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Projecto de cooperação rejeitado?

Em junho, o Egato6, dada a ausência total da Câmara da Ribeira Brava, encerrou definitivamente o projecto "Água de Orvalho" e destinou os fundos a outra iniciativa de cooperação em África.

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Por: Maria de Lourdes Jesus

A cooperação com Cabo Verde, desde os primeiros anos da independência e durante muito tempo, foi quase exclusivamente e directamente através de acordos com as instituições a nível internacional. Mas, mais recentemente, a cooperação sofreu uma transformação graças a diáspora cabo-verdiana. 

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No caso da Itália, a partir do ano 2000, foram fundadas novas associações com uma visão orientada e projectada para o apoio ao desenvolvimento das ilhas e baptizadas com o nome das mesmas. São elas: Amigos de S. Nicolau, Amigos das ilhas, Amigos de Soncente, Amigos da Boavista, Nos de Sintanton, Kriol-Ità, Ponte Internacional, Insieme per Rute, para além das associações que já existiam como a  OMCVI Caboverdemania e Tabankaonlus.

Na área da cooperação com Cabo Verde existe ainda um vasto grupo de pessoas que se organizam de forma silenciosa para o mesmo objectivo. Neste panorama destacam-se alguns elementos da nossa diáspora que possuem redes de relações entrelaçadas tanto a nível individual como profissional, que facilitaram a edificação de uma ponte sólida e eficaz entre a nossa diáspora e Cabo Verde.

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Nasce assim a cooperação mais recente, vistosa e muito frutífera, introduzida na nossa terra através dos nossos patrícios que conseguiram atingir uma posição privilegiada no seu percurso profissional. Há muitos exemplos seja nos Estados Unidos, seja na Europa. Aqui vamos falar dum caso particular da cooperação entre a ONG italiana MediaServizi e a Ilha de S. Nicolau.

Em 2009, S. Nicolau foi atingida por um ciclone devastador. Eu mesma, como muitos sanicolauenses na diáspora, lancei um apelo desesperado para socorrer a ilha de Chiquinho na luta contra a enxurrada provocada pelas violentas chuvas que causaram graves danos, inclusivo o emissor da Rádio da Ribeira Brava, Rádio Comunitária, que paralisou a transmissão.

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A primeira reação ao apelo foi através de Renato Lopena, gerente e coordenador de todos os projetos de cooperação internacional da ONG MediServizi, realizados no Afeganistão, Camboja, Argentina, Palestina, Italia, Cabo Verde e, mais recentemente, Burkina Faso. No caso de S. Nicolau, após o ciclone, a Ong MediaServizi, reagiu imediatamente.

Formação

O primeiro projecto levado a cabo foi o de reativar a comunicação interrompida na ilha, que ficou isolada. Na altura, de acordo com o então presidente da Câmara, Américo Nascimento, chegaram à ilha com todo o equipamento técnico para a instalação de um novo estúdio de radiodifusão e formação para todo o pessoal da rádio. Foi um mês de trabalho que também nos permitiu de conhecer a realidade da ilha. Foi disponibilizada a ligação streaming para ouvir rádios em todo o mundo, uma função estratégica para reforçar a comunicação entre a população sanicolauense na ilha e na diáspora espalhada por todo o mundo.

Este projecto foi realizado em 2009/2010. E os anos a seguir?

– Em 2011/12 fomos partner com a Comissão Regional de Parceiros e  Associação Tabankaonlus na realização do projecto de formação, que durou cerca de um mês nos municípios da Ribeira Brava e do Tarrafal, dedicada às mulheres da ilha em restauração, formação de pequenas empresas e micro-crédito.

Em 2014, com a participação num concurso europeu, a Mediaservizi garantiu um financiamento substancial para a criação da “Sodade, o museu e o hotel difundido em São Nicolau”. Foi um importante projecto que durou até 2017 com cursos de formação, conferências com turismo e hotelaria. Além disso, foram lançadas e financiadas sete microempresas do sector do turismo. O projeto se posicionou no desenvolvimento de um turismo eco-sustentável e respeitoso das comunidades locais.

Em 2019 foi lançada a fase de análise do projecto “Água de Orvalho”, depois suspensa devido a Covid-19 e, em 2022, foi financiado um novo projecto para a Rádio Comunitária. A fase operacional desta última terminou em Junho passado com a instalação de ferramentas tecnológicas de última geração para transmissões radiofónicas e novas formações para o pessoal da rádio e para toda a comunidade na criação de conteúdos digitais.

– Esses projectos realizados são todos sustentáveis?

– As intervenções da Mediaservizi em Cabo Verde são realizadas apostando na transferência de know-how para a população local, de forma a promover a autonomia e a sustentabilidade.

– Enfrentou alguma dificuldade ou obstáculos na realização dos projectos?

-Nunca encontrámos dificuldades particulares na execução dos projectos. Aliás, o facto de a população de São Nicolau ser muito jovem facilitou e favoreceu uma rápida integração da nossa equipa. Mesmo as diferenças culturais e às vezes as incompreensões foram sempre um estímulo para a construção de relações positivas e construtivas.

Formação

– Que tipo de relação estabeleceu com a ilha e com os sanicolauenses?

– Diria muito mais que positivo. Sempre procuramos compreender e valorizar as diferenças, desenvolvemos amizades com muitas pessoas que perduram ao longo do tempo e regressar a São Nicolau é sempre uma festa, mas também um trabalho. Podemos dizer que, após mais de 10 anos de intervenções, o intercâmbio tem sido muito frutífero e aprendemos muito mais com eles do que conseguimos ensinar.

Projecto “Água de Orvalho”

Fale-nos um pouco do ultimo projecto “Água do Orvalho”, que deveria ser realizado em 2023.

“Água do Orvalho” é um projecto que poderia resolver um grave problema de saúde para a população em São Nicolau, através da transformação de água. Trata-se de um processo efectuado através da instalação de uma máquina ECA que produz anólita, substância que desinfecta e torna a água potável. O projecto foi financiado pelo Egato6, um consórcio italiano que se ocupa da gestão da água e que destina parte dos seus lucros a projectos de purificação de água, “Agua no mundo”. Em 2019 apresentámos o esboço do projeto ao Presidente da Câmara da Ribeira Brava, Pedro Morais, que de imediato manifestou grande interesse. Foi assinado um memorando de entendimento para o arranque.

Em Dezembro de 2022, uma missão da Mediaservizi foi a São Nicolau para atar os fios à Câmara da Ribeira Brava com o novo Presidente, José Martins. Durante a missão, os técnicos da Mediaservizi analisaram, em conjunto com o Serviço de Águas da Ribeira Brava, a rede de abastecimento e distribuição da água no concelho. Concluído os trabalhos de análise e estudo foi elaborado um projeto de viabilidade e assinado um novo protocolo com o novo edil José Martins.

A aquisição e a instalação do maquinário e formação do pessoal ficaram a cargo da Mediaservizi, a Câmara apenas deveria ocupar-se da construção de um pequeno armazém de 2 x 3 metros perto do tanque de água de Caleijão, ponto estratégico de distribuição da maior parte da água da Ribeira Brava, onde seria instalada a máquina de purificação. Tendo obtido garantias do Presidente de que a construção da arrecadação não teria sido um problema e concluída em poucas semanas, a Mediaservizi validou o projecto e obteve financiamento da Egato6.

Em Janeiro de 2023, enviamos ao presidente da Câmara e a todo o pessoal do Serviço de Águas da Ribeira Brava o projecto definitivo e toda a documentação sobre a máquina ECA e o seu funcionamento, solicitando a execução do armazém para instalar a máquina, como prometido. Em março, dado o silêncio da Câmara, enviamos um último pedido de informação ao Presidente com a estipulação de que, se não tiverem fornecido informações claras até ao final de abril, o organismo financiador encerraria o projeto. Nunca ninguém respondeu aos nossos e-mails, dos quais temos comprovativo de recepção. Em Junho, o Egato6, dada a ausência total da Câmara da Ribeira Brava, encerrou definitivamente o projecto e destinou os fundos a outra iniciativa de cooperação em África.

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– Como explica a falência do projecto “Agua de Orvalho”?

Em mais de 20 anos de trabalho na área da cooperação em vários países do mundo nunca vivemos uma situação como esta. Simplesmente não tivemos qualquer resposta, nem mesmo para explicar os problemas que surgiram. Lamentamos muito este desfecho porque, para a população da Ribeira Brava, desapareceu a oportunidade de resolver um grave problema de saúde. Entre outras coisas, Egato6 tinha antecipado que, se o projecto tivesse um resultado positivo, teriam financiado sem problemas a extensão da depuração não só no resto da rede da Ribeira Brava, mas também na do Tarrafal.

Lamentamos igualmente pelos instrumentos enviados no mês de março desde ano, a pedido da Rádio Comunitària, para remodelar o estúdio da rádio. Trata-se de computadores, monitores de computadores, microfones e suportes de microfone, amplificadores de microfone, fones de ouvido, mixers, para um custo total de 5.718,00 Euros. Chegaram no fim de maio mas, infelizmente, ainda estão bloqueados na Alfândega, não obstante o material fazer parte de uma doação (através de uma declaração feita na Embaixada de Cabo Verde em Italia) da MediServizi à Radio Comunitária, uma associação sem fins lucrativos. Por isso, o material deveria ser despachado gratuitamente.

– Qual é o futuro da vossa cooperação com Cabo Verde.

– Acredito que continuará a ser positivo. Temos excelentes relações com instituições e pessoas de Cabo Verde e de São Nicolau em particular. Considero o que aconteceu com a Câmara da Ribeira Brava, com este último projecto, um incidente de percurso inexplicável.

Estes factos levam a articulista a interrogar como é possível que ninguém da comunicação social em São Nicolau, mais precisamente na Cidade da Ribeira Brava, não tenha entrevistado Renato Lopena e o presidente da Câmara Municipal para prestarem os devidos esclarecimentos. E a oposição não diz nada? Trata-se de autocensura de quem tem autoridade e meios para falar, mas nada faz. E ninguém denuncia a Alfandega que pretende que os instrumentos doados à Radio comunitária sejam pagos, para o despacho? E’ só clicar no link da Radio Comunitária da Ribeira Brava para ler o triste apelo lançado par recolher fundo necessário a cobrir as despesas exorbitante da Alfândega. 

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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