Américo Medina*
Durante décadas, os governos de Portugal e de Cabo Verde alimentaram uma narrativa que já não se sustenta no século XXI: a ideia de que as suas companhias aéreas nacionais, TAP e TACV, são pilares indispensáveis do turismo e motores estratégicos de desenvolvimento. Essa retórica centralista e saudosista tem servido mais para justificar decisões políticas do que para responder a necessidades reais de conectividade e competitividade…(!) – Pior: tem custado caro aos contribuintes de ambos os países e distorcido os ecossistemas do transporte aéreo.
Os mitos TAP&TACV e a falácia da centralidade turística
Em 2023, Portugal recebeu cerca de 30 milhões de turistas. Ora, desses, menos de 15% chegaram através da TAP, e mais de metade dos passageiros transportados pela companhia estavam apenas em trânsito no Aeroporto Humberto Delgado. A empresa e governantes (como em CV) continuam há décadas obsessivamente centrada no hub de Lisboa com cerca de 90% das suas operações focadas na capital, o que penaliza a coesão territorial, esvazia o potencial de hubs alternativos como o Porto e Faro e agrava as desigualdades regionais.
A presença irrelevante ou ausência da TAP em mercados estratégicos – Ásia, Golfo Pérsico, América(s) – retira-lhe capacidade para ser um verdadeiro promotor da conectividade global portuguesa, sobre o qual se fala ou se “delira”. O seu modelo de negócio é um labirinto autofágico, orientado para o tráfego de ligação Europa–América, usando Portugal como ponto de escala e não como destino final.
TACV: entre o delírio nacionalista e a irrelevância operacional
Cabo Verde segue, com atraso e mais precariedade, a mesma lógica. A alma-gémea-anã TACV-CVA, opera hoje com frequência errática rotas inconsistentes, tarifas não competitivas e cancelamentos em série, os prejuízos acumulam-se. Segundo dados orçamentais (muitos dados estão ocultos), a companhia absorveu mais de 3 mil milhões de escudos (cerca de 27 milhões de euros) em apoios diretos e indiretos do Estado nos últimos cinco anos, entre subvenções, capitalizações, garantias soberanas e isenções fiscais.
Em 2024, a TACV-CVA transportou menos de 80 mil passageiros, uma gota num oceano turístico que ultrapassa os 900 mil visitantes internacionais por ano. Mais de 95% desses turistas chegaram por companhias estrangeiras – TUI, Transavia, TAP, Royal Air Maroc ou as low-cost europeias. O impacto da TACV-CVA na geração de procura é nulo, pelo contrário, os cancelamentos recorrentes e a ausência de fiabilidade operacional minam a confiança dos operadores turísticos e penalizam o destino.
Mobilidade interna: o elefante na sala
Num arquipélago onde a coesão territorial depende criticamente de ligações aéreas e marítimas regulares, a TACV-CVA deixou há muito de desempenhar um papel significativo na mobilidade doméstica. Desde a separação-amputação da operação interilhas (confiada à Bestfly e antes à Binter), a companhia nacional perdeu qualquer relevância no serviço público interno, não liga as ilhas, não assegura voos regulares entre as capitais regionais (Dakar, Bissau, Marrocos, São Tomé) e não oferece alternativas ao transporte marítimo precário que nos aflige e afunda!
A ideia de “companhia de bandeira”, “nosso orgulho” e outras tretas tornaram-se um fetiche obsoleto. O turismo precisa de conectividade eficiente, diversificada e acessível, e não de bandeiras num terminal vazio.
Casos internacionais: alternativas possíveis
Muitos países enfrentaram dilemas semelhantes e optaram por soluções racionais. O Paraguai, por exemplo, abandonou a sua companhia estatal (LAP) nos anos 1990 e hoje conta com conectividade garantida por operadores privados; as Seychelles, durante anos reféns da Air Seychelles, reestruturaram a companhia para se tornar asset-light e complementar as low-cost internacionais; nas Maurícias, a Air Mauritius opera de forma limitada e integrada num ecossistema competitivo, com forte presença da Emirates, Turkish, Air France e outras transportadoras de escala global; mesmo nas Comores, um arquipélago com algumas semelhanças estruturais, a aposta tem sido no reforço da conectividade regional com parceiros privados e acordos bilaterais de Open Skies.
Uma visão estratégica e contemporânea
Persistir na ideia de que a TACV será reerguida como motor do turismo cabo-verdiano é uma ficção perigosa, narrativa eleitoralista pura e dura sem sustentabilidade: a companhia não tem escala, nem frota, nem capital humano suficiente, nem reputação internacional; está fora dos grandes GDS (Global Distribution Systems), não tem acordos de codeshare relevantes, não opera com certificação IOSA da IATA, carece de certificação ETOPS, carece de um modelo de negócios viável.
É hora de desligar a máquina e “ligarmos” a…, dentre outros:
– Incentivos estruturados à entrada de operadores de nicho e low-cost;
– Reforço da diplomacia aeronáutica para firmar acordos bilaterais com mais países e derrubar algumas barreiras fictícias;
– Apoio direto ao passageiro (modelo PSO) nas ligações insulares — e não a companhia(s) falida(s)
O futuro não cabe em aviões (11) fantasmas
Cabo Verde precisa de abandonar definitivamente esse culto e “fraude” de companhia aérea estatal como símbolo de uma soberania rasca e “nosso orgulho”(!) – Isso pertence ao passado, obsoleto! Há muito que esse referencial mudou, o novo paradigma é o da eficiência, conectividade inteligente e complementaridade entre players privados.
A TACV, como hoje opera (TAP ipsis verbis) é peça de museu com custos milionários, não gera turismo, não assegura mobilidade, não promove desenvolvimento, destrói valor, não cria nada – apenas ocupa espaço e drena recursos!
Chegou o momento de aterrar no real.
* Consultor em Aerospace