A paciente Albertina dos Reis, em tratamento a um cancro do colo do útero em estado avançado, confidenciou ao Mindelinsite que se sentiu abandonada à sorte com a recusa da Junta de Saúde para ser acompanhada pelo marido em Portugal. Para ela, essa decisão caiu que nem uma sentença de morte. Bastante afectada física e psicologicamente, já chegou a pensar em desistir da vida. Afirma, no entanto, que a sua força reside na esperança de voltar a abraçar o filho de oito anos que deixou em S. Vicente e cuidar da mãe, doente da diabetes. Ter o marido consigo em Portugal, segundo Albertina dos Reis, iria dar-lhe uma forte motivação e ajudar na sua recuperação.
Mindel Insite – Antes de iniciarmos esta entrevista gostaríamos de saber se está em condições de falar, visto que ontem estava bastante debilitada.
Albertina dos Reis – Sem problema, hoje sinto-me muito melhor. Ontem estava muito mal. Tive uma hemorragia, as minhas plaquedas caíram e recebi duas bolsas de sangue… Fiquei sem forças.
MI – Conseguiu dormir?
AR – Sim, deram-me remédio para combater a dor e pude dormir.
MI – Sabemos que está numa situação complicada em Portugal por conta da sua evacuação médica. O que nos pode dizer sobre esta questão?
AR – É uma situação mesmo complicada. Vim de Cabo Verde para Portugal em novembro sozinha, sem nenhum acompanhante. Tive que andar de um lado para o outro nos expedientes e acabei por atrasar o início do tratamento. Tenho passado mal porque tenho muita dor nas costas e na barriga, perco muito sangue com constantes hemorragias que me obrigam receber sangue. Hoje faz 45 dias que estou internada no hospital. Imagine um doente internado e que não tem ninguém para pedir que lhe lavem uma simples peça de roupa.
MI – A principio deveria ter viajado acompanhada?
AR – Sim, antes de vir para Portugal estive mais de 3 meses na cidade da Praia e não me deram um acompanhante. Fazia quimioterapia na quarta-feira e fui muitas vezes ao hospital sem a mínima forca, quase a desmaiar. Um dia estive prestes a desmaiar, mas tive a sorte de encontrar uma amiga perto do hospital Agostinho Neto. Mas, assim que chegamos ao hospital, sofri um desmaio. Disseram-me que é a Junta de Saúde que decide se o paciente tem direito a acompanhante, não me concederam esse direito e eu não tinha muita informação sobre esse processo.
No dia 23 de novembro de 2022 fui evacuada para Portugal, onde estou até hoje. Estou longe de tudo e de todos, a morar sozinha num quarto que aluguei. Sem ninguém para cozinhar-me um pouco de comida. Há uma rapariga que mora no prédio, mas ela é estudante, sai de casa logo cedo para as aulas e regressa praticamente à noite. Quando pode, faz-me um pouco de comida porque a dor não me permite fazer nada.
MI – Sabe que o MI fez um contacto com o Ministério da Saúde sobre a sua situação e fomos informados que a Junta Médica não deu autorização para ser acompanha pelo marido para Portugal…
AR – Sim, fui informada disso. Assim que fiz a primeira consulta em Portugal a minha médica-assistente foi clara. Ela disse-me que precisava de um acompanhante por conta do tratamento que ia fazer, porque ia fazer quimioterapia e radioterapia e podia haver a necessidade de cirurgia. Eu disse-lhe que fui sozinha e ela me deu um papel em janeiro deste ano para que me arranjassem um acompanhante. No entanto, disseram que o documento não estava completo porque ainda não tinham decidido ao certo como seria o meu tratamento. Fiquei à espera até fevereiro e, no dia 3, decidiram que iria fazer quimioterapia e radioterapia. A médica voltou a dar-me o tal documento que fui entregar à Embaixada de Cabo Verde em Portugal. O passaporte do meu marido estava caducado na altura, mas agiu rápido, aprontou tudo e ficou à espera da decisão da Junta de Saúde. Entretanto, acabei por saber que o parecer foi negativo.
Desiludida com a decisão da Junta
MI – Como recebeu a notícia da decisão da junta?
AR – O meu marido não me disse nada, ele não teve coragem de dizer-me porque sabia como eu estava mal nesses dias. Soube pela minha filha que vive na Itália porque ela tinha a consciência que cedo ou tarde eu acabaria por saber. Fiquei profundamente triste. Sou uma funcionária do Estado, trabalhei no Cartório, tenho dado a minha força laboral para ajudar o meu país e sou tratada desta forma. Mas, mesmo que não trabalhasse para o Estado, sou uma cidadã cabo-verdiana que merece o devido respeito e consideração do meu país. E estamos a falar de alguém doente de cancro, não se trata de uma simples dor de cabeça ou de uma gripe. E o meu cancro já passou a fase inicial, está na fase três pelo que se alastrou pelo meu corpo. Tenho de fazer um total de 25 sessões de radioterapia agendadas – faço uma por dia – e ainda uma sessão por semana de quimioterapia.
MI – Como se sente quando faz esses tratamentos?
AR – Perco toda a força, não consigo comer, tenho enjoos, tonturas, hemorragias, dores permanentes pelo corpo… Já sofri vários desmaios. Hoje é um dia diferente, estou sem dor, mas estão a medicar-me de quatro em quatro horas para poder descansar-me. Pedi para ficar internada para não ficar sozinha em casa. Hoje faz 45 dias que estou cá.
MI – E não recebe a visita de nenhum rosto familiar?
AR – Uma vez ou outra aparece alguém aos sábados ou domingos, mas por pouco tempo porque o hospital estabelece o horário de visitas. Se o meu marido estivesse cá ele teria que respeitar esse tempo. Entretanto, fico cá sem ninguém para lavar-me uma simples peça de roupa. Sou obrigada a vestir roupas do hospital e a usar fraldas como seu eu fosse uma bebé.
MI – Além da ajuda de alguém para fazer algumas tarefas precisa do apoio psicológico que só um familiar e amigo pode lhe dar.
Pensar em desistir da vida
AR – Isto é muito mais importante; ter o meu marido aqui comigo seria uma motivação extraordinária. E ele está disposto a vir ajudar-me. Há momentos que penso em desistir da vida, só para ter uma ideia do meu estado emocional. Ontem estava tão transtornada que o psicólogo veio falar comigo. Ele disse-me que estou muito abalada e que não era para menos.
MI – Pelo que diz, foram os médicos portugueses que defenderam a necessidade de ter um acompanhante…
AR – Exacto, foram eles que me deram um relatório clínico a explicar o meu estado de saúde, o nível da minha doença e o tratamento que estou a ser submetida. Não fui eu a pedir, mas sim uma ginecologista que teve essa iniciativa.
MI – Sentiu-se abandonada à sorte com a recusa da Junta Médica de autorizar a ida do seu marido para Portugal?
AR – Claro que sim, fui abandonada à própria sorte, como se fosse uma sentença de morte. Se eu estivesse em Cabo Verde poderiam ver o que tenho estado a passar. Mas estão longe, quem está aqui comigo é que está a ver. Em Cabo Verde não há tratamento por radioterapia e não sabem os efeitos que causa. E mesmo que tivessem uma ideia, só quem sente isso na pele sabe o que faz.
MI – E o que provoca?
AR – Ficamos com sensação de enjoo, tontura… Pior ainda é a quimioterapia, que nos provoca vómito, tira-nos a vontade de comer, dores fortes pelo corpo, ficamos completamente transtornados. Isto depende de cada pessoa.
25 sessões de radioterapia e o renascer da esperança
MI – Precisa fazer 25 sessões de radioterapia e já concluiu 15. Os médicos já lhe disseram que, se aguentar esse tratamento, tem boas hipóteses de recuperar a saúde?
AR – Dizem que tenho chance de cura. Há dias falei com um profissional que me faz a radioterapia e ele disse que o tumor está a diminuir. Que tenho as minhas hipóteses. Depois destas 25 sessões tenho mais duas de radioterapia, mas um pouco diferentes. Vão meter-me um cabo pela vagina até tocar o útero e direcionar o raio directamente para o útero. E disse que vou precisar de alguém comigo nessas sessões e eu não sei quem será. Enfim…
MI – Depois de tanta luta ainda mantém a esperança na recuperação?
AR – Claro que sim, tenho um filho de oito anos de idade que deixei em Cabo Verde e tenho fé de voltar a abraça-lo e ajuda-lo na sua educação.
Apelar ao “humanismo” da Junta
MI – Se tivesse oportunidade de falar com os médicos da Junta de Saúde o que lhes diria?
AR – Pedia-lhes para terem mais um pouco de humanismo e sentido de dignidade pelas pessoas. Eles não têm a noção daquilo que estou sofrendo, são médicos, mas não são pacientes. Só quem está doente sabe o que passa. Acho que não podem ignorar um pedido de uma médica que está aqui comigo e que pertence a um país com o qual Cabo Verde tem cooperação na área da saúde. Se podemos ser enviados para Portugal para tratamento porque aqui têm mais competência técnica, por que razão ignoram um parecer de quem está no terreno a trabalhar? Isto é falta de respeito a todos os níveis.
MI – Acha que ainda é possível a Junta rever a sua posição?
AR – Gostaria e peço que revejam essa decisão. E espero que seja o mais rápido possível, antes que seja tarde demais.
MI – Se o seu marido surgisse à sua frente neste momento, o que isso iria significar para si?
AR – Credo, isso iria encher-me de força e esperança. Teria quem cuidasse de mim, com quem partilhar as minhas angústias e que me pudesse dar forças para continuar esta luta.
“Senti que o meu mundo acabou quando soube que tinha cancro”
MI – Em qual estágio estava o cancro quando foi descoberto em S. Vicente?
AR – Já estava um bocado avançado. Fui enviada em julho de 2022 para a cidade da Praia e comecei tratamento de quimioterapia a 3 de agosto. No dia 15 de novembro regressei para S. Vicente e no dia 23 de novembro fui evacuada para Portugal.
MI – Como poderia descrever a sua vida desde que descobriu que tinha cancro?
AR – Quando a minha médica disse-me pela primeira vez que tinha cancro recebi a notícia com “inocência”. Passado um tempo é que caí em mim, mas, como ainda não tinha recebido o relatório da biópsia, pensei que não seria nada de grave. O resultado chegou e mostrou que estava com uma lesão no colo do útero. Fiz a biópsia a 12 de maio e 20 dias depois fui receber o resultado. A carta foi aberta pela médica à minha frente e ela disse-me disse que infelizmente foi confirmado que eu tinha um câncer. Sai da sala e fui para o quarto onde estava internada e deitei-me na cama a chorar, ciente de que a minha vida acabou. Pensava no meu filho menor… Nessa altura a minha médica defendeu que eu deveria ser evacuada para Portugal, mas fui enviada para Praia, onde passei três meses. E fui evacuada para Portugal por pressão da minha filha que ficava a telefonar para o Ministerio de Saúde de Portugal para que me marcassem a consulta. Até que foi possível a evacuação em novembro.
MI – Quando estava em Cabo Verde já sabia qual era o grau de contágio da doença?
AR – Em Cabo Verde não fui muito bem elucidada sobre este aspecto porque falavam basicamente do colo do útero. Em Portugal a minha médica disse que, quando pediram a biópsia, o cancro já estava no nível dois, tinha invadido a vagina. Ela disse-me que qualquer ginecologista poderia constactar isso facilmente. Quando cheguei fiz um exame que mostrou que já tinha atingido o estágio três.
MI – Tem estado com uma voz clara e firme nesta entrevista. Era assim que gostaria de continuar a passar os seus dias?
AR – Sem dúvida, estou sem dor e isso é um grande alivio. E gostaria que as coisas fossem melhores para poder voltar para a minha casa e cuidar do meu filho e da minha mãe, que é diabética.