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Um Estado Crônico de Brutalidade: a necropolítica contemporânea empreendida contra os povos originários do Amazonas

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Por: Alcides Lopes (PhD)

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No último dia 6 de junho, quando abri o aplicativo do whatsapp no meu smartphone às 7h00, ao acordar pela manhã, e acedi ao grupo do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE), tudo parecia decorrer tediosa e tipicamente normal, no mundo da antropologia. Entre as mensagens postadas na noite anterior, algumas temáticas chamavam mais atenção do que outras: as campanhas em torno de doações para os indígenas em contexto urbano, devido as fortes chuvas; uma reportagem sobre Tibira do Maranhão, a primeira vítima indígena de homofobia no Brasil; recomendações de leitura de textos sobre as políticas de saúde indígena, convites para eventos acadêmicos etc.

Nos últimos anos – mais explicitamente, desde 2016 – os povos originários, sua fauna, flora, recursos naturais e minerais subterrâneos têm sofrido uma intensificação da exploração, coerção e dominação predatórias, através de uma série de violências patrocinadas pelo capitalismo neoliberal, com a conivência do Estado, que perpassa todas as estruturas institucionais e legislativas, bem como as forças de proteção e salvaguarda dos direitos, patrimônios naturais e riquezas das terras, rios e florestas pertencentes aos povos indígenas da floresta amazônica.

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O governo instituído no dia 1 de janeiro de 2019, através da tomada de posse do 38º Presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro e seu Vice Hamilton Mourão, registrou uma virada truculenta à direita. Este fato resulta, em parte, de processos de demonização do Partido dos Trabalhadores e da prisão ilegal, deselegante e indevida do Presidente Lula da Silva, comandada pelo então Juíz Moro. 

Contudo, é auspicioso termos em conta o facto de que a sociedade brasileira foi interrompida, propositadamente, pelo golpe de 2016 perpetrado contra a Presidenta Dilma. O Brasil era então um país promissor. Um país de desenvolvimento e de reconhecimento das próprias potencialidades na educação, na pesquisa, nas políticas públicas, no combate e redução da pobreza, na eliminação da fome, no  mercado interno e mundial.  A fatídica noite na qual hordas de políticos ovacionaram a tortura, ofenderam suas próprias mães e, no final da história, toda a gente foi dormir entorpecida, permanece até hoje. 

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A apatia irresponsiva e perene, gravada a ferro-em-brasa na alma de parte da população brasileira, anuncia uma tragédia que teima em reproduzir o “mau encontro, sobre a redução de potência de uma cultura em detrimento da outra, sobre os afetos tristes gerados desse cruzamento.” Ironicamente, no discurso de posse, Bolsonaro afirmou que iria se pautar pela vontade de cidadãos “que desejam conquistar, pelo mérito, bons empregos”, que “exigem saúde, educação, infraestrutura e saneamento básico”, que “sonham com a liberdade de ir e vir, sem serem vitimados pelo crime”.

Evidentemente, toda a dissimulação esboçada na artificialidade das palavras vazias do discurso presidencial não tardou a ser desmascarada. O malfadado “ciclo virtuoso” da economia nunca aconteceu, o viés ideológico do neopentecostalismo acentua-se com o bolsonarismo e o antipetismo, o setor agropecuário continua desempenhando, por um lado, um papel corrosivo, e por outro lado, violento como uma tempestade perfeita, uma desarmoniosa dilapidação dos recursos naturais e poluição desastrosa do meio ambiente. 

Os famigerados empregos nunca apareceram, a economia cresceu menos do que nos anos anteriores, e ao fim do primeiro ano de governo, o desmatamento, a grilagem e a mineração desenfreados, com forte patrocínio do Ministério do Meio Ambiente sob a batuta maligna do Ricardo Salles, transformaram o país num vilão ambiental aos olhos do mundo. Não apenas a área do meio ambiente, mas também, nas áreas da educação, saúde, ciência, tecnologia e cultura, devido aos cortes abissais nos orçamentos e aos dados baseados em estatísticas ruins.

Em dezembro de 2019, após quase um ano de governo, Bolsonaro acumulava 36% de rejeição. Pior do que a avaliação do presidente Collor de Mello, quem, em 1991, confiscou as poupanças bancárias da população brasileira, assim que assumiu a presidência. No seu primeiro ano de mandato sofreu alta rejeição: 34% dos eleitores avaliavam o então governo péssimo ou ruim. 

Estudos iniciais sobre o mau desempenho do governo Bolsonaro apontam as áreas da saúde, educação, segurança e desemprego como as mais problemáticas. Em 2019, a população brasileira enfrentou duas grandes crises ambientais: o rompimento das barragens em Brumadinho e as manchas de óleo que se propagaram desde o litoral nordestino até o Sul do país. Entretanto, o protagonismo do governo perante a comunidade internacional despontou, através do desastroso aumento no desmatamento na Amazônia Legal, registrando um crescimento de 29,5% em relação ao ano anterior, com o maior índice desde 2008.

Evidentemente, as personificações do apocalipse durante os picos das devastações provocadas pelas gigantescas queimadas recorrentes e a destruição dos biomas no Amazonas, no Cerrado e no Pantanal têm sido amparadas por medidas que favorecem este estado de quase exceção. 

Somente no ano de 2019, o governo extinguiu a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas do MMA; a Subsecretaria Geral de Meio Ambiente, Energia e Ciência e Tecnologia do Ministério das Relações Exteriores; a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas do MMA; transferiu o SFB (Serviço Florestal Brasileiro) do MMA para o Ministério da Agricultura; reduziu o número de conselheiros do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente); exonerou e substituiu lentamente, de forma descontinuada, 27 superintendentes estaduais do Ibama.

Desde a primeira avaliação anual do governo Bolsonaro, especialistas e ambientalistas alertam que, em nenhum governo democrático brasileiro, houve a atitude, por parte dos dirigentes, que favorece o desmatamento segundo o argumento de que “quem estaria protegendo a Amazônia seriam os interesses estrangeiros e a indústria da multa.” A consequência desta abordagem tendenciosa levou, além da mudança de pensamento, ao completo desmantelamento dos órgãos de fiscalização.

Uma das principais bandeiras responsáveis pela eleição de Bolsonaro foi a suposta política de segurança pública, sob os maus auspícios do seu “super ministro” – o ex-juiz e atual candidato impugnado em São Paulo, Sergio Moro – aumentou significativamente a letalidade policial. Foram vários os decretos de Bolsonaro promulgados no intuito de flexibilizar o acesso às armas e ao pacote anti-crime, de Moro, aprovado com 11 vetos da Câmara. 

Perante os desdobramentos sinistros encapsulados nas medidas provisórias editadas pelo atual presidente brasileiro, apesar de ter a pior taxa de aprovação, apenas 49% contra os 58% de Temer, 74% de Dilma ou 90% de Lula, por exemplo, as análises aproximam as perspectivas e as intenções do governo Bolsonaro das facções. O aumento da totalidade de armas importadas a cada ano de 2016 até 2021 é absurdamente desproporcional. Por exemplo: em 2016 foram importadas legalmente, um total de 955 armas de fogo para o território brasileiro. Em 2017, foram 7.430; em 2018, 17. 497; em 2019, 37. 261; em 2020, 102,300; e 2021 119.147.

O leitor pode até tentar fazer as contas, mas, é provável que se perca. Pois, mais recentemente, o discurso que partiu do presidente do senado e outras entidades do Estado brasileiro é que as fronteiras foram rompidas. Há presença de cartéis internacionais na região amazônica atualmente. Há forças belicosas suficientemente arrojadas, a ponto de o presidente do senado alertar sobre a presença de um estado paralelo na região amazônica.

Eram onze horas e sete minutos da manhã do dia 6 de junho, quando um informe à imprensa, com mensagem de alerta sobre o desaparecimento, por mais de 24 horas, do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Don Phillips, foi postado no grupo de whatsapp do NEPE. O documento foi emitido, pela União das Organizações Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) e o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), e assinado pelos respectivos coordenadores, naquela mesma manhã.

O alerta sobre o sumiço do indigenista e do jornalista foi emitido no dia 5 de junho. Nos minutos imediatamente após o sucedido, integrantes da vigilância indígena, monitores do território, já apontavam suspeitos: Pelado, e pessoas do seu entorno. Segundo Vinicius Sassine, da Folha de São Paulo, a vigilância indígena documenta passo a passo o cenário de invasões à terra indígena Vale do Javari, protagonizadas principalmente por caçadores e pescadores ilegais. 

Através da triagem das mensagens trocadas por SMS pelos sentinelas da floresta, o pescador foi visto armado na região. Ao interpretarem o que estão acostumados a vivenciar e, principalmente, as movimentações que ocorreram nos dias seguintes ao crime, os vigilantes indígenas reuniram outras evidências cruciais para a investigação policial.

As mensagens de texto, coordenadas com os primeiros contatos estabelecidos com pessoas ligadas aos suspeitos, nas horas imediatamente seguintes ao desaparecimento e a realização das primeiras buscas, foram decisivas para um conjunto de evidências que permitiu uma antecipação, em vários dias, daquilo que veio a ser reconstituído na investigação conjunta da Polícia Civil do Amazonas e da Polícia Federal.

O indigenista Bruno Pereira havia mapeado a movimentação de invasores, o que possibilitou a interceptação de barcos transportando pesca ilegal e a destruição de mais de cinquenta balsas do garimpo no Rio Jutaí. O sucesso no combate aos criminosos custou-lhe o cargo, em vez de render uma promoção. Em outubro de 2019, foi exonerado da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) pelo então ministro Sérgio Moro e passou a trabalhar em Brasília. 

Estes manejos de afastamento forçaram Bruno a pedir licença sem vencimento e continuar a trabalhar na proteção da região como assessor da UNIVAJA. Bruno defendia a expulsão de invasores, alertava sobre a presença de caçadores e pescadores ilegais e denunciava a volta de garimpeiros em menos de um ano após a operação.

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Os vigilantes indígenas relatam que Pelado mostrou uma arma, para mais de uma dezena de pessoas, num gesto de demonstração de força. A cena foi fotografada e as imagens levadas à base da FUNAI. O episódio teria ocorrido na véspera do desaparecimento do indigenista e do jornalista. Por sua vez, dois celulares com as imagens e um caderno, com anotações sobre ilícitos e invasões à terra indígena, foram entregues a Bruno, que se encontrava pela região na companhia de Dom. 

Segundo os relatos, Bruno e Dom estiveram num encontro com outros indígenas para uma entrevista numa casa no lago do Jaburu. Na manhã de domingo, logo cedo, eles iniciaram a viagem de volta descendo o Rio Itaquaí. Passaram na casa de um líder comunitário, tio de Pelado, na comunidade de São Rafael, mas não encontraram o pescador. Tudo indica, pelo bilhete deixado, que Bruno pretendia discutir com ele abordagens sobre o manejo sustentável do pirarucu (peixe nativo muito apreciado na região).

Rio abaixo, pouco depois da comunidade de São Gabriel, onde vivia Pelado, o indigenista e o jornalista desapareceram. Foram mortos, homicídio qualificado. Assim apontam as investigações. Os corpos foram localizados dez dias depois. 

Num gesto humilde e grandioso de partilha da dor do luto, a viúva de Bruno, a antropóloga Beatriz Mattos, afirmou nas redes sociais:

 “Agora que os espíritos do Bruno [e do Dom] estão passeando na floresta e espalhados na gente, nossa força é muito maior”.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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