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Batchart: “Reduzir o Rap à contestação é limitar o campo onde pode actuar”

Vulto reconhecido do mundo do Hip Hop, Batchart fala sem espinhas nesta entrevista, mas sem ferir susceptibilidades. Aborda a luta do Rap enquanto “filho de um deus menor” na cultura cabo-verdiana, o processo criativo da música “Navio Vicente”, levanta a bandeira da história “pouco respeitada” do Hip Hop em Cabo Verde, assume a característica resiliente do povo cabo-verdiano, incita cada um a enfrentar os seus medos – “pa riba dês”. O artista admite ser um símbolo para a juventude, mas rejeita o papel de estrela. Frisa que o Rap é uma ferramenta fundamentalmente de expressão e que reduzir o seu papel à contestação é limitar o campo onde pode actuar. O premiado compositor alerta para os perigos dos rappers confundirem competitividade com rivalidade já que cada um tem a tendência em pensar que a sua varinha mágica é mais potente que a do outro. Para ele, um Wikileaks só terá impacto em Cabo Verde quando a sociedade ganhar a consciência da cidadania e ser mais reivindicativa.

Mindel Insite – Batchart, em algum momento da sua carreira considerou ou sentiu que era um “filho bastardo” da cultura cabo-verdiana?

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Batchart – Eu, pessoalmente, não acho, mas o Rap crioulo é tido como um “filho de um deus menor” na cultura cabo-verdiana porque temos uma ideia muito fechada de que a nossa cultura se resume ao tradicional e folclórico. A partir do momento em que queremos falar da cultura como algo mais abrangente surgem certos tipos de entraves. Associamos a nossa cultura à imagem da mulher com o balaio na cabeça e um filho às costas, ao violão… são aspectos importantes da nossa cultura, mas não resumem aquilo que somos.

Seguindo o teu raciocínio, a música – vamos por este lado porque és um artista desta área – está mais restrita à Morna, Coladeira, Batuque, Funaná…

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Sim, são esses os géneros mais folclóricos. Temos essa visão muito fechada e colocamos muitos outros elementos num mundo à parte. Quero salientar que, apesar de toda esta visão, o Rap crioulo, enquanto género, alcançou a afirmação. Conseguiu isso sem a autorização desses géneros ou de quem acha que deva decidir e de quem nos veja como “bastardos”. E hoje somos capazes de levar público a concertos tal como os outros géneros.

O que aconteceu de diferente no teu percurso que te leva a se autoexcluir desses tais “filhos bastardos” da cultura cabo-verdiana?

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O Rap crioulo, na verdade, foi considerado um filho bastardo de forma geral.

Neste sentido, prefiro não concentrar a resposta na minha pessoa. Esse fenómeno atingiu também o pessoal que se aventurou pelo Cabo-zouk e o que agora faz o Afro, enfim, todos passaram por esta jornada, que é de afirmação.

Essa jornada já foi ganha?

Ainda estamos nela. Agora, quero frisar que eu não sou “filho de um deus menor” por causa da minha pessoa, mas sim pelo género musical que represento.

Quer dizer que em algum momento também viajou por esse deserto?

Sim, claro.

Como conseguiu dar a volta por cima?

Começamos a entender que tudo é um processo e que o resultado vai depender da dedicação. Consegui ver a evolução daquilo que eu e colegas estávamos fazendo quando antes não tínhamos palco – e tínhamos de pedir por favor que nos deixassem “dar um som” num polivalente de zona. Hoje actuamos em grandes palcos como o festival da Baía das Gatas. Quero referenciar o trabalho feito pelo Hip Hop Art, que foi o meu primeiro grupo. Como era um colectivo, havia pessoas que vinham com esse bastão-bandeira que tinham recebido noutro ponto do percurso. Aquilo que nos trouxeram é a visão das dificuldades que enfrentaram para se identificarem e serem identificados. Disseram que tudo era possível e entregaram esse bastão à minha geração e chegamos até aqui. Não estou a dizer que estamos a entregar o bastão, mas as outras pessoas que vieram nesta jornada também presenciaram esta construção. Internamente estamos dentro da evolução. Percebemos que antes a tua música era ouvida apenas entre os teus amigos, depois na tua zona, até chegar a uma rádio e conseguir se espalhar pelo mundo.

Respeitar a história do Hip Hop ou o “choque de gerações”

Coloca tónica neste bastão, que, no fundo, é o percurso do Hip Hop. Considera que há respeito pela história do Hip Hop?

Esta é uma grande questão. Sinto que muitas vezes a história não tem sido respeitada. Há pessoas que passaram por esse trajecto e o seu lugar e os seus contributos não são reconhecidos. Acho que este é um desafio típico em Cabo Verde, de uma forma em geral. Achamos que quem chegou por último é que construiu tudo. Esquecemos que foi preciso alguém abrir-te a porta. O teu contributo só aconteceu graças as sementes lancadas décadas atrás.

“Há sempre a impressão de que a tua varinha mágica é mais potente que a do outro. E isto tem de mudar.”

Acha que o pessoal que está a entrar agora tem-se preocupado em saber o que foi feito antes ou consideram que agora é que tudo está a acontecer?

É isto que estou dizendo. Há sempre a impressão de que a tua varinha mágica é mais potente que a do outro. E isto tem de mudar, por isso acontecem muitos confrontos entre quem está e os que estão chegando. Quem agora vem deve trazer uma visão inovadora; quem está quer ver o seu lugar e legado honrados. Acho que a nova geração deve tentar saber a história com a clara visão que o seu papel é contruir em cima daquilo que encontrou.

União “crispada”: Entender a competitividade como rivalidade

O Hip Hop crioulo é um mundo de união ou de crispação?

É um meio competitivo – e tem de ser assim -, mas devemos ter muita atenção sobre o conceito de competitividade. Se eu olhar para a competitividade e entender que significa rivalidade estou metendo a minha cabeça nessa tal crispação que não preciso. Acho que muitas vezes entendemos isso como rivalidade e não algo que tem de ser competitivo.

Competitivo em que sentido?

No sentido em que o artista deve trabalhar para o seu momento no palco, alcançar o top, etc. E nesta luta ele compete tanto com outros rappers assim como com os outros géneros e artistas no activo. Por isso fico muito contente quando vejo um rapper nomeado numa categoria da CVMA – e aqui não falo propriamente da minha pessoa. Quando temos um rapper como melhor artista em palco, álbum do ano ou destacado com a música do ano fico orgulhoso. E é por isso que digo que a circunscrição não está limitada ao Rap crioulo, mas sim a tudo que é música. Quando estamos no cartaz do festival da Baia o nosso show é comparado com o de todos os outros artistas convidados, inclusive internacionais. Por isso precisamos ter uma visão mais abrangente.

A língua como elemento identificador do Rap crioulo

Quando se fala do Rap crioulo, qual o elemento que identifica esse género como made in Cabo Verde? É a língua?

Acho que estamos a viver um momento de viragem. Durante muito tempo procuramos uma identidade para o Rap crioulo e esta identidade era muito mais do que cantar em crioulo. Era falar da nossa realidade e perspectiva para sentirmos que essa composição tem a ver comigo ou connosco. Hoje conseguimos perceber que podemos tocar várias faixas etárias e inclusive quem não curte o Rap.

Já falei com pessoas que não são apreciadoras do Rap, mas que acabaram por escutar esse género por causa do teu trabalho.

O Rap pode ser um género musical que essas pessoas não vão escutar em casa ou no carro, mas se identificam com a mensagem porque há elementos culturais que retratam a sua vida. Nestes instantes sinto que estou a chegar onde quero chegar. Fico feliz quando estou na rua e encontro uma figura improvável, que é uma senhora ou um senhor de cabelos brancos, e diz-me o que a música “Navio Vicente” significa para ela ou para ele. Esta é a parte da identidade lírica e sonora que andamos à procura.

E, voltando à tua primeira pergunta, sobre sermos “filhos de um deus menor”, hoje estamos num nível em que as pessoas podem não aceitar, mas são obrigadas a respeitar a nossa música. Hoje já podemos ser convidados com o carimbo de artistas cabo-verdianos. Começou a surgir o som mais “folclórico” do Rap crioulo, ou seja, quando começamos a pegar no Rap e a trançar com a Morna, Funaná, etc. Isto não quer dizer que tem de ser assim, mas estou, sim, a falar de pinceladas que podemos dar. Temos de admitir a beleza e a riqueza do nosso folclore e que há muita coisa inspiradora.

Deixe-me recolocar a questão sobre a língua como elemento identificador do Rap crioulo: uma música de Batchart cantada em inglês continua a ser um Rap cabo-verdiano?

Acho que sim.

Como alguém, que não conhece o autor/intérprete da música, vai poder identificar esse Rap como sendo crioulo?

Quando falamos do Rap crioulo não nos referimos apenas a uma música interpretada na língua crioula. Posso dar o exemplo do que existe em Portugal onde há artistas que fazem Rap em crioulo, mas não usam os tais elementos cabo-verdianos. Já vi trabalhos feitos por artistas cabo-verdianos na diáspora, que cantam em inglês, mas sentimos que usam certos elementos culturais a nível sonoro/melódico.

Quer dizer que os rappers em Cabo Verde têm esse cuidado de inserir elementos típicos dos ritmos cabo-verdianos?

Acho que esse é um caminho possível, mas é uma escolha apenas. No entanto, o Rap feito aqui já incorpora esses elementos. Se formos ver, da mesma forma que identificamos a sátira numa música de Manuel d’Novas, podemos pegar numa letra de um Rap e ver semelhanças na forma crítica de abordagem. O que quero dizer que é que não é necessariamente um violão que vai voltar um Rap crioulo, mas é uma possibilidade. A introdução dos elementos pode ser temática, instrumental, etc.

Não concordo tanto com a ideia de que o nosso Rap tem de ser criado em cima do nosso tradicional. Para mim isso é muito redutor do que é o Rap.

Atenção que a cultura não é só a música e a forma de interpretar a nossa música. O que nos configura como povo é como vivemos a nossa sociedade, a nossa herança racial… Não concordo tanto com a ideia de que o nosso Rap tem de ser criado em cima do nosso tradicional. Para mim isso é muito redutor do que é o Rap e desrespeita o que esse género é em si. O Rap tem um caracter: é uma música essencialmente electrónica, tem determinadas BpM, o seu formato… Podemos incorporar elementos na sua estrutura como acontece por exemplo em Cuba, onde usam instrumentos de sopro típicos da cultura cubana. No entanto, estão presentes os elementos universais do Rap.

Cuidado com a mistura de “cores”

O recurso a esses elementos deve ser contido?

Quando se utiliza em demasia certos elementos tradicionais, o Rap fica descarecterizado, ultrapassa os seus limites. É como uma mistura de cores. Misturamos azul com vermelho e temos outra cor.

Quando está a compor tem a consciência desses limites?

Sim, é evidente. E quero, de novo, voltar para a música “Navio Vicente”. Comecei a pensar como vou estruturar uma música que trata um facto verídico muito sensível e com muita coisa envolvida, não só a sensibilidade da família, mas também da sociedade e o carácter político que acabou por alcançar. Enfim, muita coisa para considerar. Estava a pensar como “pegar” essa música quando vejo um show do Tito Paris a cantar “Que vida”. Quando ele canta o refrão “kel barc já perdê la na funde di oceano; … jal perde na mar…”, vi logo uma luz. A grande questão agora era como “casar” essa Morna com o Rap.

Todos temos a noção do que é uma Morna, mas, quando trazemos esse estilo para a zona do Rap ocorre uma transformação.

Como abordou este desafio?

Vejamos, o que significa a Morna? É um género fundamentalmente de lamento, que retrata a tristeza da perda de um ente querido, a partida para terra longe, alguém que chora uma dor… É um casamento perfeito, mas não queria parecer que a reppar em cima de uma Morna, por isso fiz uma releitura. Todos temos a noção do que é uma Morna, mas, quando trazemos esse estilo para a zona do Rap ocorre uma transformação. Uma das mudanças é, por exemplo, subir as batidas por minuto (BpM). Se ficasse muito ligado ao tradicional poderia perder a essência do Rap.

Quando ouve o trabalho final consegue identificar claramente as linhas que delimitam o Rap? Que não misturou as cores?

Às vezes é difícil identificar esses limites. Enquanto a coisa não sair, tenho sempre a tendência de continuar a mexer. Por isso temos o conselho de pessoas ligadas à parte da produção. Isto tem mais a ver com o produtor do que com o artista. O artista tem de abrir mão de certas coisas, caso contrário nunca mais termina a obra, ainda mais se for um artista perfecionista.

Rap, um género fundamentalmente de expressão

Concorda que o Rap é fundamentalmente um género de contestação?

Não, acho que hoje em dia é um género de expressão, onde exprimimos tudo o que temos, seja alegria, dor, frustração… reduzir o Rap à contestação é limitar o campo onde pode actuar. No entanto, a contestação é um pilar importante do Rap. És melhor artista, para mim, a partir do momento em que consegues exprimir o que sentes. E, como a nossa vida não é só problemas, podemos falar do amor e da alegria. Essa mentalidade ligada à contestação é que condicionou o Rap crioulo por muito tempo.

Constata-se uma tendência a críticas sociais no Rap de jovens insatisfeitos com a sociedade. Por isso muitas pessoas questionam até que ponto eles têm razão naquilo que exprimem. As pessoas perguntam se vivenciam realmente aquilo que cantam.

A primeira coisa que digo a muita gente é que, se os rappers continuarem a passar a ideia de que tudo o que escrevem é autobiográfico, estamos lixados. Vamos a mais um exemplo. Se formos analisar as tantas músicas lançadas pelo Djodji, quantas músicas de decepção amorosa ele já escreveu e cantou? As pessoas vão acreditar que ele já viveu esses 50 amores frustrados? Claro que não. Ele está no papel de um criador a expressar algo que ele sequer sentiu. Mas, enquanto criador, é o seu papel apanhar experiências de outras pessoas para criar identificação.

(…) reduzir o Rap à contestação é limitar o campo onde pode actuar. No entanto, a contestação é um pilar importante do Rap.

Em relação ao Rap ocorre a mesma coisa. Só que temos a tendência de assumir que tudo o que lançamos é a nossa realidade, mas não necessariamente. Enquanto artista, podes ficcionar algo. Mas, se a tua música é baseada numa vivência é mais autêntica. Isso não quer dizer que quando compomos estamos necessariamente a retratar a nossa vida. Pode ter fundos de uma história que foi ouvida e transformada em arte. E a arte não é necessariamente a representação real da vida. Posso apanhar o céu e pintar de cor-de-rosa, isto é uma representação. Ocorre que muitas pessoas não têm a humildade de assumir que uma certa letra retrata algo que escutaram num determinado espaço e tempo.

“Navio Vicente”, abordar a realidade com fição

No teu caso a mesma lógica se aplica?

Volto ao caso Navio Vicente. Quando Ary, um dos sobreviventes, falou comigo e contou-me os momentos terríveis que vivenciou e pediu-me para fazer uma música sobre o naufrágio, disse-lhe as seguintes palavras: “Ary, quero em primeiro lugar dizer-te que vou aceitar este desafio – sem saber ao certo como vou fazer isso -, mas gostaria que me escrevesse uma carta e exprimisse tudo o que viveu nesse dia, desde que entrou no barco até ser resgatado!”

Peguei nesses lamentos/pensamentos e coloquei numa personagem fictícia, neste caso uma mulher que gostaria de ter enterrado o marido.

Ele mandou-me a carta, tirei os meus apontamentos e destaquei aquilo que ele mais lamentava. Uma dessas coisas foi o facto de não ter podido enterrar um ente querido; ele critica como um acidente pode acontecer à vista do cais e não haver resgate e como as buscas foram suspensas tão cedo… Peguei nesses lamentos/pensamentos e coloquei numa personagem fictícia, neste caso uma mulher que me aborda após um show e eu penso que ela queria pedir uma fotografia. Ela está com uma semblante pesada… Tudo isso é ficção. É uma forma de abordar o tema, mas com base em referências. Pego nessa mulher e o transformo numa mãe de família que gostaria de ter enterrado o marido. Transferi os sentimentos de Ary para essa figura, mas nada disso aconteceu.

A música teve uma forte repercussão, suscitou críticas muito positivas e as pessoas se sentiram identificadas com essa abordagem.

A tal ponto que muita gente me perguntou quem era essa mulher. Repare que estamos perante um facto verídico que foi acompanhado de perto pela sociedade cabo-verdiana. Noutra música digo que tenho uma tia que estava na França, ela caiu no estrilo e mandei-lhe uma “boca”. Ela diz-me “tu est fou?! E eu respondo ‘na na, founana’ e entra uma batida do Funaná”. Na verdade, não me desentendi com nenhuma tia. Foi apenas uma forma de criar um jogo de palavra, a criatividade.

Criar uma marca no universo do Hip Hop

Sente que criou um estilo, um ritmo, uma identidade própria de Batchart no universo do Hip Hop?

Acho que as pessoas já conseguem identificar o meu trabalho, o meu estilo e as minhas letras. Acho que a minha identidade ficou demarcada, mas não sei até que ponto isso é positivo. Havendo a necessidade de mudar não será nada fácil.

Temos a tendência de nos repetirmos. Hoje tento olhar para aquilo que fiz e fazer algo diferente. Hoje, o exercício é contrário e mais difícil.

As pessoas falam na necessidade de mudarmos o estilo, etc. Isso aconteceu neste segundo álbum, em que meti um verso da variante de Santiago, um instrumental mais dançante… Verdadeiramente, não sei se criar estas linhas condutoras são tão vantajosas.

Mas criou essas linhas de forma consciente ou foi um processo natural?

Acho que foi um processo natural. Temos a tendência de nos repetirmos. Hoje tento olhar para aquilo que fiz e fazer algo diferente. Hoje, o exercício é contrário e mais difícil. O primeiro estágio é quase inconsciente. Há pessoas que nos dizem que já usamos esta ou aquela rima e expressão antes e, quando vamos ver, elas têm razão. Criar a identidade é só deixar as coisas fluírem, como um treinador que usa o mesmo plantel para ganhar um campeonato. A decisão de mudar é difícil porque exige a consciência de que é preciso mudar e experimentar.

E há um risco associado.

Claro, o risco existe. Vais experimentar para saber no que vai dar. É como um treinador que decide meter um jogador numa partida importante para ver se dá certo.

Viver desapegado do rótulo de ídolo

Tem a consciência de ser um ídolo para a juventude?

Sinto que inspiro muita gente, que significo coisas que talvez não quisesse ser. É que essa estória de ídolo cria muita coisa na cabeça das pessoas. Criam uma representação que não corresponde consigo porque associam isso à ideia de fama e estrelado, quando tento correr na direção oposta.

As pessoas encontram-me numa paragem de autocarro, a ir comprar pão ou a ir deitar o lixo fora e estranham, quando são actos que denotam a minha simplicidade. As pessoas têm de ver que tenho uma dimensão humana.

Incomoda-te ser ídolo?

Fico feliz quando as pessoas reconhecem o meu talento artístico e todo o artista deve ficar satisfeito quando percebe o que a sua obra significa para as pessoas.

Se tivesse a fama que tens nos Estados Unidos irias ficar na paragem de autocarro ou ir comprar pão numa padaria?

(Risos) Na dimensão da América provavelmente não, mas a minha satisfação é viver desapegado do rótulo de estrela porque é algo muito arriscado. A fama tem tendência em tirar-nos o pé do chão e o que somos no palco é diferente daquilo que somos. Mais importante do que de onde viemos é para onde vamos, mas, se esquecermos de onde viemos, somos um Zé ninguém. Não gosto da idolatria porque a tendência das pessoas é entrar para o teu lado pessoal – como usas a barba, os lugares que frequentas, as roupas que usas, os teus relacionamentos…  Concordo que podemos inspirar alguém com a nossa obra, mas não esqueçamos que temos uma dimensão humana. Neste sentido, se cometermos um deslize, no dia seguinte estamos estampados na imprensa e nas redes sociais e tudo o que construímos pode ir pelo cano.

Ser “resiliente”

Até que ponto Batchart é um resiliente?

Passei por muitos momentos desafiadores na vida e pude ver também que temos no nosso país uma característica de resiliência. Somos um povo cuja história é de superação, mas acho que há uma grande necessidade de continuarmos a falar do percurso das pessoas, não necessariamente da minha. Histórias que nos conseguem mostrar que uma adversidade não é uma fatalidade, que pode ser superada.

Às vezes a vida vai colocar-nos uma barreira pela frente e aquilo que vamos encontrar do outro lado é mais grandioso.

A pandemia foi um desses desafios?

A pandemia foi mais uma prova de resistência e de readaptação. Hoje é muito importante continuarmos a falar da resiliência, mas não porque está na moda. Este momento pós-Covid é ideal para explicarmos o que a pandemia significou para o meio artístico. Se não fossemos resilientes não voltávamos para a estrada. Tenho colegas que venderam instrumentos para dar de comer aos filhos.

“Pa riba dês”

No álbum “Resiliente” entoa o grito de comando “pa riba dês”. Isto sabe a uma exclamação, uma “ordem de ataque”. Considera que há muita gente que tem medo de enfrentar os seus medos e isso interfere na sua capacidade de resiliência?

Sem dúvida. Quando fiz esta música houve quem tenha entendido que “riba dês” faz referência a um adversário. De facto, é um adversário, mas que está dentro de nós mesmos. E, quando digo “eles”, são os nossos medos. Quero mostrar que o nosso adversário não está lá fora, mas na nossa cabeça. Muitas vezes metemo-nos em complicações criadas por nós mesmos.

Há quem tenha entendido que “riba dês” faz referência a um adversário. De facto, é um adversário, mas que está dentro de nós mesmos.

São os nossos medos, a procrastinação, uma estrutura emocional frágil… Esta consciência de que o nosso maior adversário está dentro de nos é muito importante. Se não pudermos lidar com os nossos medos não poderemos enfrentar a vida.

Acredita que as pessoas têm receio de lidar consigo próprias? E isto pode estar na origem de vários malefícios, como a depressão?

Claro, vejamos: vais para a escola aprender coisas como conhecer cores, números, letras, mas não és ensinado a lidar com as tuas emoções. Quando vemos uma paleta de cores sabemos em que medida o azul é diferente do amarelo. No entanto, temos uma vida emocional conturbado ao ponto de sentirmos atração por alguém e começarmos a pensar que é o amor da nossa vida. Existe uma ausência total de literacia emocional, que não é feita em casa e nem na escola. Resultado, as pessoas andam a reprimir os seus sentimentos e a capacidade de expressão e a criar uma panela de pressão.

As pessoas estão mais viradas para ver no outro o motivo da sua vida em vez de procurarem o autoconhecimento?

É difícil estarmos na janela e vermos a nossa pessoa passando na rua, mas é um exercício que precisa ser feito. E este é o exercício do autoconhecimento, que exige muito mais do que saberes os teus dados biográficos. Saber o teu nome, onde nasceu, o que gosta de fazer implica conheceres também a tua estrutura emocional. Quando não temos alguém para ilustrar como somos fica fácil olharmos para o outro e sem sabermos que aquilo que vemos nessa pessoa é reflexo dos nossos pensamentos. E o pior é que nem nos damos conta disso.

Wikileaks – a força da cidadania

Pensa que precisamos de um Wikileaks em Cabo Verde?

Acho que o governado deve ter a real noção do tipo de governação a que esta sujeito. Que a prestação de conta em Cabo Verde tem de ser feita de outra forma. Na verdade, é aqui que está o fundamento de Wikileaks, do vazamento de informação para o governado saber o que andam a fazer com o seu destino. Sentimos que há muita negociata em Cabo Verde e só nos damos conta disso quando estão edificadas. Temos de estar cientes de que não somos reivindicativos como devíamos ser. Se passarmos a ser reivindicativos acabam as negociatas e o jogo de cartas por debaixo da mesa.

Temos condições em Cabo Verde para fazermos uma investigação ao estilo Wikileaks?

Volto à questão da consciência de cidadania. Enquanto esta consciência não for criada sentimos que nada vai acontecer. E ninguém vai dar-nos essa consciência. Nenhum governo tem o interesse de abrir o olho ao eleitor. Cabe à sociedade civil assumir esse desafio. Um exemplo clássico é quando há mobilização para uma greve/manifestação e aparece sempre alguém a fazer uma conotação político-partidária dessa ação. Prova viva de que não temos uma consciência de cidadania. E o próprio governante faz questão de usar esse trunfo para retirar toda a credibilidade e o direito à manifestação dos cidadãos.

Acontece que às vezes o governante nem se dá a esse trabalho porque os militantes dos partidos assumem logo essa tarefa.

É uma grande verdade, há aqueles pitbulls das redes sociais sempre disponíveis para defender os “donos”. Agora, tudo isso é construído porque a pessoa que assume essa defesa pública do governo/partido quer cair nas graças dos líderes e tem a esperança de que será recompensada mais tarde com um tacho. E temos ene exemplos. Quando vemos certas pessoas “promovidas” acabamos por entender toda a sua luta. Os partidos têm também militantes ferrenhos, que seguem a cartilha dos líderes partidários – e não estou aqui a querer dizer que isto é errado. Agora, é importante as pessoas terem a noção da sua pertença a uma nação, a um país e a uma sociedade.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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