Salvador Mascarenhas
A ilha de São Vicente é, há décadas, um dos motores económicos, culturais e identitários de Cabo Verde. A sua importância estratégica, histórica e produtiva é inegável. No entanto, a forma como o país tem sido governado revela um desequilíbrio profundo e, para muitos, revoltante: São Vicente contribui largamente para a economia nacional, mas recebe muito aquém daquilo que produz.
Contribuição para o PIB Nacional: Produz Muito
De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2021:
• Santiago contribuiu com 106.672 milhões de escudos para o PIB, o equivalente a 55,8% do total nacional;
• São Vicente contribuiu com 35.165 milhões de escudos, ou seja, 18,4% do PIB;
• Sal com 9,5%;
• Boa Vista com 6,2%;
• São Nicolau com 2,3%;
• Santo Antão com 2,1%;
• Fogo com 2%.
Ou seja, São Vicente, com apenas cerca de 15% da população nacional, gera quase um quinto da economia cabo-verdiana. E no entanto, continua a ser tratada como periférica.
Exportações: O motor comercial do país
São Vicente é, de longe, a ilha que mais exporta em Cabo Verde. Empresas como a Frescomar, sediada no Mindelo, são responsáveis por cerca de 80% das exportações nacionais, sobretudo na indústria conserveira. Esta é uma das maiores fontes de receitas externas do país — e acontece a partir de São Vicente.
Produtividade do trabalhador mindelense: A mais alta do país
Segundo o 5.º Recenseamento Empresarial do INE (2017), São Vicente lidera na produtividade laboral:
• São Vicente: 5.892 contos por trabalhador/ano;
• Santiago: 4.813 contos por trabalhador/ano;
• Sal: 4.633 contos por trabalhador/ano.
O trabalhador mindelense é o mais produtivo do país. Mas esta produtividade não se reflete em mais investimento, nem em melhores serviços, nem em melhores condições para quem aqui vive.
Orçamento de Estado: A esigualdade na redistribuição
Apesar da sua robusta contribuição económica, São Vicente não recebe investimentos públicos proporcionais. Os recursos continuam a ser absorvidos maioritariamente por Santiago, onde se concentram todos os ministérios, direções nacionais, universidades estatais, empresas públicas, tribunais superiores — e onde tudo se decide.
Não há um critério justo, transparente ou proporcional para alocar os fundos do Estado. A regra tem sido: quem tem poder, fica com tudo.
O Ensino Superior: Potencial Ignorado
Historicamente, o ensino em Cabo Verde começou por se desenvolver em São Vicente graças a dinâmica cultural e económica proporcionada pelo Porto Grande. Tentativas iniciais na Praia não prosperaram, ao passo que Mindelo criou condições intelectuais únicas no país.
Mais recentemente, a China propôs construir um polo universitário em São Vicente. A oportunidade existiu. Mas o Governo optou por centralizar tudo de novo: fez uma mega universidade na Praia, que hoje consome quase todo o orçamento do ensino superior, em vez de apostar numa rede nacional de 2 ou 3 polos regionais, como qualquer modelo equilibrado recomendaria.
Com esta decisão, perdeu-se a oportunidade de valorizar o histórico e riquíssimo potencial académico de São Vicente.
Descentralização de Fachada: Só para “inglês ver”
O Governo criou em São Vicente o Ministério do Mar — um gesto que parece descentralização, mas que na prática é apenas simbólico. O ministério não tem poder real nem orçamento independente. Uma “sede” de fachada para dar a ideia de inclusão, sem qualquer impacto estratégico para a ilha.
Mais grave ainda foi a retirada do Ministério da Cultura de São Vicente para a Praia, contrariando o reconhecimento público de que Mindelo é a “capital cultural” de Cabo Verde. Que espécie de “capital cultural” é essa que não tem sequer a sede do Ministério da Cultura?
A linguagem da dominação: O crioulo centralizado
Cabo Verde é um país de diversidade linguística. As variantes regionais do crioulo são um reflexo vivo da identidade de cada ilha. No entanto, institucionalmente tem-se promovido de forma sistemática apenas a variante de Santiago.
• A tradução da Constituição da República foi feita exclusivamente nessa variante;
• O Banco de Cabo Verde lançou uma cartilha financeira apenas nessa variante;
• As publicidades institucionais em São Vicente surgem frequentemente nessa mesma variante.
Este é um processo silencioso de homogeneização cultural — e uma forma de dominação simbólica que vai contra todos os princípios do desenvolvimento equilibrado. Em vez de se valorizar a diversidade, impõe-se uma única voz.
Em São Vicente, a diversidade é natural. As famílias são mistas. Eu próprio sou filho de pai de Santiago e mãe de Santo Antão. Por isso mesmo, aqui valorizamos a pluralidade. E recusamos ser silenciados.
Empresas nacionais e o PIB artificial de Santiago
Outro fator que distorce os dados do PIB é a concentração artificial de sedes fiscais em Santiago. Empresas que operam em várias ilhas — como a ASA (Aeroportos e Segurança Aérea), cuja sede física é no Sal — acabam por pagar impostos e registar as receitas em Santiago, porque é lá que têm sede administrativa.
Assim, o PIB de Santiago é inflacionado artificialmente. Este fenómeno ajuda a justificar ainda mais investimento para a capital, alimentando um círculo vicioso de concentração, enquanto o resto do país é deixado para trás.
Consequência: Desertificação Nacional
Este modelo centralista — económico, educativo, institucional, linguístico e simbólico — está a provocar uma desertificação lenta das ilhas. Pessoas, recursos, investimento, talento — tudo é sugado para a capital, deixando para trás ilhas que poderiam ser polos de desenvolvimento próprios. Ao centralizar tudo numa ilha, Cabo Verde está a amputar o seu próprio futuro.
O Que São Vicente Pede Não É Privilégio — É Justiça
São Vicente não pede favores. Pede justiça. Exige equidade. Contribui de forma desproporcional para a economia, a cultura, a exportação, o ensino e a identidade do país — e recebe migalhas em troca. É urgente:
1. Descentralização real, com orçamentos próprios e competências nas regiões;
2. Redistribuição justa do Orçamento de Estado, com base na contribuição económica real de cada ilha;
3. Investimentos estratégicos em São Vicente, no setor marítimo, logístico, educativo, cultural e na saúde especializada;
4. Rede nacional de polos universitários regionais, com um polo sólido em São Vicente;
5. Instituições públicas fora da capital, com sede em outras ilhas, como sinal de uma nova política nacional;
6. Reconhecimento oficial da diversidade linguística, com uso justo das variantes do crioulo nas comunicações do Estado;
7. Revisão da política fiscal empresarial, para que os impostos das empresas operantes nas ilhas sejam atribuídos à ilha onde realmente operam.
Conclusão: Um país mais justo começa por ouvir quem constrói
Cabo Verde não pode continuar a desenvolver-se só a partir de uma ilha. Não é sustentável. Não é justo. E não é democrático. São Vicente constrói Cabo Verde todos os dias — com as mãos, com a cabeça e com o coração.
Mas está cansado.
Cansado de ser usado.
Cansado de ser ignorado.
Cansado de ser calado.
É tempo de dizer basta.
É tempo de retribuir com justiça.
É tempo de respeitar São Vicente.
E é tempo de respeitar todas as ilhas.
Porque Cabo Verde é mais do que uma só capital.