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Ninguém é turista na sua terra!

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David Leite

Amigos, buscando conversa, têm-me perguntado o que penso do passadiço que leva os hóspedes do novo hotel “Four Points” directamente à praia da Laginha. Prefiro falar dos hotéis à beira-mar, sem distinção, pois o passadiço é consequência.

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Não me incomoda um hotel litorâneo encostado à rocha, como o hotel “Uril”, bem integrado na paisagem. Tão-pouco me fascina um hotel novo em folha na Laginha, açambarcando a vista para o mar e uma área nobre que, no meu modesto entender, teria sido melhor aproveitada com jardins e bangalós, teatro, cinema, feira, parque infantil, restaurantes gastronómicos, animações lúdico-culturais e desportivas… Seria turismo na mesma, sem agredir a paisagem e sem excluir os filhos das ilhas que também são filhos de Deus!

Bonito hotel sem dúvida, mas a mim não me espanta pouca coisa! O que me espanta é o deslumbramento de alguns – dir-se-ia os índios do Brasil quando viram desembarcar Pedro Alvares Cabral e a sua equipa! Mas isso foi há 525 anos e esses pobres indígenas nunca tinham visto um branco, quanto mais uma caravela!

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Quem já viu mundo não estala foguetes nem bate palmas a uma passarela suspensa dando acesso privilegiado ao areal da Laginha para um hotel de luxo all-inclusive! Eu teria aplaudido, isso sim, uma passarela de madeira para os nossos idosos, cadeirantes e deficientes com muletas poderem atravessar o areal até ao mar. Mas passarela é para turistas e, infelizmente, ninguém é turista na sua terra!

Deixar respirar o nosso litoral urbano

Não concordo – e não aceito – que a nossa vista para o mar seja reservada aos forasteiros! Turista com vista privilegiada para o mar é um turista de costas viradas para as pessoas!

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Eu veria com bons olhos hotéis construídos longe da ourela do mar, porque não em Horta-Seca, Monte Sossego ou Bela Vista! Digo hotéis de prestígio, de 4 estrelas! O que falta é segurança na via pública pois turistas inseguros não se aventuram fora da sua zona de conforto. É incrível como os pobres de espírito falam de turismo sem pensar na segurança, pois se nem sequer a temos para nós…

Houvesse segurança, um estrangeiro poderia, porque não, ficar hospedado num grande hotel a escassas léguas do mar. E com vantagens acrescidas, não só para o desenvolvimento dos bairros suburbanos como para o próprio turista. Afinal, de qualquer bairro um turista chega à Laginha – basta o hotel providenciar. Se preferir, aluga um carro, paga um táxi ou vai de autocarro. Melhor ainda, bota o pé na estrada com a sua turma!

A pé, os nossos visitantes sentam-se num café, almoçam num restaurante, entram num mercado, compram uns frescos, pegam umas lembranças numa loja, creme solar numa boutique… Param numa atracção na rua, falam com pessoas, se calhar fazem amizades durante o seu passeio. Enfim, consomem e socializam-se: ao chegar à praia, já descobriram a cosmopolita cidade do Mindelo, deram de ganhar ao comércio local. E assim deixaríamos o nosso litoral urbano respirar, ganhando com isso turistas e nacionais.

Recado aos “mercadores do templo”: turismo não é só praias e rochas!

Os “mercadores do templo” vão dizer que sou da “turma do bota-abaixo” (entenda-se mentes esclarecidas, capazes de enxergar mais de um palmo à frente do nariz). Estou-me borrifando – quando o dinheiro fala mais alto que o bom-senso, falam as vacas e cala-se o pastor!

Bota-abaixo são os adeptos do vale-tudo, os que “botam abaixo” um antigo consulado britânico recheado de história para em seu lugar plantar um hotel que nunca mais acaba nem sai de cima – mais um fantasma “para inglês ver”!

Bota-abaixo são os que usam dinheiros de origem duvidosa para apagar que nem borracha a nossa memória e plantar hotéis como quem planta árvores que não dão frutos. E se frutos dão, poucos ficam por cá. Já nem falamos dos projectos que só estragam a paisagem e nunca saem do papel!

Bota-abaixo são os espíritos tacanhos e venais que só conseguem ver o turista olhando o mar, bronzeando na areia ou galgando montanhas, com total desprezo pela nossa memória e identidade como nação. Os espíritos evoluídos vêm um Cabo Verde que não se esgota em exotismos puramente comerciais veiculados pelos habituais estereótipos para consumo turístico! Um Cabo Verde com alma, entenda-se com gente e com história, onde um hotel faz-de-conta não rende mais que o Fortim del-rei, os canhões de João Ribeiro ou um edifício consular com história!

Nota de rodapé

Por este andar, oxalá não passe pela cabeça a nenhum Chico-esperto impingir-nos uma sorrateira privatização de alguma parcela da Laginha, assim como quem não quer a coisa. Se alguém pensou, que reflita – se tentar, que se cuide!

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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