Nelson Faria
Ao longo destas últimas semanas em Cabo Verde, a política ofereceu-nos um roteiro que, na minha perspetiva, oscila entre o absurdo financeiro, a sombra da opacidade e a inquietante ameaça à liberdade de expressão. Quatro pontos merecem destaque urgente na reflexão de qualquer cidadão atento e preocupado com o rumo do país.
1. O “Cambalacho” CVI-Governo – Um “monopólio” que afunda enquanto engorda?
A relação entre o Governo e a Cabo Verde Interilhas (CVI) é digna da mais intrincada novela. A empresa detém quase que a exclusividade do transporte marítimo entre ilhas, um serviço vital e estruturante, mas falhou redondamente nos investimentos prometidos não materializados, em condições mínimas não asseguradas e um serviço cronicamente aquém das expectativas de muitos cabo-verdianos.
Apesar deste histórico de algum incumprimento e da qualidade discutível, o contrato é renovado. Pior, surgem denúncias de que o contrato final diverge do contrato de concessão aprovado em Conselho de Ministros, negociada sob um manto de opacidade que ninguém consegue penetrar. Enquanto recebe avultadas subvenções do erário público, verdadeiros privilégios para um serviço discutível, a CVI corre por um direito a uma indemnização paralela, que pretende usar para… finalmente comprar barcos? A coreografia das declarações ministeriais, ora críticas, ora submissas, só adensa o nevoeiro.
Diante desta sucessão de factos, questiono, enquanto cidadão, não estamos perante um autêntico “cambalacho”? A paciência e o benefício da dúvida, perante tamanha evidência de disfuncionalidade e suspeita, já não são apenas ingénuos, são irresponsáveis.
2. 150 milhões de escudos num monumento – a irracionalidade financeira
Num ano simbólico, 50 anos de Independência, 35 de abertura democrática, é natural querermos celebrar com marcos perenes. A ideia de um Monumento Nacional à Liberdade e Democracia, em si, não é reprovável. O que choca, profundamente, é o preço astronómico: 150.000.000$00 (cento e cinquenta milhões de escudos – cento e cinquenta mil contos).
Num país onde os recursos são escassos e as prioridades gritam por atenção na educação com infraestruturas e a situação dos professores por concretizar, no sistema de saúde sob tensão, nos transportes inter-ilhas insuficientes, nos desafios sérios de segurança, saneamento básico não universalizado, como justificar tamanho dispêndio num único símbolo físico? Onde está a racionalidade? Onde está o sentido de prioridades nacionais, de patriotismo?
Este monumento, pelo valor exorbitante, não celebra a democracia, traduz uma irracionalidade governativa, um descolamento gritante das reais necessidades do povo cabo-verdiano. É um exagero que beira o insulto à inteligência coletiva. Portanto, quanto a mim, fica claro que o problema não está nos recursos e sim nas prioridades invertidas.
3. A “moda” perigosa de rotular críticos de “Milícias Digitais” e levá-los a Tribunal
Assistimos a uma tendência profundamente preocupante, a tentativa de silenciar críticas e dissidências através da rotulagem fácil e perigosa de “milícias digitais”. Pior, esta retórica serve de justificação para arrastar cidadãos e, também, jornalistas a Tribunal. Sim, jornalistas que, aparentemente por apenas fazerem o seu trabalho de noticiar, são agora alvo de processos judiciais. Isto acontece em vésperas de eleições, quando o debate robusto e o pluralismo de ideias são mais vitais do que nunca.
É moda entre alguns autodenominados “defensores da democracia” classificar todo crítico como “milícia digital”. E, num gesto oportunista, esgrimem acusações que agora chegam a tribunais, precisamente quando vozes cidadãs se tornam incómodas antes das eleições.
Defender a liberdade de expressão implica aceitar que opiniões adversas e diversas coexistam no espaço público, com responsabilidade e urbanidade. Visto o que temos visto, questiono, a Procuradoria-Geral da República não terá processos mais relevantes, que afetam diretamente a segurança e o bem-estar dos cabo-verdianos, para investigar? Esta criminalização da crítica, sob um rótulo vago e estigmatizante, é um ataque frontal à liberdade de expressão e de imprensa, pilares essenciais da democracia que dizem querer defender. O momento eleitoral apenas expõe a natureza oportunista e intimidatória desta estratégia.
4. O “Efeito Espelho” – acusar o outro do que se pratica
A tática de rotular os críticos como “milícias” ou “desestabilizadores” serve não só para silenciar, mas também como cortina de fumo. Chamar “milícia digital” a quem não se alinha com a narrativa oficial é mais um rótulo que serve uma estratégia para descredibilizar o interlocutor e esconder falhas próprias. É o clássico “efeito espelho” – o de acusar o adversário do comportamento que o próprio pratica ou pretende esconder. É atirar a pedra e esconder a mão, apontando rapidamente o dedo ao vizinho. É uma estratégia de manipulação da opinião pública, tão antiga quanto ineficaz a longo prazo, mas que causa danos imediatos ao clima democrático. Em crioulo de São Vicente, poderíamos dizer: “Bsot pará c’pasta”.
Estes quatro pontos pintaram nas últimas semanas um quadro preocupante de opacidade em contratos públicos, gastos questionáveis em detrimento de prioridades sociais, e uma crescente intolerância à crítica que se manifesta em intimidação judicial e retórica divisionista. Como cidadão que há oito anos usa este espaço para partilhar opiniões, muito antes desta nova “nomenclatura” persecutória, apelo à reflexão coletiva, ciente de que serei mais um adicionado à nova categoria.
É tempo de exigir, com urgência, responsabilidade a quem deve, transparência total no caso CVI e em todos os negócios do Estado, racionalidade absoluta na aplicação dos recursos públicos, colocando o povo e suas necessidades básicas em primeiro lugar e o respeito intransigente pela liberdade de expressão e de imprensa, sem as quais não há democracia real, apenas a sua fachada.
Cabo Verde merece mais do que “cambalachos”, monumentos faraónicos e tentativas de silenciamento. Merece um debate sério, transparente e livre, focado no seu verdadeiro desenvolvimento.