A pandemia da Covid-19, que fechou o mundo em casa, fez despontar uma onda de solidariedade pelo mundo, Cabo Verde incluindo, sem precedente. As plataformas digitais agigantaram ainda mais estas acções, que permitiram levar cestas básicas a milhares de famílias. Em S. Vicente, pessoas conhecidas, a título individual ou em representação de artistas, jogadores de futebol, associações, organizações da sociedade civil, grupos da diáspora, clubes desportivos, movimentos cívicos estão na linha da frente destas campanhas que, extrapolaram as fronteiras da ilha e conseguiram chegar aos quatro cantos do país. Era para ser um movimento temporário, mas tudo indica que veio para ficar. Mindelinsite conversou com pelo menos três dessas pessoas – Liliana Fonseca, Zeca Santos e Alveno Soares -, que já equacionam novas ideias e projectos solidários para o pós-pandemia.
-Por Constânça de Pina –
Ao Mindelinsite, Liliana Fonseca conta que sempre teve espírito solidário, talvez uma herança recebida da mãe enfermeira. Enquanto professora de educação física no Liceu Ludgero Lima percebeu que muitos alunos precisam de ajuda para pagar propinas, comprar materiais escolares e fardas. Decidiu ajudar e accionar a sua rede de amigos para apoiar. A única exigência era o aproveitamento escolar dos alunos. “Partilhei algumas informações sobre esta acção em uma página que criei no facebook, denominada Padic, nome do meu irmão falecido. Os meus amigos e conhecidos viram e partilharam as publicações e, desde então, passei a ser abordada por pessoas, inclusive desconhecidos, que se mostravam disponíveis para ajudar.”
Com a pandemia, Liliana revela que apercebeu que poderia alargar a sua ajuda às famílias. Inicialmente, recorreu a recursos próprios para montar cestas básicas para entregar a famílias conhecidas. Também disponibilizou uma certa quantia para distribuir na porta da Igreja de N. Sra da Luz. Mais uma vez, falou desta acção na sua página sem qualquer pretensão, mas acabou por ser surpreendia por uma avalanche de pessoas disponíveis a patrocinar mais cestas básicas. “Entrei então em contacto com a firma Bento SA e solicitei o número da sua conta bancária para as pessoas fazerem depósitos directos. Quando acumula uma certa quantia, montam cestas básicas e entram em contacto comigo. Então envio uma lista de nomes e contacto às pessoas para se dirigirem às suas lojas para fazer o levantamento. Na maior parte das vezes, não conheço as famílias que são contempladas porque, accionei pessoas da minha confiança que fazem a selecção daqueles que mais precisam.”
Até o momento, garante, já entregou mais de 800 cestas básicas em quase todas as zonas da ilha. Para isso, também contou com um apoio significativo da malta “Sky” no Luxemburgo e das “Deputadas Milionárias” nos Estados Unidos. Também ajudou a organizar um apoio em Fajã de Janela e zonas altas de Santo Antão e conseguiu entregar cestas básicas a mais de 20 discentes universitários de famílias de Boa Vista e Sal e que estudam em São Vicente. Neste caso em concreto, Liliana explica que os pais destes alunos perderam os seus empregos por causa da crise. Neste sentido, com apoio de dois empresários da ilha das dunas, resolveram apoiar estes universitários.
Mas Liliana não pretende ficar por aqui. Fruto dos conhecimentos apreendidos no terreno, pondera outras formas de ajudar. Conta, por exemplo, que visitou uma casa de lata de uma mulher de 30 anos com sete filhos a viver em péssimas condições, sem água, energia eléctrica ou esgoto. Aproveitou para fazer uma sensibilização em planeamento familiar, inclusive apresentando as opções para evitar mais gravidezes. Paralelamente, accionou a delegacia de Saúde para ver a possibilidade de conseguir uma consulta para a mulher com uma psicóloga. “É algo que quero fazer também.”
Executar acções no terreno
Funcionário da CV Telecom, Zeca Santos é conhecido, enquanto dirigente desportivo, animador de rádio e Rei do Carnaval de S. Vicente, mas agora aparece também como agente solidário. Este afirma que entrou nesta onda arrastado pelo artista Zé Delgado. “O Zé solicitou o meu apoio ao projecto ‘Stendê bô mon’, que conta ainda com parceria da Associação Ponta d’ Pom e do fotógrafo Zé Pereira, que é uma pessoa com influência nas redes sociais. Fizemos uma reunião via video conferência e delineamos uma estratégia. Outras pessoas tiveram conhecimento do nosso projecto, através de algumas fotografias das deslocações para as zonas da Lixeira, Iraque e Tchã d’ Vital e nos contactaram para disponibilizar apoio ou expor a sua situação.”
Foi assim que, numa primeira fase, conseguiram distribuir 150 cestas básicas. Agora pretendem fazer uma segunda ronda para entregar a mesma quantidade, alargando a acção para mais zonas, entre as quais Bela Vista, Fonte Francês, Espia, Fonte Inês e Fonte Filipe. Zeca explica que as pessoas carentes foram sinalizadas por contactos, que são considerados “influencers” nessas zonas, que identificaram as famílias que deveriam ser contempladas. Os dinamizadores do projecto ‘Stendê bô mon’ também identificam pessoas vulneráveis, designadamente cadeirantes, paraplégicos, famílias com grandes agregados familiares que estão a enfrentar dificuldades, de entre outros.
Instado a explicar os critérios para montagem das cestas básicas, este revela que estas foram montadas consoantes os géneros alimentícios disponíveis e as necessidades das pessoas. No entanto agora, com o conhecimento adquirido no terreno, ponderam incrementar ainda mais as cestas básicas. Perspectivam, igualmente, diversificar as suas acções. Mas Zeca Santos recusa, pelo menos por agora, avançar mais pormenores, deixando a primazia para Zé Delgado, enquanto mentor do projecto e que tem recorrido aos seus conhecimentos e contactos para concretizar estas ideias.
Projectos “Djunta mon”
Intensa tem sido também a actividade da plataforma “Djunta mon”, sob a égide de Alveno Soares. Este revela, neste exclusivo Mindelinsite, que em no passado mês de março começou a perceber algumas carências em S. Vicente, resultantes do impacto da pandemia. De imediato, accionou um parceiro suíço, que lhes permitiu montar o projecto “Lava bo mon”, que consistiu na distribuição de sabonetes às famílias. Mas, rapidamente, percebeu que era possível fazer muito mais.
“A plataforma Djunta Mon e outros quatro parceiros – uma agencia de turismo na Suíça, o grupo musical Rabassa em Holanda, que é formados por crioulos e holandeses, a Fundação Cabo Verde – Suíça e a minha agência de turismo – juntaram para criar um crowfunding, em que propúnhamos angariar quatro mil euros em dez dias. Em seis dias atingimos o valor, pelo que decidimos duplicar a aposta e aumentar mais dois dias. No final, conseguimos angariar oito mil euros. Depois outras pessoas nos contactaram dispostas a nos apoiar”, detalha Alveno Soares, realçando que, com este montante, montaram o projecto Cabo Verde & Friends, que permitiu ajudar famílias de São Vicente e Santo Antão com cestas básicas.
Na sequência, prossegue, surgiu dois convites de jogadores da selecção, através do capital Marco Soares. Montaram então o projecto “Driblando a pandemia” em que arrecadaram dois milhões e 65 mil escudos. “Com este projecto, entregamos mais de duas mil cestas básicas em todos os concelhos do país. Mas avançamos ainda com um terceiro projecto, que era uma continuação de CV & Friends, junto com uma agência de turismo onde trabalho como freelancer. Definimos um plano para recolher dinheiro para montar mais cestas básicas. Numa primeira fase contemplamos as ilhas periféricas, num valor de 4.400 euros. Contemplamos as ilhas Brava, Fogo, S. Nicolau, Maio e Boa Vista, que normalmente são esquecidas. Mas conseguimos o mesmo montante para S. Antão, S. Vicente, Sal e Santiago.”
Na distribuição das cestas básicas contaram com apoio de instituições locais, nomeadamente da Cruz Vermelha, que tem representação em todos as ilhas e que fez chegar as ajudas às pessoas que realmente precisam. Em São Vicente, para além da Cruz Vermelha, as ajudas foram canalizadas ainda para o Volunturismo S. Vicente, Comunidade Evangélica, Aldeias SOS e Delegacia de Saúde. “A plataforma Djunta Mon acabou por funcionar como uma ponte entre quem quer ajudar e quem precisa. Os valores arrecadados foram depositados numa loja e a CVCV fez o levantamento dos produtos para montar as cestas básicas, tendo em conta que está mais habilitada para tal. O nosso trabalho foi mais no sentido de facilitar e coordenar o processo. A Cruz Vermelho tem conhecimento, capacidade e informações pelo que entendemos seria um duplicar do trabalho sermos nós a montar e distribuir as cestas.”
Soares ainda não fechou as contas, mas acredita que conseguiram contemplar mais de duas mil famílias, mais de oito mil pessoas, utilizando os seus contactos e, principalmente, graças às redes sociais. “Colocamos mensagens e videos no facebook e Instagram e partilhamos nos perfis de pessoas que conhecemos. Foi graças a esta divulgação que conseguimos montar os projectos. Também ajudamos outras pessoas, caso do grupo que todos os anos faz o Tributo a Bob Marley, na Ribeirinha. Este ano fizeram o espectáculo em live e pediram a nossa ajuda para montar um projecto para ajudar as famílias que normalmente fazem as suas vendas de balaio durante o show. Os fundos arrecadados com a sua campanha, que vai até este sábado, vai reverter para estas famílias. E este é um trabalho que pretendemos continuar”, explica.
Para o futuro, este activista já pensa em abrir um centro na zona da Ribeira Bote para formar e capacitar e empoderar as pessoas economicamente. Soares alega que esta crise veio mostrar algumas fragilidades económicas que podem ser mitigadas. As actividades no centro serão patrocinadas por volunturistas europeus que visitam a ilha. A ideia, afirma, é trazer para Cabo Verde pessoas que fazem este tipo de turismo, ou seja, que mistura o voluntariado com o turismo e que têm uma forte consciência social e que aceitam visitar o país e a ilha para trabalhar e partilhar conhecimentos. Para isso, Soares já está a montar, por exemplo, workshops de desenvolvimento de competências para fortalecer a economia local e promover micro-empresas capazes de produzir e estimular o consumo de produtos locais para diminuir o fosso social.