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Cultura

Batchart “resgata” tragédia do navio Vicente para cumprir promessa e expôr fragilidades

O rapper Batchart lançou esta semana um novo vídeo clipe que traz à tona lacunas deixadas pelo afundamento do navio Vicente em Janeiro de 2015. Seis anos depois, e cumprindo uma promessa feita a um dos sobreviventes, o artista enfatiza com essa obra que o desfecho trágico se deveu à falta de condições para se efetuar um resgate dessa envergadura em Cabo Verde, ao mesmo tempo que homenageia as vítimas. O rapper deixa ainda claro que a vítima poderia ser “qualquer um de nós”.

“O que me levou a escrever a música foi um dos sobreviventes do acidente, Aricson Fonseca, que aparece também no vídeo a dar o seu depoimento, um antigo colega do liceu, que estava em serviço no navio. Um tempo depois do acidente pediu que escrevesse uma música sobre o que tinha acontecido”, revela o artista.

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Batchart resolveu juntar o que tinha acontecido – fruto da memória do sobrevivente que lhe escreveu uma carta com a sua versão – a uma parte de ficção para fazer nascer a música.

Uma fatalidade que poderia ter outro desfecho, na sua visão, por ter acontecido tão perto do porto e não haver salvamento a tempo. Este ponto, continua, é um dos detalhes muito evidenciados pelo sobrevivente na carta, por terem passado cerca de 19 horas em alto mar, sem que houvesse resgate. Outra coisa questionada muito por Fonseca, segundo Batchart, é não ter conseguido realizar o enterro do padrasto, que também estava de serviço no barco e que nunca foi encontrado, tal como outras vítimas. “As vítimas que não foram resgatadas são dadas como desaparecidas e não como mortas. Percebo que ficou uma mágoa de não se conseguir dar um enterro decente às pessoas, um simbolismo de enterrar também a dor”, expõe.

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A música, segundo Batchart, foi dividida em três fases. Na primeira parte introduz a história, a segunda é um diálogo entre ele e uma viúva – para mostrar a sua dor – e a última traz a sua reflexão sobre o caso. Ao mesmo tempo que assegura ter criado um personagem para o drama, admite que o marcou alguns aspectos, como o facto de os cabo-verdianos estarem vulneráveis a um acidente do tipo “que poderia ser evitado e pelo qual não há meios de salvamento”. Por ser pai fez com que criasse mais empatia pelo caso do sobrevivente cujo filho morreu nos seus braços no mar, enquanto tentavam alcançar a terra. Uma dor que prefere sequer imaginar.

A “construção” da música implicou do artista algum tempo, a começar pela procura do ângulo de abordagem. Mas, uma morna que ouviu cantada por Tito Paris fez com que se “fizesse luz” e conseguiu desbloquear o “casamento das peças”. A gravação do clipe revelou também alguns constrangimentos.

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A morna, que foi adicionada à história e interpretada pela jovem artista Michelle, tem como intenção transmitir a dor de quem ficou depois do naufrágio. “Peguei neste sentimento, no lamento e introduzi a análise crítica, própria do rap. A música não demorou tanto tempo quanto o vídeo, porque iniciamos antes da pandemia e não foi possível terminá-la a tempo. Tivemos que fazer umas imagens em São Vicente, mas não havia a possibilidade de viajar, devido ao Estado de Emergência, que acabou por complicar-nos na produção”, frisa.

Parceria com Michelle

Batchart explica que conhece a jovem Michelle desde que gravou a música “Akredita”, em parceria com o artista Djodje, quando teve contacto com o Grupo Coral da Escola Secundária Jorge Barbosa. “Uma das vezes que fui cantar no festival da Baía da Gatas, ela estava presente no grupo coral e fiquei agradavelmente surpreso com a potência da sua voz. Depois ela veio estudar na cidade da Praia e passamos a estar mais em contacto. Como precisava de uma voz que pudesse ‘refazer’ o refrão da morna, considerei que Michelle seria ideal para dar-lhe uma sonoridade de morna, com um toque mais contemporâneo”, explica.

A música foi projetada para que todos pudessem se identificar e neste sentido, pelas reações que tem recebido, e ao alcançar mais de 25 mil visualizações em pouco mais de 24 do seu lançamento, Batchart explica que tem sido “espetacular ver que as pessoas sentiram empatia”.

“O que está em questão é mais do que o acidente. São os meios de salvamento, a política de transporte, em que medida a vida humana é uma prioridade em Cabo Verde. Não é só uma homenagem para a família das vítimas e muito menos uma alegoria para falar de sobrevivência”, enfatiza.

Para Batchart, o silêncio não pode continuar para que situações do género não voltem a repetir. “Se reparar na história deste naufrágio, uma hora da madrugada as buscas foram suspensas porque já não havia meios. Era um barco da Shell a auxiliar, não havia helicópteros e nem nada que pudesse dar continuidade às buscas, fazendo com que as pessoas passassem mais de 18 horas à deriva”, lamenta.  

Desta forma, o artista escolheu filmar no mar alguns dos sobreviventes do naufrágio, que “desde o primeiro momento quiseram participar no projeto”. Isto provocou algum receio, pois sabia que tinha que colocar alguma sensibilidade nessa cena. Além disso o clipe traz à tona mais drama, com atuação de actores que “vestiram a pele” de familiares dos desaparecidos e velaram fotografias de entes queridos. O vídeo termina com uma referência ao nome de todas as vítimas.

A data prevista para o lançamento do vídeo era o mês de janeiro para servir de reflexão ao 6º aniversário do afundamento do “Vicente”. O trabalho saiu agora e o rapper diz que o sentimento neste momento é de gratidão. Batchart espera que o público encare o simbolismo do trabalho muito além do próprio acidente.

Sidneia Newton

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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