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Ilibado de falsificação de documentos, Platiny sonha regressar aos relvados: “Fui abandonado, dormi na rua, comi restos de comida e pensei em cometer suicídio”

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Ilibado em Portugal do crime de falsificação de documentos, o futebolista cabo-verdiano Platiny está a tentar recolocar a vida nos trilhos após passar sete anos com um processo judicial às costas que o atirou literalmente para a sarjeta. Durante este tempo rescindiu o contrato com o clube Gil Vicente, ficou indocumentado, dormiu na rua, comeu restos de comida, não conseguiu trabalho e pensou por diversas vezes cometer suicídio. Conquistada essa vitória na justiça portuguesa, Platiny, 27 anos, aguarda ainda por uma sentença do Tribunal de S. Filipe (Fogo) para poder reaver os documentos oficiais e concretizar o seu grande sonho: voltar para os relvados e vestir a camisola da seleção de Cabo Verde. Sem os papéis, diz, é como se não existisse. Apesar disso, o jovem, que já aprendeu muito com a vida, afirma categoricamente que não irá atirar a toalha ao chão.

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Mindel Insite – Depois de 7 anos envolvido num processo de falsificação de documentos saiu o verídico que o absolveu do crime. Em primeiro lugar, como recebeu a decisão do tribunal?

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Platiny Alves – Eu já sabia que seria ilibado porque desde o início defendi a minha Inocência. Foi um processo muito longo que me obrigou a passar por dificuldades indiscritíveis. Mas eu consegui enfrentar todas as barreiras com a ajuda de Deus e de um advogado muito competente. Ele foi abordado por amigos e desde o primeiro instante senti-me seguro e confiei no seu trabalho. E isso ajudou-me bastante.

MI – Qual o impacto que o processo teve na sua carreira profissional enquanto futebolista?

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PA – O impacto foi muito mais amplo porque atingiu-me como ser humano, afectou profundamente a minha imagem social. Em termos profissionais bloqueou a minha carreira desportiva e o meu sonho. Aquilo que mais adoro é jogar futebol e tudo isso ficou suspenso, de repente.

MI – Foi obrigado a deixar o Gil Vicente, clube que ajudou a subir para a 1. divisão no campeonato português.

PA – Exacto, o Serviço de Emigração e Fronteiras encaminhou uma carta a dizer que eu não podia continuar a jogar como profissional e o clube entregou-me essa missiva. Disseram também que iriam rescindir o contrato comigo por justa causa. Mas fui apoiado pelo sindicato, que me aconselhou a rescindir por justa causa, e fiz isso. Até hoje, nunca mais joguei futebol.

MI – Como foi possível sobreviver estes anos em Portugal se não estava a trabalhar?

PA – É assim: passei algum tempo num apartamento do Gil Vicente, depois mandaram cortar a água e mais tarde as refeições. As dificuldades aumentaram ao ponto de passar a dormir na rua, a pedir restos de comida em casa alheia para matar a fome, pedir dinheiro a amigos para pagar a renda de um quarto… E até hoje peço aos meus amigos essa ajuda.

MI – Qual o apoio que obteve da Embaixada de Cabo Verde em Portugal?

PA – Durante os anos que o processo demorou tive que deslocar-me a Lisboa para procurar a Embaixada de Cabo Verde e pedir apoio. Um dia uma funcionária disse-me que o meu nome não constava do sistema e que ela não tinha tempo para ver o meu caso porque estava de saída para o almoço. Eu ficava a ir e a vir, muitas vezes com apenas uma garrafinha de água, um pacote de leite e um saco de bolacha na mochila. Não tinha dinheiro sequer para comer. Um dia encontrei uma familiar na Embaixada de Cabo Verde que ficou a par da minha situação. Essa pessoa deu-me 20 euros para comprar comida. Acontece que o pessoal da Embaixada sabia da minha situação, mas não serviu de muita coisa. Ainda assim tive que enviar documentos para Cabo Verde para ser efectuada a mudança do meu nome para o nome que o meu pai me deu, mas não fizeram isso até a data de hoje. Todas as pessoas que tinha ao meu redor e que considerava amigas, incluindo o agente que me trouxe para Portugal, me abandonaram. Viraram-me as costas e fui obrigado a viver de favores. Passei fome, comi restos de comida porque tenho de sobreviver.

MI – Afirma que foi abandonado por toda a gente, inclusivo o teu agente desportivo. Quem é que vos levou para Portugal?

PA – Foi o empresário João José Cardoso, mas não sei explicar porquê ele agiu assim porque nunca mais tivemos contacto. Ele abordou-me enquanto eu jogava pelo clube Vulcânicos, da ilha do Fogo. Mas, graças a ele, quero frisar isto, cheguei ao nível profissional e desejo-lhe a melhor sorte na vida. Ele abriu-me a porta na Europa e não vou ser ingrato. Pelo contrário, sou-lhe grato, mas, ao mesmo tempo, ele foi injusto comigo.

MIForam co-arguidos no processo e ambos foram ilibados pelo tribunal em Portugal…

PA – … é verdade.

MI – Durante todo o tempo que o processo estava a ser instruído como conseguiram preparar a vossa defesa?

PA – Quem preparou a minha defesa foi o meu advogado, o Dr. Sérgio Laranjeira, que tratou do meu caso desde que cheguei ao seu escritório. E ele continua comigo até a data de hoje. Ele trabalhou sempre para provar a minha inocência. Ele confiou na minha palavra e sempre mantive a minha versão da história. Foi uma versão consistente desde o primeiro dia em que fui ouvido pelo Serviço de Emigração e Fronteira porque se baseou na verdade. E nunca vou mudar de versão porque não sou mentiroso. A verdade é que me deram as costas e colocaram-me nesta situação que me levou a perder sete anos de carreira no futebol e da minha vida. Às vezes tento viver com normalidade, mas tem sido impossível. Sequer consigo dormir.

À beira do suicídio

MI – Chegou a dizer numa entrevista ao jornal Record que pensou em cometer suicídio. Confirma?

PA – Sim, isso passou-me pela mente várias vezes porque tiraram a minha felicidade, a minha alma e a minha paixão. Imagine alguém que estudou para ser médico, engenheiro, jornalista e aparece alguém que lhe tira tudo aquilo por que lutou durante anos e de forma injusta!? É isso que aconteceu comigo.

MI – Como os teus pais encararam esse caso?

PA – Até a data de hoje a minha família pergunta o motivo de tanta injustiça. O meu pai era deficiente visual e acabou por falecer. Mas ele ia quase todos os dias ao edifício do Cartório, onde fica o Tribunal da cidade de S. Filipe, para ajudar a resolver o meu caso. Levava-lhes provas da minha inocência, assim como a minha mãe, a minha avó, o meu padrinho, enfim, todos fizeram de tudo para esclarecer esse caso. Foram inclusivamente ouvidos por videoconferência pelo Tribunal de Barcelos como testemunhas do processo. E prestaram as devidas declarações sobre a minha origem.

MI – Qual, afinal, era a confusão?

PA – Fui perfilhado pelo meu pai só depois de algum tempo, mas acontece que não tenho o nome dele nos meus documentos oficiais. Em resumo, este é o cerne da questão. Há dois anos que aguardo uma sentença do Tribunal do Fogo, que abriu um processo de averiguação. O Conservador mandou pregar edital durante 30 dias, ficou mais de um mês disponível, ninguém contestou, mas ele não mudou o meu nome. Qual a razão disso?

MI – Poderia ser mais específico?

PA – Em 2013 eu joguei em Cabo Verde pela seleção do Fogo, quando fui perfilhado pelo meu pai com o nome Platiny Mário Lopes Alves. E a minha ficha de jogador tem a assinatura do presidente da associação regional a comprovar que eu nasci em janeiro de 1996 e que me chamo Platiny Mário Lopes Alves. Entretanto estou a lutar para ter o nome do meu pai nos meus documentos. Mas podem estar certos de que nunca vou desistir deste propósito.

MI – Como era o teu nome antes de ser perfilhado?

PA – Antes de ser perfilhado pelo meu pai o meu nome era Platiny Medina. Até esse instante eu não sabia quem era o meu pai. Entretanto, ele perfilhou-me e deu-me o nome Platiny Mário Lopes Alves, que passou a constar dos meus papéis. Só que é assim: em Cabo Verde entreguei os documentos (registo de nascimento, bilhete de identidade e registo criminal) com o nome perfilhado pelo meu pai. Disseram-me que estava tudo normal e recebi o meu passaporte. Eu vim para Portugal jogar futebol, e nada mais.

MI – A acusação diz que entrou em Portugal com o nome Platiny Medina Santos Alves e que constava 15/06/1993 como data de nascimento. Entretanto, você diz que o nome correcto é Platiny Mário Lopes Alves e que nasceu em 2 de janeiro de 1996.

PA – O meu nome e data de nascimento correctos são estes últimos. Para confirmar a minha idade fui submetido a exames científicos, subtraíram-me um dente, fui colocado numa máquina que examinou todo o meu corpo e que comprovou a minha idade. Graças a esses testes viram que eu era realmente inocente. Além disso eu não tinha condições técnicas e financeiras para adulterar documentos.

MI – Mesmo depois da decisão do Tribunal de Barcelos continua sem acesso aos documentos? Qual foi, então, a implicação da sentença que o inocentou do crime de falsificação?

PA – Não uso os documentos porque o nome que está no sistema de identificação em Cabo Verde não é o meu.

MI – Qual é o nome que consta?

PA – O nome que consta é Platiny Medina Santos Alves, mas eu gostaria de saber como é que esse nome foi aparecer se o registo criminal, o bilhete de identidade e a certidão de nascimento estão no meu nome verdadeiro, que é Platiny Mário Lopes Alves. Vim para Portugal com este nome e agora surge o nome Platiny Medina. Estou baralhado com tudo isto.

MI – As autoridades cabo-verdianas já sabem da sentença dada em Portugal?

PA – Mandei a sentença para Cabo Verde, mas aguardo ainda uma sentença do Tribunal de S. Filipe, onde está a decorrer um processo aberto a mando do Conservador ainda antes de os meus pais serem ouvidos pelo tribunal português. Na verdade, o meu problema reside em Cabo Verde e o meu advogado já remeteu cartas para o tribunal de S. Filipe, mas ainda não obteve nenhuma resposta. É muito complicado e muitas vezes questiono sobre a demora para me darem a minha sentença em Cabo Verde se já possuem todas as provas.

Sonho de voltar a pisar os relvados e jogar por Cabo Verde

MI – Qual o peso de cada dia de demora na tua vida e aspiração?

PA – A carreira do futebolista é efémera, não posso aguardar tanto tempo. Tenho 27 anos e ainda sonho voltar ao nível profissional, mas sei que será muito difícil. Eu não vou desistir disso porque não sou de atirar a toalha ao chão. Se fosse assim eu já teria desistido do meu processo e ido embora para Cabo Verde. Mas vou lutar até ao fim pelo nome da minha família. Eu não conhecia o meu pai, porque a minha mãe escondeu-me isso, e hoje ele já não pertence a este mundo, mas quero honrar a sua memória.

MI – Conforme conta, enfrentou sérias dificuldades em Portugal e a pergunta é porquê não regressou para Cabo Verde?

PA – Em primeiro lugar estava proibido de sair de Portugal e tiraram-me os documentos. E, se regressasse para Cabo Verde, as pessoas iriam concluir que era culpado e que estava a fugir. Seria visto como um corrupto. Nunca pensei em fugir porque estava disposto a provar a minha inocência.

MI – Porque acha que o processo demorou tanto tempo para ser decidido pelo Tribunal de Barcelos?

PA – É uma boa pergunta, gostava de saber a resposta.

MI – Foi um futebolista contratado, ainda tem a esperança de regressar para o mundo profissional do futebol?

PA – Este é o objectivo da minha vida, neste momento o meu único pensamento é regressar aos relvados para fazer o que mais amo. É triste ouvir as pessoas dizendo que sou preguiçoso, que não quero trabalhar, que fiz trafulha…

MI – Tem estado a treinar?

PA – Treino e corro todos os dias sozinho, muitas vezes sem comer nada. Tiraram-me tudo: o cartão multibanco, os meus documentos, contas bloqueadas…; vivo como uma pessoa que já não existe neste mundo.

MI – Há clubes interessados?

PA – Sim, já há empresários a ligar, mas quando estava numa situação mais complicada não me deram apoio. E ainda preciso discutir o meu contrato com o Gil Vicente porque rescindi por justa causa. Eles acusaram-me de falsificar dados. Houve dirigentes do clube que souberam que estava a trabalhar e foram dizer ao patrão para ter cuidado comigo porque não tenho documentos.

MI – Está a ponderar pedir indemnização?

PA – Esta parte deixo com o meu advogado. Mas neste momento o que mais quero é ser feliz, que é jogar futebol. O meu maior sonho é jogar pela seleção de Cabo Verde porque tenho orgulho em ser cabo-verdiano. Quero regressar a minha terra que não vejo há 11 anos.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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