”  

Aposentada e sendo “sustentada” pelos filhos, Tanhuca é uma mulher feliz e realizada. Exibe com orgulho as seis netas, dois netos e 1 bisneto de um mês. Garante que não tem inimigos e sempre teve boas relações com os vizinhos. Diz não ter saudades da vida porque viveu intensamente. Frequentou muitas festas, mas não é adepta de bebidas alcoólicas, também nunca fumou na vida. “Sou viva desporto e viva saúde, adepta do Mindelense e do Benfica, associada da OMCV, jurei Milícia e tenho cartão do Espaço Democrático, criado por Onésimo Silveira.”

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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