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Recordai “pit na mei d’ Baía”*

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* O Mindel Insite resgata o texto suporte do CD “Boas Festas” de Grace Évora, Bau & Dudu Araújo, mas que continua actual, excepto pelo facto de a Câmara Municipal de S. Vicente proporcionar uma grande festa na rua de Lisboa, logo depois dos fogos de artifícios, com artistas nacionais e estrangeiros, para as pessoas que não conseguem custear os tradicionais bailes do Réveillon. Leia e faça uma viagem a um passado recente da festa do Recordai. Boa leitura e “bom pit na baía”.

Por Kim-Zé Brito

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Mal Dezembro entra no calendário as rádios desengavetam o LP do malogrado saxofonista Luís Morais, intitulado “Boas Festas”, para passarem a rodar todas as composições por mais de 30 dias consecutivos. Este álbum tornou-se uma marca indelével da festa de S. Silvestre, tal é o sucesso deste trabalho, único na história da discografia cabo-verdiana. Digamos, “Boas Festas” anuncia a entrada da quadra natalícia e, quando pára de tocar, o novo ano já vai nos primeiros dias. 

Os cabo-verdianos admitem, sem renitência, haver uma cumplicidade harmoniosa entre a celebração popular de “S. Silvestre” e o LP desse artista mindelense, falecido em 2002, nos Estados Unidos da América, vítima de doença prolongada. Escutar as faixas do disco gera no espírito das pessoas sentimentos positivos, como paz interior, solidariedade humana e a valorização dos laços familiares.

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Enquadrada nas chamadas festas janeiras, herdadas do colonialismo português, S. Silvestre manteve a sua tradição secular em Cabo Verde, sendo actualmente uma das actividades sócio-culturais com mais “cotação” na ilha de S. Vicente, colocando-se no mesmo patamar que o Carnaval e o festival de música da Baía das Gatas. 

A forma como a população mindelense assinala a passagem de ano tem mantido as suas raízes, embora sejam evidentes os sinais de “modernidade” na era contemporânea. Neste capítulo, o elemento mais notado é o fogo-de-artifício, show de luxes que ganhou especial espectacularidade em 1990, para assinalar a entrada do ano 2000. A intensidade dos fogos atingiu tamanha amplitude que a cidade do Mindelo parecia estar debaixo de um forte bombardeamento aéreo. 

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Normalmente, os artifícios luminosos usados têm tonalidade vermelha, por serem os mais baratos. Na verdade, tratam-se dos sinais luminosos lançados pelos náufragos para sinalizarem as suas posições aos navios de resgate. Porém, por duas vezes, a cidade do Mindelo foi iluminada por fogos de artifícios de efeitos diversos, lançados do terraço do MindelHotel, situado junto à Praça Nova.

O apogeu dos fogos de luz acontece à meia-noite, altura em que os navios ancorados na Baía do Porto Grande, sejam eles estrangeiros ou nacionais, accionam os seus apitos para anunciar a chegada do ano novo. Uma sonoridade que desperta todos os sentidos dos mindelenses, provocando emoções contraditórias de alegria e tristeza no coração das pessoas.

A expressão “Pit na mei d’ Baía” carrega em si toda a força simbólica da festa de S. Silvestre, na ilha de S. Vicente. Esta tradição percorreu tempos pois, segundo o professor Moacyr Rodrigues, na década de 1920 as pessoas costumavam aglomerar-se no antigo cais da Alfândega para ouvir “pit na baía” e ver as pessoas atirarem-se ao mar. Isto após rodearem a igreja, algumas de joelhos no chão, para pagarem as suas promessas. 

“As pessoas iam para a ponta do cais e tinham muito cuidado para não serem atiradas à água, porque era hábito surgirem empurrões entre a multidão”, conta Moacyr Rodrigues, que admite desconhecer o verdadeiro motivo ou sentido do banho no mar, à meia-noite do dia 31 de Dezembro.

Algumas pessoas aventam que caem no mar com o propósito de “lavarem a alma” dos pecados cometidos no ano findo e entrarem no novo ciclo com o corpo e o espírito limpos. Outras saltam para a água meramente por feeling, influenciadas pelo ambiente festivo.

Entretanto, há relatos de casos de indivíduos que criaram esse costume movidos por outras razões. “O meu amigo Valdemar Baltasar, por exemplo, nunca deixava de ir tomar o seu banho à meia-noite. Era sagrado para ele porque nasceu nessa data”, dizia o artista Manuel d’ Novas, compositor que retracta na sua composição “Boas Festas” o ambiente festivo da noite de S. Silvestre vivido em S. Vicente: “pite na baía, sine n’ igreja, foguete na rua; povo na festa, ê novo ano q’ já bem entrá…”

Esta letra, acrescentava, descreve um ambiente social mais actual, que tende a fugir da década de trinta ou quarenta, quando ainda havia o hábito das pessoas concentrarem-se no cais da Alfândega. Contudo, os mindelenses continuam a ir tomar banho junto às ruínas do cais, mais concretamente na chamada praia d’ cachorro, na Avenida Marginal.

Festa na Praça Nova

No dia 1 de Janeiro a Banda Municipal percorre a cidade do Mindelo para desejar Boas Entradas a todos

Centro de todas as paródias na cidade do Mindelo, Praça Nova goza de uma preferência singular também na noite de S. Silvestre. Assim que os fogos iluminam o céu e os barcos accionam os apitos, é invadida por milhares de pessoas, vindas das zonas periféricas. Carros buzinando ficam a circular em torno desse espaço rectangular, enquanto os peões dão azo à sabura cantando e gritando consoante o sentimento de cada um.

“Os mindelenses têm uma relação incrível com a Praça Nova, que parece exercer um poder atractivo irresistível em toda a gente. Veja no Carnaval e durante a festa de S. Silvestre, todas as pessoas vão parar à Praça. Mas porquê?” questiona Jaqueline Flores, jovem estudante. 

Todo o tipo de peripécia pode acontecer nas imediações e em cima da Praça Nova, na noite de S. Silvestre. Rivais se cruzam, nascem novas amizades, bêbedos “apalpam” as mulheres, loucos impedem a passagem dos carros, foguetes são atirados para o ar e para o meio das pessoas, crianças fazem “rabata”, tudo sob a vigilância policial.

A festa continua no mar, onde grupos de amigos esbanjam cervejas e vinhos espumantes entre gritos de histeria, abraços, beijos, muita curtição. Rolam pela areia, mergulham no mar, correm de um lado para outro… Na estrada, onde os carros ainda serpenteiam, multas pulam ao ritmo da batucada carnavalesca ou rebolam ao som da música que sai de uma potente aparelhagem.

Em 2003, o esqueleto de um hotel situado na Avenida Marginal serviu como palco para um espetáculo que juntou milhares de espectadores. O show, que envolveu um coro liderado por Margarida Martins e uma orquestra comandada pelo músico Bau, durou duas horas e terminou com uma batucada pelas ruas da cidade.

A festa continua na Rua de Lisboa depois do fogo de artifício

Bailes de reveillon

O movimento começa a amainar na cidade por volta da uma hora da madrugada, altura em que as pessoas têm de regressar à casa e preparar-se para o baile de Réveillon. O som da música vindo dos vários hotéis, discotecas e casas particulares anuncia que chegou a hora do baile arrancar em força.

O número de festas pela ilha parece incalculável. Há convívios para todos os gostos e bolsos. Os bailes, sem excepção, decorrem até o nascer do sol. Algumas parecem infindáveis, pois as salas nunca ficam vazias e a música é non stop. Dois ou três dias de paródia, com bebidas e comida à farta. 

Por mais que os cabo-verdianos possam queixar da falta de dinheiro, sempre conseguem desencovar “financiamento” para as roupas, sapatos, perfumes e o ingresso no baile de fim d’ ano. Algo muito parecido com aquilo que acontece pelo Carnaval. 

Algumas famílias gastam o vencimento e o prémio do décimo terceiro mês em menos de duas semanas. Depois ficam à espera do final do mês de Janeiro, que, como se costuma dizer, parece ter quarenta e cinco dias. O certo é que muitas pessoas esmeram-se nos bailes de Réveillon, usando roupas finas, perfumes e sapatos de marca, como se o fim d’ ano significasse o final da vida na terra no dia seguinte. 

No regresso à casa, quando o sol já irradia a sua luz com alguma intensidade, é usual as mulheres tirarem os sapatos de saltos e caminharem com o pé chão. Por mais dorido que os pés possam estar, o caminho para casa nem sempre é linear. Há sempre a tentação para se dar mais um salto na Praça Nova, para ouvir a Banda Municipal tocar ou então passar pelos lados da praia da Lajinha e refrescar os pés no mar. Isto quando não apetece tirar a roupa e dar um mergulho na água quente e transparente.

“Tocá recordai” 

A palavra recordai personifica a festa de S. Silvestre, em Cabo Verde. Recordai é o nome dado a uma pandeireta feita de madeira, pregos e tampinhas das garrafas de cerveja. Este instrumento, usado especificamente na noite de S. Silvestre pelas crianças e grupos de músicos adultos, foi trazido de Portugal, país onde, segundo Moacyr Rodrigues, era usado pelos jovens mancebos quando eram chamados para a tropa. “Não era hábito usarem o instrumento nas festas de S. Silvestre em Portugal”, afirma o estudioso. 

Em Cabo Verde, o termo “recordai” exprime tanto o nome dessa espécie de chocalho como a própria festa de S. Silvestre. Este nome, por aquilo que se depreende, terá sido extraído da letra da canção portuguesa originária da festa  e que diz “recordai aqueles que estão a dormir”. Para Moacyr Rodrigues, a expressão tem o sentido de “voltar a acordar” e não tem relação directa com o verbo recordar. No entanto, fica no ar a interrogação se os cabo-verdianos não terão feito uma adaptação crioula da letra.

Várias músicas são cantadas no dia de S. Silvestre pelas gerações mais recentes. Artistas como Manuel d’ Novas e Paulino Vieira chegaram a gravar novos temas, que passaram a ser tocadas na noite de S. Silvestre. Mas parece claro que a canção-mãe desta celebração é o “Boas Festas”, uma música supostamente originária da ilha de Santo Antão, e que faz parte da coletânea de Luís Morais.

A letra começa por dizer “Nha irmon Manel tem um bode modje capote, el tel marrode na ladirinha di mon pa trás…” Ora, segundo Manuel d’ Novas, “Ladirinha d’ mon pa trás” é uma localidade de Santo Antão e a gente da ilha costuma matar animais, nomeadamente bodes, pela festa de S. Silvestre. 

A letra desta canção, que foi recuperada pelo grupo Cordas do Sol, tem vindo a ser “simplificada” ao longo dos tempos, principalmente pelas crianças. Para Moacyr Rodrigues, essa adulteração tende a afectar a tradição da festa de S. Silvestre, em todas os sentidos. Como diz, antigamente as pessoas preocupavam-se em conhecer as palavras das músicas e sabiam cantar, algo que tende a desaparecer entre os mais novos. Acredita que o evento tem vindo a perder essa magia, pelo facto de as pessoas não conhecerem bem a música e o próprio sentido da celebração de Boas Festas. 

“S. Silvestre é uma festa tradicional de cariz profano. Era hábito oferecerem cuscuz com café, uma prenda ou dinheiro aos tocadores. Eram grupos de tocadores de violão, cavaquinho, gaita e recordai, que saiam a dar as boas festas em casa dos amigos. Suponho que esse hábito terá sido introduzido na ilha de S. Vicente por pessoas originárias da Boa Vista”, diz Moacyr Rodrigues. 

Vários artistas e compositores cabo-verdianos consagrados chegaram a pertencer aos grupos que costumavam tocar S. Silvestre pelas ruas de S. Vicente. Manuel d’ Novas, Morgadinho, Bau, Manel d’ Ti Djena, Quim Alves, Biús, Malaquias são alguns nomes sonantes da cultura cabo-verdiana que passaram por essa experiência. O trompetista Morgadinho, por exemplo, diz guardar boas recordações dessa época, apesar de ter passado o último Fim d’ Ano em Cabo Verde faz 34 anos. 

“Guardo boas recordações na medida em que foi graças a essas tocatinas que comecei a aprender a tocar algumas músicas fora do contexto escolar. E a música de S. Silvestre é uma das primeiras que todos os jovens músicos querem aprender. Aprendi a música com facilidade e tenho muita nostalgia daquele tempo” , explica o autor da morna Cabo Verde d’ Ano 2000, que retém ainda na sua mente momentos de confraternização entre ele e os colegas da Banda Municipal de S. Vicente, por altura do dia 01 de Janeiro. 

Como o artista conta, costumava tocar nas festas organizadas no cinema Eden Park. Por volta da meia-noite, os músicos trocavam votos de feliz Ano Novo e ele partia a toda a pressa para ir cumprimentar a mãe, antes do “pit na Baía”. Ficava com ela alguns minutos e depois voltava a correr para o Eden Park porque a festa recomeçava à meia-noite e meia e prosseguia até o sol nascer. 

Emigrante em França, Morgadinho já passou o S. Silvestre em outros países da Europa e reconhece existir algo mais espiritual e sui generis em Cabo Verde, que é altura em que barcos tocam o “pit na mei d’ Baia”. Como diz, aquilo emociona as pessoas e arrepia os cabelos. 

“Se bo ca ti ta dá…”

O mês de Dezembro é vivido de forma particularmente intensa pelas crianças cabo-verdianas. Além de ser a data do Natal, anseiam a chegada de S. Silvestre, altura em que ganham a liberdade de circular pela rua à noite e amealhar algum dinheiro. 

Por tradição, quando as crianças – e os adultos – vão tocar o recordai em casa das pessoas, são atendidas e recebem uma moeda pelos seus votos de Boas Festas. São as crianças que dão inicio à festa do recordai, tamanha a ansiedade que têm de começar a facturar. Assim que o sol desce por detrás da silhueta do Monte Cara, tomam conta das ruas, munidas dos instrumentos tradicionais, como recordai, chocalhos feitos de caneca com milho no interior, gaita, violão …

Se na década de vinte ou trinta havia o hábito das famílias oferecerem cuscuz com café aos homens, hoje o que importa mesmo é o dinheiro. As pessoas que ficam em casa têm a preocupação de arranjar moedas de cinco e dez escudos para poderem satisfazer o batalhão de crianças que passam toda a noite a tocar. Os grupos podem ser compostos por dois, três, quatro ou cinco crianças, dependendo da idade delas e da relação de amizade que possam ter. No entanto, quando menos gente, mais “lucro” para cada um. 

A pessoa que recebe a dádiva fica conhecida por “Jorge”, por isso é hábito perguntar-se primeiro “quem é o Jorge”, antes de se entregar o dinheiro. “Jorge”, como diz a estória, é um indivíduo de “má consciência” , que faz a partilha do lucro consoante a sua conveniência. Sempre que pode “tira mais e deixa menos”, por ser o depositário do dinheiro, o “banqueiro” do grupo. Por outro lado, “Jorge” costuma ser a pessoa mais velha do grupinho, por conseguinte o mais forte e mais esperto. 

Ao longo da noite de S. Silvestre, as crianças tornam-se alvos fáceis dos mais crescidos. Aquele que se descuidar pode ver todo o seu rendimento desaparecer em segundo: basta sofrer uma “rabata”, uma espécie de assalto próprio da época, para ficar com a mão a abanar. 

Antes da meia-noite, as crianças regressam à casa dos pais para que possam “entrar” juntos no Novo Ano. Os pais abraçam os filhos, muitos em lágrimas de felicidade; outros mergulham os pensamentos naqueles que partiram. Para esses, o termo Recordai ganha mesmo o sentido do verbo Recordar …

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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