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Pê d’Katxorr

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A Pandemia Covid-19 trouxe-nos o isolamento como palavra de ordem. Segundo todos os especialistas do planeta, o isolamento salva vidas, impede o colapso de sistemas de saúde muito mais avançados do que o nosso e poderá salvar a comunidade da pior expressão desta calamidade. Ainda assim, apesar dos apelos da OMS, das autoridades nacionais e da sociedade civil vemos que não é fácil para a Kriolagem ficar dentro de casa.

Há quem diga que o povo.cv só não gosta de sair para ir trabalhar. Mas esta nossa necessidade de estar na rua ultrapassa a irresponsabilidade social, a ignorância do comportamento viral, e até mesmo a nossa paixão avassaladora pela paródia. Ela resulta de algo muito mais profundo, algo que está inscrito no histórico do quotidiano.cv; que tem a ver com a forma como os nossos antepassados, remotos e recentes, vivenciavam as suas habitações. 

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Tradicionalmente, nas moradias da costa e ribeiras.cv, muito pouca vida era vivida em interiores. O sustento era arrancado do campo ou do mar e preparado a céu aberto – no terreiro ou no quintal, os palcos de todo o trabalho doméstico. As visitas eram recebidas em frente à casa, onde também eram contadas as histórias em noites de Lua cheia. Antes da chegada de electricidade e televisão ao país, o interior da maioria das habitações servia para guardar alguns magros valores, e albergar corpos em descanso; pouco mais.

Os bairros populares das nossas cidades contemporâneas mantêm ainda hoje, por tradição e necessidade, muitos dos hábitos habitacionais do campo. Na “zóna”, o espaço interior ordenado – assim como o seu derivado, a privacidade – continua a ser um luxo. 

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As casas são pequenas, de apetrechamento frugal, e a vida ainda é vivida maioritariamente em exteriores. O espaço público continua a ser uma componente central do quotidiano familiar e laboral: portas abertas, mulheres em frente às casas, meninos a jogar na estrada, jovens nas esquinas, homens nas praçetas e botecos. 

Mesmo no mais harmonioso dos lares populares – e com a garantia dos rendimentos habituais – a contenção de seis ou sete pessoas numa habitação diminuta exerce uma pressão negativa sobre as relações familiares. Mas para os que habitam lares menos harmoniosos – e para os milhares de trabalhadores informais, sem qualquer proteção social, que têm necessariamente que sair para ganhar a vida –  a permanência no interior não é apenas sufocante; ela acarreta custos físicos, emocionais e de subsistência potencialmente elevados. 

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A vida doméstica e profissional contida em interiores é uma novidade.cv, ainda restrita à classe média urbana. Para a maioria dos crioulos, um mandato de isolamento num interior é algo que contraria tanto a sua formação cultural basal, quanto as suas possibilidades práticas. Infelizmente, na presente conjuntura, o fraco acesso a interiores confortáveis pesa significativamente sobre a felicidade dos indivíduos.

Seja por tradição, claustrofobia ou sobrevivência, são poderosas as motivações que impulsionam muita da nossa Kriolagem para fora de casa. Porém – e é visível pela aderência espontânea de uma parte apreciável da população.cv ao isolamento – também há uma motivação brutal a mantê-la lá dentro: o pavor de um reencontro histórico com a Morte desregrada, uma circunstância bem viva na memória coletiva. 

Até bem pouco tempo – entre fomes, epidemias e a carência estrutural de recursos sanitários – o Cabo-verdiano mantinha um trato íntimo com a morte: morríamos e víamos morrer gente nossa todos os dias. 

Já nos desabituamos dessa intimidade: as classes populares trocaram a fome pela abundância de comida processada, que mata muito mais lentamente; as mães.cv são vacinadas contra o tétano; as crianças contra a poliomielite, e, apesar das graves deficiências do nosso sistema de saúde, as tragédias que vivemos nos dias de hoje resultam de quadros clínicos e problemas de gestão muito mais exigentes do que os de outrora. 

Mas os nossos velhos ainda se lembram das fomes trágicas da década de 1940; ainda nos falam do terror de abrir a porta de casa de manhãzinha, para se deparar com uma rua cheia de cadáveres. E o tempo em que assistimos o espetáculo inédito da morte quotidiana que se abateu sobre muitos dos países que nos precederam na pandemia, serviu para nos lembrar a intimidade do passado; e incutir-nos o devido pavor. Por obra desse pavor, temos contrariado, pela positiva, as previsões sobre a evolução de contágios no país; e os relatórios oficiais creditam a precocidade e extensão do isolamento.cv pela proeza. 

Pessoalmente, da minha janela do segundo andar, tenho acompanhado a diminuição progressiva do tráfico de gente pelas ruas do bairro, e visto crescer o número de crioulos auto-confinados nos quintais e terraços de Olt Morabeza e Txan d’Likrin. É lindo de se ver, tantos Cabo-verdianos concentrados na difícil tarefa de resistir ao impulso de sair: sozinhos ou em família, contemplando a baía, conversando, dançando e treinando, respirando ar livre – famintos de rua, mas tentando. Contra toda a sua formatação cultural e, tantas vezes, laboral. Bem haja.    

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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7 Comentários

  1. Excelente apelo descritivo ,sereno e pedagogo a unirmos no cumprimento das medidas necessário nesta etapa em q transita o COVID19 no pais , e ainda estacionário no exterior mantendo a carga viral lesiva .

  2. Beleza! Um artigo que faz a radiografia da sociedade cv até a medula e faz a minha veia correr tinto! Valeu!

    Vale lembrar que no mundo, a cada sete segundos, morre uma criança de fome. Calcula-se que, a cada dia, 100 mil pessoas morrem de fome ou de suas consequências e que o número de seres humanos com carências alimentares chega a 840 milhões. Entre estes, 27 milhões pertencem a países desenvolvidos. A subnutrição crónica, quando não conduz à morte física, produz frequentemente uma mutilação grave. Dados e reflexões semelhantes podem ser oferecidos com relação à saúde, moradia, educação e ao trabalho.
    O planeta também corre riscos e sofre agressões como o caso do Covid-19. Cuidar dele não é atitude romântica de ecologistas que amam belas paisagens ou preocupação de cientistas alarmados com o futuro da Terra. É uma necessidade básica para nossa sobrevivência. O planeta também precisa da solidariedade da humanidade inteira.
    Solidariedade aos povos em conflito: a preocupação é prevenir e resolver conflitos por meio de negociação, alerta prévio e ajuda humanitária. Grupos organizados com esses objetivos têm encontrado apoio da opinião mundial.
    A luta continua!

  3. Rosário!
    Precisas ir visitar as “fraldas” de Mindelo.
    A maior parte da população de S.Vicente está ali.

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