Por: José Manuel Araújo
E é com o cenário de fundo desenhado no 1º episódio deste banquete que: (I) num momento podem ser contra a regionalização, porque é uma ideia bairrista e divisionista dos sãovicentinos; noutro podem ser a favor, porque a ilha de Santiago está a ser prejudicada tendo em conta que Praia está a estrangular o interior da ilha
(II) que num momento Praia precisa do estatuto especial porque, mesmo possuindo os piores índices de pobreza do país, com a grandeza de sua alma continua se sacrificando em prol de todas as outras ilhas, mas, sem nunca aceitar libertar-se deste fardo através da regionalização, talvez por saber que ali estaria o começo do fim do centralismo; e que noutro momento, em que a grandeza da alma deva ceder lugar ao capricho de exibir uma suposta insignificância da restante parte da Nação, Praia já não precisa desse estatuto especial porque, afinal, ela sozinha até está em condições de financiar o tesouro nacional com os seus impostos, caso este precisar e pedir, porque, no fundo, Praia é o Eldorado de Cabo-Verde; (III) Ou que Praia tem 40% de cobertura de saneamento, enquanto tem uma cidade por aí com 90%, mas, omitindo que essa cobertura de 90% teve início muito antes da independência.
Uma omissão que sugere o princípio de que, depois da independência e naquilo que Praia estivesse mais atrasada, todas as ilhas teriam que parar para que Praia as pudesse alcançar, enquanto, naquilo em que ela estivesse à frente, pelo contrário, simplesmente soma e segue; (IV) Ou que Praia precisa de moradias sociais, enquanto outras ilhas já receberam e não precisam dessa forma tão urgente como Praia, mas, omitindo o senso 2020 que diz ser S. Vicente a ilha com maior número de casas degradadas – mais de 7.000 para cerca de 5.000 na Praia – e que o condomínio de Portelinha a que insinua, dá resposta a 88 familhas numa população de 300 familhas necessitadas só naquela zona;
(V) Ou que, enquanto aprovaram para uma certa ilha uma zona económica com investimento no valor de dois bilhões de dólares, não se aprova um estatuto especial para Praia que prevê 70.000 contos anuais que mal dão para uma laje que se quer colocar lá no bairro mas, omitindo que a zona económica especial não passa de uma lei, um território e uma autoridade, e que os dois bilhões para a financiar serão fruto de investimentos privados, caso acontecerem, e não provenientes dos bolsos dos cabo-verdianos das outras ilhas; enquanto os 70.000 contos para a laje lá do bairro irão ser subtraídos eternamente dos bolsos dos cabo-verdianos das várias ilhas;
Como se vê, a grande constante presente em quase toda a argumentação em defesa do estatuto especial, é a omissão da clareza, logo, da verdade, o que promove um ambiente turvo a qualquer pensamento com pretensões construtivas.
Mas essa preocupação com a eficiência e eficácia dum centralismo tão extremo, quanto disfarçado em Cabo Verde, não se contenta só com a instalação dessa mentalidade coletiva receosa da Praia, estendendo-se também para uma inquietação felina contra qualquer sinal que possa anunciar a mínima possibilidade de desenvolvimento para S. Vicente, como se isso significasse uma violência nacional contra uma capital.
Um exemplo recente é o Campus do Mar que, segundo preocupação do presidente do Pró-Praia, reforçada no Parlamento pelo deputado João Baptista Pereira, se tornou na necessidade mais aguda da Praia, e por isso, reclamado em todas as oportunidades, que não rareiam.
Desde os primórdios da independência que em S. Vicente, devido a sua velha tradição marítima e a sua estrutura portuária natural diferenciada, foi implementada uma ESCOLA NAUTICA; anos depois, essa escola evoluiu para ISECMAR, mantendo, no entanto, a sua localização fisica e as suas formações em S. Vicente; posteriormente, criou-se a UNI-CV tendo a ISECMAR integrado as suas estruturas como faculdade (ou departamento), mantendo as formações como sempre ministradas nas instalações em Mindelo, agora sob uma liderança exercida por uma reitoria sediada na Praia;
Porém, passadas todas estas décadas de tradição pacífica de formação na área do mar em S. Vicente sem fazer mossa à essa elite, da noite para o dia, a criação da UTA (Universidade Técnica do Atlântico), a promessa dum Campus do Mar e formações na área do mar, se tornaram no maior estrangulamento e agravo da capital, e na maior discriminação alguma vez feita à Praia.
Mas, numa sucessão de factos que mostram claramente que, o que efetivamente esconde toda essa enérgica e incongruente reação não será por certo qualquer discriminação contra Praia. Primeiro porque não foi naquele preciso instante da criação da UTA, como querem fazer crer, que as aulas foram roubadas da Praia e transferidas para S. Vicente, onde, como aliás bem sabem, sempre aconteceram desde a independência; segundo porque, tal como para a maior parte dos casos, em que é preciso que os cidadãos das outras ilhas se desloquem à Praia (formações no CERMI, no NOSI, na Escola de Hotelaria e Turismo, na Escola de Aministração e Negócios, no INIDA, na escola de formação profissional do Estado, ou mesmo na UNI-CV – só para citar estas, de entre tantas criadas pelo Estado na Praia), certamente aceitará essa elite que o inverso também deva valer, e que gentes de Santiago também hão-de ter de se deslocar a outras ilhas para realizarem as suas formações.
Um raciocínio lógico tão natural e simples que os poderia conscientizar para pararem com esse folclore repetitivo e barulhento, sempre quando utilizam exasperadamente frases do tipo, “reparem que, hoje em dia neste país, se um jovem de Santiago quizer fazer uma formação na área do mar tem de se deslocar a S. Vicente para o fazer”. Um teatro que não consegue esconder a forte tónica de centralismo e incoerência que transporta.
Assim, as únicas razões que sobram para este descontentamento residem no facto da UTA ter estatuto de Universidade Pública numa hierarquia não inferior à UNI-CV, no facto dela prever a sua internacionalização carregando juntamente o nome de S. Vicente, e principalmente no facto dela ter essa particularidade de ser “autónoma” com reitoria sediada em S. Vicente, assim como o Campus do Mar, o que pode prenunciar e permite perspecivar a tão desejada recuperação da ilha, para satisfação e auto-estima das suas gentes.
Ora, é precisamente esta perspectiva, que não passa ainda de uma mera perspectiva, da probabilidade de, em lá para a década dos trintas ou quarentas deste século, se começar enfim a ver S. Vicente a recuperar a sua auto-estima, devido a essa ainda hipótese de voltar a se emergir como a ilha da liberdade, da espontaneidade, útil, autónoma, protagonista e competitiva de outrora, o que efetivamente desagrada essa elite que vê assim ameaçado todo o seu persistente foco e esforço para tentar consolidar a irreversibilidade da marginalização de S. Vicente no contexto cabo-verdeano.