Por: Silvina M. Romano
Nos últimos meses, soube-se de um novo caso de lawfare nas relações da América Latina e dos EUA, que afecta o empresário colombiano, Alex Saab, que se encontrava a viajar para o Irão numa missão diplomática do governo da Venezuela, como Enviado Especial deste país, e foi preso em Cabo Verde. O governo dos EUA acusa-o de estar ligado a actos de corrupção e solicita a sua extradição para os EUA.
O facto deve ser de extrema preocupação para a comunidade internacional, pois transcende este caso particular e enquadra-se numa aplicação sistemática do lawfare, um modo de guerra que utiliza a lei como arma, instrumentalizando-a para fins políticos, económicos e geopolíticos, com grande impacto a curto e médio prazo.
Destacam-se dois aspectos neste caso, que estão também ligados à trajectória do lawfare, que tem uma longa e importante história na América Latina. O primeiro é que instrumentaliza a lei e o sistema judicial para fins de perseguição política. Caracteriza-se pela violação do devido processo judicial, abusando, distorcendo e até ignorando os quadros jurídicos estabelecidos a nível nacional e internacional. Por sua vez, o objectivo desta guerra é destruir a moral do inimigo, retirar-lhe apoio, isolá-lo, tal como definido por especialistas das Forças Armadas dos Estados Unidos. O alvo, a ser abatido, é um inimigo político, classificado como tal, porque alegadamente implica uma ameaça para a segurança nacional dos EUA, junta-se o facto de nada disto ser realçado pelas notas e opiniões divulgadas por inúmeros meios de comunicação social e redes sociais, contribuindo para que a opinião pública conceba estas estratégias como legítimas, numa batalha iminente e sem fronteiras, contra a corrupção.
O exposto remete-nos ao segundo aspecto, relativo à jurisdição que os EUA reivindicam para si mesmos no mundo inteiro, ou seja, a extraterritorialidade das suas regras. A detenção de Alex Saab (em violação do devido processo) é possível por força do braço longo do Gabinete de Controlo de Activos Estrangeiros (OFAC), do Departamento do Tesouro. O OFAC, estabelece sanções económicas unilaterais, que são categorizadas como instrumentos de soft power (poder suave), que vão desde a penalização a indivíduos e empresas, até ao bloqueio de empresas estatais e de economias inteiras, sob a presunção, mas não de provas de actos de corrupção. Em 2019, as sanções e o branqueamento de capitais impostas pelo governo dos EUA a várias pessoas e entidades atingiram os 2,4 mil milhões de dólares.
Mas o objectivo destas sanções é também geopolítico, especialmente para Donald Trump, que as aplica de forma mais sistemática e regular do que qualquer um dos seus antecessores. Utiliza-as para bloquear economias de Estados considerados uma ameaça à segurança dos EUA (Irão, Venezuela, Cuba). Com estes países, são evidentes as diferenças políticas e também a disputa por recursos estratégicos (petróleo, ouro, lítio, etc.) num cenário caracterizado por um declínio gradual da hegemonia dos EUA, ao mesmo tempo que a China assume maior destaque e visibilidade no cenário internacional.
Tanto as sanções económicas como a perseguição política através dos tribunais indicam a forma como o governo de Donald Trump instrumentaliza e põe em acção (ou ignora) determinados quadros jurídicos para fins políticos, económicos e geopolíticos, para “Tornar a América Grande Outra Vez”. O impacto nas instituições, nas leis e nas finanças a nível internacional é tão vasto como o âmbito extraterritorial da lei norte-americana e os enormes danos causados aos países sujeitos a esta forma de coerção.
/ Tanto as sanções económicas como a perseguição política através dos tribunais indicam a forma como o governo de Donald Trump instrumentaliza e põe em acção (ou ignora) determinados quadros jurídicos para fins políticos, económicos e geopolíticos, para “Tornar a América Grande Outra Vez”.
Os organismos internacionais, quer se ocupem de assuntos jurídicos, de direitos humanos, diplomáticos ou financeiros, devem tomar nota não só das violações do devido processo, dos abusos e da ausência da lei, em certos casos, como o de Alex Saab, aos quais poderíamos acrescentar os de Julian Assange, Jorge Glas, Rafael Correa, Evo Morales e muitos outros. Devem procurar, por todos os meios ao seu alcance, pôr um travão a esta instrumentalização da lei para fins políticos, económicos e geopolíticos por parte dos governos. No caso em apreço, um governo como o de Donald Trump, que foi precisamente submetido a um impeachment falhado por actos de corrupção no seu próprio país.
Silvina Romano, Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica da Argentina (CONICET)