A defesa das três crianças vítimas de violação sexual na localidade de Salamansa interpôs recurso da sentença de pena suspensa aplicada a Arlindo Matias pelo Tribunal de S. Vicente, acompanhado de um registo criminal do condenado. O documento revela que Arlindo Matias afinal não é réu primário, tendo sido condenado por um crime idêntico quando era soldado das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), em 1982.
Publicidade
Conforme o documento fornecido à redação do Mindelinsite, o Tribunal de S. Vicente chegou a sentenciar Arlindo Matias no dia 2 de fevereiro de 1982 a dois anos de prisão por um crime de violação sexual. Na altura era soldado das FARP e a pena foi suspensa por três anos.
A questão é saber qual o peso que esta informação pode ter na decisão do Tribunal da Relação de Barlavento. Isto porque, relembre-se, o segundo juízo-crime do Tribunal da Comarca de S. Vicente apresentou como argumentos para a medida de suspensão da pena aplicada a Arlindo Matias a idade, o tempo transcorrido desde o cometimento dos actos e por se tratar de réu “sem histórico criminal”.
Para dois juristas abordados pelo Mindelinsite, esse registo pode mudar tudo. Alegam que, no caso, mesmo que o condenado tenha pedido a reabilitação do seu cadastro, com a limpeza no sistema do seu passado criminal, deixa de ser primário e passa a reincidente. Um deles estranha até que o juiz tenha levado em consideração a idade do réu. Para ele, 62 anos não é suficiente para a justiça se abster de mandar um culpado para a cadeia, ainda mais devido a um crime de violação sexual de criança.
Na perspectiva do outro jurista, mesmo que o cadastro seja limpo, um suspeito com um registo criminal onde consta o cometimento de delitos nunca pode ser considerado primário. “Neste caso estamos perante um reincidente no mesmo tipo de crime. Se fosse primário, este facto jogaria como atenuante, sendo reincidente isto torna-se num agravante”, considera.
Consta que desde a altura do julgamento que os familiares sabiam do passado do réu e fizeram de tudo para conseguir o competente registo criminal. Tentaram através da Casa do Cidadão em S. Vicente, mas sem sucesso. Após a condenação na primeira instância, lida no dia 27 de dezembro, conseguiram obter o registo na Cidade da Praia, a tempo de ser anexado como prova no recurso ao TRB.
Uma das mães residente em Luxemburgo afirma, no entanto, que a informação era do conhecimento da advogada desde o início, mas não foi devidamente valorada pela mesma na fase de julgamento. Segundo J. Matias, a jurista chegou a afirmar que o registo já não existia e que, mesmo que fosse encontrado, não serviria para nada.
“Espero que desta vez seja feita justiça, que não sejamos de novo surpreendidas pela negativa. E espero que a nossa advogada seja mais diligente porque até agora não vi aquilo que ela prometeu fazer. Tentou sempre acalmar-nos, assegurando que tudo estava a nosso favor, entretanto não aceitou que a milha filha fosse depor no julgamento. Isto é lamentável e estranho”, revela essa emigrante.
D. Matias, pai de uma das crianças e que cresceu na mesma casa que Arlindo Matias, lembra-se de ter ouvido um rumor sobre esse caso. Na altura era criança, mas depois acabou por se recordar do sucedido. Adverte, no entanto, que não partiu dele essa informação, até porque não se recordava desse facto quando as suspeitas de violação foram afloradas em 2021.
“Confesso que não quis acreditar no início. Enquanto pai, esse caso apanhou-me completamente desprevenido porque era uma pessoa que tratava por irmão e tinha toda a minha confiança”, relata esse pai residente na Europa. Revela que quando regressou a C. Verde em 2021 telefonou para Arlindo Matias e fez-lhe uma simples pergunta: “Porquê?”.
Recorda-se que Arlindo respondeu que não fez nada, pelo que retorquiu se, nesse caso, as crianças estavam a mentir. “Ele disse-me estas palavras: ‘não sei dizer’. A nossa conversa terminou”, recorda D. Matias, para quem essa resposta foi a prova de que, afinal, os casos aconteceram. Acrescenta, aliás, que as três crianças relataram de forma coerente tudo o que aconteceu e acrescentaram que eram ameaçadas de morte caso contassem o que se passou.
A mãe J. Matias afirma que decidiu levar a filha para a Europa de tão preocupada ficou com as consequências da violação no estado emocional da menor. Acrescenta que ela era uma criança alegre e feliz, que perdeu a sua vivacidade por causa desse acontecimento. Além do mais, acrescenta, esse caso destruiu as relações familiares que eram sólidas. Ela própria diz que ficou bastante afectada com o sucedido e que teve mesmo de procurar apoio psicológico. “Pensei várias vezes regressar a Cabo Verde para estar com a minha filha, mas aguentei e hoje ela está aqui comigo. Não desejaria que nenhuma outra mãe passasse pelo meu sofrimento”, comenta.
Outra mãe das três vítimas, que pediu anonimato, lembra que desde o início rejeitaram a sentença e prometeram continuar a lutar. Afirma que o recurso era o caminho a seguir e sente que “desta vez” será feita justiça. “Para nós, a justiça será feita quando o culpado for para a cadeia”, pontua.
Polémica indemnização de 250 contos
Um dos aspectos duramente criticado pelos familiares foi o facto de o Tribunal de S. Vicente ter condenado o arguido a 4,8 anos de prisão e decidido suspender a pena por 4 anos, desde que o sentenciado faça o pagamento de uma indemnização de 250 contos a cada uma das três vítimas no prazo de doze meses. As mães consideraram esse ponto uma ofensa, agendaram uma manifestação à porta do Palácio da Justiça e deixaram claro que jamais iriam aceitar esse dinheiro.
Acontece, entretanto, que na sentença consta que “dos despachos constantes dos autos, as mães das menores, em respectivas representações, constituíram assistentes e deduziram pedido cível cujo montante fixou-se, cada uma, em 250 mil escudos”. Confrontadas com esse dado, as duas entrevistadas do Mindelinsite disseram estranhar essa informação. Asseguram que jamais fizeram qualquer pedido de indemnização. “Nunca pedimos indemnização e jamais iríamos aceitar esse dinheiro. Para nós isso constitui uma ofensa à honra e não nos vemos a usar esse dinheiro para compensar os danos que essa violação provocou nas nossas filhas”, sublinha uma das mães residente em S. Vicente.
“Dinheiro nenhum chega para pagar a honra e dignidade da minha filha e sobrinhas. Só para constar, posso ganhar 250 contos em um mês de trabalho em Luxemburgo”, frisa J. Matias. Para ela, se esse dado consta realmente do processo quem deve dar uma explicação é a defesa.
A expectativa destas mães é que o TRB seja célere a decidir o recurso e que não vejam, “de novo”, a sua expectativa atirada ao chão.
Abordada pelo Mindelinsite, a advogada das vítimas negou tecer comentários sobre o processo. A jurista argumenta que ainda não houve uma decisão do Tribunal da Relação de Barlavento, pelo que prefere aguardar. Informada das críticas das mães sobre o seu desempenho e atitude, (uma das mães afirma que a família foi pressionada pela advogada a fazer pagamentos avultados e em cima da hora), disse que prefere esperar para falar numa outra altura.