O músico, compositor e produtor Lúcio Vieira está a preparar o lançamento de um trabalho que ele intitula de E. P., em parceria com a cantora de soul music Maimuna Jalles. Este multi-instrumentista cabo-verdiano critica a qualidade existente na música atual e considera que ela perdeu muito da sua essência e originalidade. Nascido em Mindelo e radicado em Portugal, o artista diz sentir falta de credibilidade e seriedade nos projetos. Em relação a Cabo Verde, considera que estagnou-se a nível da composição, mas pensa que estará a passar por uma fase de reflexão, transformação e de pesquisa. Para ele falta a capacidade de criar, inovar e potenciar a arte que os jovens têm dentro de si.
Por João A. do Rosário
Mindel Insite – Enquanto músico bastante conhecido no meio artístico, como vê a música no cômpto geral, em particular nas suas diversas nuances tradicional e contemporânea?
Lúcio Vieira – De um modo geral vejo a música e a sua evolução separada em vários sectores, sendo o cultural, o económico, o social e o tecnológico. Em termos da visão cultural considero que a música perdeu-se muito na sua essência e na sua originalidade. Sinto falta de credibilidade em projetos sérios. Deveria haver espaços de formação de jovens em diversas áreas desde clássica ao jazz, do tradicional ao alternativo. Que fosse capaz de potenciar para a criação, inovação e que catapultasse os jovens para a questão da qualidade artística.
A nível económico, vejo o mercado tendencialmente, como é obvio, para o lado comercial que a este nível deixa a qualidade de fora. Alimenta um estilo de música redutor. Para os artistas, a situação ficou ainda mais difícil com o desaparecimento do CD, pois era mais uma forma de rendimento, para além dos concertos.
Na área tecnológica, houve uma brutal evolução. O mundo digital veio revolucionar todo o modo de processamento de vídeos, multimédia, telemóveis, programas de música, que são ferramentas fundamentais nos nossos dias, que permitem a divulgação e promoção dos artistas até na sua própria casa.
MI – E concretamente em relação a música de Cabo Verde?
LV – Em relação a música de Cabo Verde diria que está na moda. Foi marcante a onda e o perfume que ficou no rasto da passagem da nossa diva Cesária Évora pelo mundo e com o seu desaparecimento muitos apanharam a boleia. Destacava alguns artistas cabo-verdianos que, apesar de se enquadrarem num novo estilo – como Mayra Andrade ou o Dino de Santiago – têm vindo a explorar muito bem o mercado português mostrando outras influências e tendências. Mas, a nível de composição, acho que a música de Cabo Verde está um pouco estagnada, sinto falta de inovação e de criatividade, sendo que há muito talento nesta nova geração e bons músicos. Gostaria de pensar que a música de Cabo Verde estará a atravessar um momento de reflexão, de transformação e de pesquisa.
MI – A música cabo-verdiana, e sobretudo com a elevação da Morna a património da humanidade, tem sido na realidade o expoente máximo da cultura cabo-verdiana. O que achas?
LV – A Morna, enquanto património imaterial da humanidade, no fundo é o reconhecimento de um estilo de música de Cabo Verde, que ao longo de vários anos tem vindo a retratar a realidade de um povo através das suas lindas e melancólicas melodias, com letras que falam de separação de famílias, dos nossos emigrantes, da saudade, tudo isso eternizado pela voz dos nossos artistas, espalhados pelo mundo inteiro. Espero que este reconhecimento se traduza também em mais consciência cultural do nosso povo e que traga benefícios para o nosso país.
MI – Terás afirmado recentemente que há uma grande transformação do Funaná, que terá evoluído e que já não é como aquele como nós o conhecemos anteriormente. Esta mudança terá sido para melhor?
LV – Em relação ao Funaná trata-se de um estilo de música de Cabo Verde do qual aprecio muito. Foi “estilizada” para o eletrónico por Catchás e promovida pelos Bulimundo. Teve o seu auge nos anos 90. Tive a sorte de ser convidado pelo Francisco Sousa diretor/ produtor, pessoa com uma visão global da música atual, e dos PALOP em geral, que me desafiou a produzir e dirigir o projeto Bandé Gamboa onde tive total liberdade para fundir o Funaná com outras influências musicais dando asas à nossa imaginação. O que fizemos foi dar uma roupagem nova nalguns temas usando alguns “rifes de house” no baixo, alterando um pouco a harmonia, criando também uma nova linha de guitarra e “back vocals”. De salientar que essas músicas já tinham sido gravadas por ilustres artistas nos anos 80/90.
Projectos em curso
Mi – Fale-nos dos projectos nos quais estás envolvido e nos que tens em carteira…
LV – Em janeiro de 2020 fiz produção e direção musical do projeto Bandé Gamboa, um excelente trabalho sobre uma nova abordagem do Funáná no enquadramento da celebração do líder Amílcar Cabral. Atualmente dedico-me mais à composição e produção do meu mais recente trabalho musical. Estou a gravar um EP (Eletric Piano) em parceria com a Maimuna Jalles, cantora detentora de uma excelente voz, na área do soul, mas também exploramos temas em que novas sonoridades caminham por histórias de vida que misturam a terra, ritmos da cidade que procuram alinhar estilos mais sofisticados sem perder o enraizamento das letras e sons, num projeto de originais.
Estou também a produzir o trabalho da Chanti Oliveira, cantora e escritora luso-indo-afro numa versão muito original onde conta histórias das suas viagens com sonoplastia como pano de fundo. Trabalhamos som e imagem. Para além destes projetos, existem ainda outros trabalhos musicais que estou a desenvolver, como sons afro pop, o fado eletrónico e estilos mais contemporâneos, onde a criatividade se reinventa. Estes trabalhos são realizados no meu “home studio”, onde faço a pré-produção, pesquisas, experiências, à procura de novas sonoridades para tentar manter-me sempre atualizado com as novas tendências musicais.
Primeiros passos na música
MI – Como foram os primeiros passos na música?
LV – O meu interesse pela música surgiu quando um dia um primo meu me levou a assistir a um ensaio de uma banda na qual ele pertencia como guitarrista. A partir daí deu-se o input para uma carreira artística e uma vida recheada de acontecimentos.
Foi por volta dos dez anos, que descobri que tinha alguma facilidade em reproduzir sons e músicas que ouvia na rádio nacional. Apesar da minha primeira vocação ter sido a bateria, pelo impacto visual que teve em mim logo à primeira, esse era um instrumento de difícil acesso, razão pela qual me levou a roubar a guitarra acústica do meu primo, quando ele se ausentava, e aproveitava para praticar.
Aos 15 anos partilhava momentos de música com alguns colegas, participando em encontros de rua, serenatas românticas ao som de umas belas mornas e coladeiras. Também nalgumas festas entre família e amigos, onde conheci o Maiúca, o Biús e outros músicos com os quais troquei conhecimentos.
MI – No teu percurso o que foi fundamental para seres o que és hoje na música?
LV – Foi muito importante para mim ter participado no primeiro Festival de Cabo Verde onde acompanhei, com o Gota d’Ága, vários artistas o que me deu imenso prazer, experiência, visibilidade e reconhecimento. Foi na sequência da minha participação no Festival que surgiu o convite para vir a Portugal gravar o disco “Hey Morena”, primeiro disco do Vlú. Foi uma agradável surpresa que viria a mudar todo o rumo da minha vida. Pensei logo que seria um desafio de uma nova etapa na minha curta carreira como músico e não hesitei em aceitar. Cheguei a Lisboa em Setembro de 1984. Foi uma mudança radical para mim e, embora não tivesse a intenção de ficar a viver em Portugal, a situação acabou por se tornar favorável, pois encontrei melhores condições de trabalho, num mercado mais evoluído e uma rampa de lançamento para o mundo. Foi muito enriquecedora a experiência de poder trocar ideias com outros músicos, partilhar palcos, estudar, viajar, e aprender a trabalhar com pessoas de um mundo completamente diferente.
MI – E a galeria “Nhô Djunga” ?
LV – Sim foi determinante no início da carreira. Foi quando conheci o conceituado Vasco Martins, que tinha chegado da França e me convidou para umas audições, workshops na Galeria Nhô Djunga. Era um lugar emblemático e mágico, onde havia instrumentos musicais, bateria, baixo, guitarras, E.P. (eletric piano) e aparelhagens onde se ouvia música jazz fusion, de discos em vinil que ele trouxe de França. Ali eu tive a oportunidade de conhecer pela primeira vez grandes e virtuosos músicos como Milles Davis, Coltraine, Jaco Pastorius e outros tantos que vieram definitivamente influenciar o meu estilo musical.
Foi naquele espaço cultural que surgiu a ideia da realização do primeiro festival de Cabo Verde, o de Baía das Gatas. Lembro-me de nomes como Vasco Martins, VLU, Tey, Vester, Txogass, Pinúria, Gaby Evora, Dani Mariano.
MI- O teu percurso fala por si?…
Não sei. Só sei dizer que já trabalhei em projetos interessantes e com características muito diferentes. Destaco as participações em várias causas de solidariedade na qual fiz concertos gratuitos pela Cruz vermelha de Lisboa, também em Cabo verde e Moçambique nos anos 90, altura em que houve uma grande seca que devastou todo o país tendo morrido à fome.
Um dos projetos que mais me inspirou pela sua inovação foi o Ébano, um grupo de Afro cool House, formado por Undo drums, André Cabaço voz e bass, John Santos guitarra, Mick Trovoada percussão e eu próprio no Key. Este grupo que marcou presença nos anos 2000, com uma sonoridade única misturando o Afro cool House alternativo, com uma excelência musical que na altura foi um destaque pioneiro que atraia muito o público. Outra experiência fantástica em que eu participei, foi no “Sete Sóis Sete Luas”.
Em 2013, quando estive em Cabo Verde, organizava as quintas-feiras “jam session” em minha casa com o intuito de descobrir jovens talentos e partilhar com eles todo o conhecimento adquirido nas várias áreas que domino. Formei um grupo chamado John Miller Gaz Band em que fazíamos música original com base numa fusão de estilo Jazz e ritmos de Cabo Verde, e atuámos em vários eventos de cariz cultural.
Um dos projetos que me deu imenso prazer foi ter acompanhado o músico e compositor Tcheka, o qual tem um estilo único e uma forma muito própria de abordar a música, e que tem um estilo de música que não se enquadra em nenhuma categoria, o que lhe trouxe louvores de um novo estilo musical quase inqualificável.
Foram muitos anos de estrada, divulgando e promovendo a música de Cabo Verde de qualidade pelos quatro cantos do mundo. Viajámos por mais de 50 países.