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Duas vítimas de tortura no tempo de partido único cépticas sobre atribuição de pensão

Duas das vítimas de tortura em São Antão e São Vicente no tempo do partido único reagiram com cepticismo à decisão do Governo de atribuir ao grupo uma pensão mensal de até 75 mil escudos. A medida foi aprovada em Conselho de Ministros e enviada para o Parlamento, mas mesmo assim querem ver para crer. Ambos acreditam que, a ser verdade, esta decisão resulta da pressão que ao longo dos anos têm feito aos sucessivos governos de Cabo Verde, mas querem uma data para começarem a receber o dinheiro.

“Carrasco”, que se encontra praticamente preso na sua residência na Ribeira Bote devido a problemas de visão – que acredita serem sequelas das torturas sofridas em 1977, diz que esta pensão, a concretizar-se, chega tarde porquanto a maioria das vítimas já faleceu. “Esta era uma decisão que devia ter sido tomada desde 1992. Na altura, entregamos o dossiê com os nomes de todas as vítimas ao então Primeiro-ministro, Carlos Veiga, que prometeu uma resposta célere, mas que nunca chegou. Mais tarde, em 2005, o assunto voltou ao Parlamento, com o Governo a prometer uma compensação às pessoas que foram presas e torturadas arbitrariamente e um pedido público de desculpas. Penso que esta demora foi propositada porque a política é suja. Espero que desta vez as coisas se concretizem. Basta de promessas vazias”, desabafa.

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Para este entrevistado do Mindelinsite, aqui não adianta apontar o dedo a um ou outro partido político porque é um problema do Governo e todos falharam. “Entendo que, quando o MpD assumiu o Governo em 1991, uma das suas primeiras decisões deveria ter sido penalizar os torturadores e apoiar as vítimas, que foram detidas sem julgamento, espancadas e obrigadas a confessar crimes que nunca cometeram. É por isso que digo que esta decisão vem tarde. Mas admito que a pensão vai ajudar algumas pessoas a viver com mais dignidade”, confessa Carrasco, realçando que esta notícia antecipou o envio, de novo, de uma carta ao Parlamento para expor a situação das vítimas e apelar a uma decisão, que tardava em chegar.  

Leitura parecida faz João de Deus da Luz, para quem, apesar de tarde, a pensão é importante para pessoas que, como ele, não têm outro meio de vida. “Fui taxista desde sempre. Durante anos tentei fazer os descontos para a Previdência Social para poder ter uma pensão de velhice, mas não me foi permitido. Neste momento tenho 78 anos e vivo da ajuda dos familiares. Moro com uma irmã e tenho outros irmãos que me apoiam”, conta este entrevistado, que confessa também estar a enfrentar problemas de saúde, resultantes de uma cirurgia realizada em 2017, mas que correu mal. “Usufruo do INPS através da minha filha. Fiz a cirurgia, que correu mal, mas recusaram enviar-me para o exterior para tratamento. A pensão, a concretizar, vai-me aliviar um pouco. O problema é quando é que vamos começar a receber”, acrescenta João de Deus, que diz ter sido um torturado “inocente”.

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“Fui chamado para fazer um frete. Tinha de levar duas pessoas até ao Pé d’Verde. Só mais tarde é que soube que foram buscar panfletos para distribuir. Elas foram detidas e torturadas. Foi-lhes perguntado quem os levou ao local e disseram o meu nome. Prenderam-me na Cadeia da Ribeirinha. Depois levaram-me para Morro Branco, onde fui interrogado e torturado. Levei muitos pontapés, choques e outras coisas que não vale a pena falar agora. Como eu, sei que outros taxistas também foram detidos na altura, em 1977”, refere.

Conselho Ministro aprova pensão às vítimas

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O Governo decidiu atribuir uma pensão de 75 mil escudos às vítimas da tortura em São Vicente e Santo Antão, em 1977 e 1981. O diploma, aprovado em Conselho de Ministro, já foi enviado para o Parlamento. “A I República, vigente de 1975 a 1991, foi dominada em Cabo Verde por um regime político que não respeitava os direitos, liberdades e garantias consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, o que expunha as pessoas e a sociedade civil aos caprichos do Poder então existente, na ausência da aplicabilidade directa desses direitos essencialíssimos, atinentes à dignidade humana, e de mecanismos judiciais céleres, exigentes e eficazes de proteção, a começar pelo direito fundamental ao ‘processo equitativo’”, lê-se no documento, aprovado em Abril deste ano.

Em Novembro do ano passado, a UCID convocou a imprensa no Mindelo para, mais uma vez, exigir do Governo justiça para as vítimas de prisão e tortura na sequência dos acontecimentos de 1977. António Monteiro apresentou-se ladeado por três das supostas vítimas, que representavam os 16 sobreviventes das 32 pessoas que sofreram as faladas atrocidades em 1977, para pedir o mesmo tratamento que tiveram as vítimas da Reforma Agrária. Estas já beneficiam de uma compensação em termos de saúde e medicamentos, para além de uma pensão mensal.

Constânça de Pina

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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2 Comentários

  1. Se é atribuída uma pensão: quer dizer que ficou provado que de facto houve tortura.Qual foi então? Onde está lavrada a verdade dos factos? Para todos podermos saber, em concreto, o que aconteceu.

  2. Penso que não haverá justiça se os torturadores/ mandantes ficarem impunes.E já é tempo de passarem a ter mais respeito pela população esclarecendo e informando melhor do que fato se passou e a responsabilização/ nomes dos envolvidos.Pagar uma pensão sem fazer- se justiça é atirar areia aos olhos das pessoas.Temos torturadores/ pessoas sem escrúpulos e sem noção de limites, gente que não respeita os direitos e a vida humana? Que se torne público a identidade dessas pessoas.Qto aos valores da pensão acho desproporcional à realidade do país.Mas como somos ou 8 ou 80…

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