Morgadim: “A letra da música Cabo Verde d’one 2000 continua actual”
A mensagem da música “Cabo Verde d’one 2000”, que poetiza a “viagem” conturbada do povo cabo-verdiano e faz um apelo à justiça social, continua actual para o artista Joaquim “Morgadim” Almeida, compositor e intérprete dessa emblemática morna. Segundo o músico, apesar de estarmos em 2019, a vida do povo das ilhas continua a estar na balança, envolta num mar de amargura.
“Já vamos em 2019 e ainda estamos longe de atingir aquilo que sonhei. Realmente muita coisa não anda bem. Queria evitar dizer isso, mas a centralização tem contribuído para a situação de desequilíbrio social e económico que pude constatar nestes últimos três meses que passei em Cabo Verde”, defende esse consagrado artista, que, diz, já expôs a sua preocupação aos políticos tanto do PAICV como do MpD.
“Tenho amigos nesses dois partidos e digo-lhes aquilo que penso, com todo e devido respeito. Não fico e não posso ficar calado”, realça esse músico, que deu a cara na última manifestação popular organizada pelo movimento Sokols 2017 em S. Vicente. Um acto de cidadania que, a seu ver, deve ser entendido no seu contexto próprio. Aliás, Morgadim foi sempre um artista dotado de um olhar social bastante crítico. As suas numerosas composições comprovam isso. Ele que já retratou em várias músicas a vida conturbada dos emigrantes na Europa, assim como os malefícios que afectam a juventude.
Para este autor da célebre morna Cise, interpretada por Cesária Évora, os artistas devem ter a consciência do poder que têm nas mãos e saber usar a sua arte a bem da justiça social. Como ele próprio reconhece, é raro ver artistas cabo-verdianos a assumir determinadas causas, atitude que ele diz respeitar. Contudo, a seu ver, a classe deveria ser mais activa nesse sentido, ter a consciência de que a música é uma arma sociopolítica potente. “Na Europa, Brasil, Estados Unidos, por exemplo, os artistas dão a cara para campanhas de protecção ambiental e até nas eleições políticas”, lembra Morgadim, que enaltece o compromisso que, por exemplo, os rappers mindelenses têm tido com as causas sociopolíticas.
Embora resida na França há largos anos, Morgadim sente que tem uma dívida para com Cabo Verde. “E acho que não vou conseguir paga-la na totalidade. E não digo isso por demagogia”, salienta esse octogenário, que tem composto e cantado mornas e coladeiras ao longo dos seus oitenta e oito anos de idade.
A música, diz, é a sua terapia de vida. Mesmo quando está deitado, acrescenta, a sua veia criativa não dorme. “Tantas vezes, quando tenho dificuldades em adormecer, tenho momentos de inspiração. São letras e tonalidades musicais que assaltam a minha mente e são logo registadas com lápis e papel”, revela.
Nascido em S. Nicolau, mas crescido em S. Vicente, onde iniciou a sua formação musical, este fundador do famoso grupo Voz de Cabo Verde confessa nutrir um amor incondicional pela cidade do Mindelo. “Adoro esta palavra: Mindel. Quando era criança e adolescente costumava vaguear pelas ruas d’morada. Era um enorme prazer”, recorda o músico, que decidiu, entretanto, fazer uma homenagem à cidade banhada pela baía do Porto Grande. Assim, compôs a música “Mindel d’outrora, Mindel d’agora”, que pretende gravar com outros artistas logo que possível. Trata-se, segundo o artista, de uma canção provida de um “poema extraordinário” e que deverá ser cantada por ele, Constantino Cardoso, Carmen Silva, Edson Oliveira, Jorge Sousa e provavelmente Dudú Araújo. “Quando terminei de compor a música senti que não podia ser interpretada só por mim!”
Aos 88 anos, Morgadim continua activo, apesar de alguns problemas de saúde que o afectam. Sempre que chega a Cabo Verde de férias é convidado para participar em vários espectáculos. Isso é possível, diz, porque levou uma vida regrada, sem cigarro e sem paródias desmedidas. “Mas tenho a impressão que há alguém lá em cima que me ajuda: a minha falecida mãe”, confessa o autor do álbum “Um emigrante na França”, que compôs a música “Mãe” e dedicou-a a todas as mães do mundo, em especial à mulher da sua vida – Júlia Eugénia.
Falou um homem consciente.
Um homem que ainda não apanhou as doenças dos partidos.