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Opinião
Tendência

Por um Sistema Nacional de Atendimento Pré-hospitalar em Cabo Verde

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Richard Santos*

A emergência não avisa. Ela chega de repente: no trânsito, em casa, no campo ou na rua. Um acidente, uma queda, uma doença súbita, uma paragem cardiorrespiratória. E nesse instante crítico, cada segundo pode significar a diferença entre a vida e a morte.

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Mas o que acontece quando o socorro demora? Quando a ambulância não tem os equipamentos certos? Quando o profissional que chega, embora dedicado, não teve a formação necessária para aquele tipo de emergência?

É nesse silêncio entre o grito de socorro e a chegada da ajuda que mora o verdadeiro desafio do atendimento pré-hospitalar em Cabo Verde. Um sistema que tenta responder, mas ainda caminha sem pernas fortes – limitado por recursos escassos, formação insuficiente e falta de coordenação entre os serviços.

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Não faltam heróis: bombeiros que atendem sem parar, que improvisam, que fazem o que podem. Mas nenhum herói sobrevive sem sistema. E não é justo esperar o impossível de quem não tem as condições mínimas para salvar uma vida.

A pergunta que devemos fazer não é apenas “quem vai socorrer?”, mas “quem está cuidando do socorro?”. Estamos preparados? Estamos investindo onde importa? Quantas vidas mais terão que ser perdidas para que vejamos que o tempo do pré-hospitalar já chegou – e não pode mais esperar? Porque onde a ambulância falha, onde o protocolo não existe, onde a formação é deixada para depois, a vida se esvai. E com ela, a nossa responsabilidade coletiva.

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A experiência da Ilha do Sal nos últimos anos tem revelado progressos significativos no atendimento pré-hospitalar, fruto da visão estratégica e da dedicação do Corpo de Bombeiros local. Em 2017, o serviço contava com apenas três bombeiros. Perante o crescimento demográfico e o aumento constante do fluxo turístico, tornou-se imperativo reforçar a equipa e melhorar as condições de resposta.

Um dos marcos mais relevantes foi a introdução de enfermeiros no serviço de emergência, medida que elevou substancialmente a qualidade do atendimento. Paralelamente, foram adquiridos ambulâncias e equipamentos médicos, permitindo que o serviço passasse a funcionar 24 horas por dia, com maior capacidade de resposta a situações críticas como trauma, paragem cardiorrespiratória e acidentes rodoviários.

Contudo, esta evolução, por mais meritória que seja, evidencia uma dependência excessiva da iniciativa local, num contexto em que, segundo a Organização Mundial da Saúde (2021), o atendimento pré-hospitalar deve estar incluído nos sistemas nacionais de saúde como parte da resposta integrada à saúde pública e emergências médicas.

A Federação Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC, 2020) sublinha que a resposta eficaz a emergências depende de sistemas nacionais organizados, com protocolos uniformes, cobertura territorial adequada e formação contínua dos profissionais envolvidos. A ausência de um modelo nacional compromete não apenas a equidade no acesso, mas também a qualidade e eficácia da resposta clínica.

É neste contexto que se torna urgente o contributo estruturante do Ministério da Saúde na criação de um Sistema Nacional de Atendimento Pré-Hospitalar. Trata-se de uma responsabilidade que ultrapassa os limites da saúde — é uma questão de segurança pública e justiça social.
Este sistema deve assentar em cinco pilares fundamentais:

  1. Protocolos clínicos padronizados, em linha com as boas práticas internacionais, como as do International Liaison Committee on Resuscitation (ILCOR, 2020), que garantam uma atuação uniforme e baseada em evidências clínicas.
  2. Capacitação dos recursos humanos, através de formação técnica contínua em suporte básico e avançado de vida. Dados da American Heart Association (2020) mostram que a presença de socorristas treinados pode duplicar ou até triplicar as taxas de sobrevivência em paragens cardiorrespiratórias.
  3. Investimento público em ambulâncias e equipamentos, com critérios de alocação equitativos entre zonas urbanas e rurais.
  4. Integração em rede com os hospitais e centros de saúde, promovendo a continuidade dos cuidados e reduzindo o tempo de resposta — fator crítico para o prognóstico dos pacientes, segundo o American College of Emergency Physicians (2021).
  5. Monitorização e regulação da qualidade do serviço, com indicadores como tempo de
    resposta, taxa de sobrevivência e satisfação dos utentes.

A resposta eficaz às emergências não pode depender da sorte nem da geografia. Deve ser um direito garantido pelo Estado. O contributo do Ministério da Saúde é, por isso, essencial para assegurar uma resposta equitativa, profissional e eficiente em todo o território nacional. A realidade em Cabo Verde é clara: o tempo de resposta é imprevisível, o transporte é frequentemente feito sem estabilização adequada, e há lacunas críticas na formação dos socorristas. A falta de um sistema nacional de emergência médica significa que os socorros ainda operam de forma reativa, e não estratégica.

E então surge a pergunta incômoda, mas necessária: Quantas vidas estamos a perder por minuto, por falta de um sistema de socorro eficaz?

Não basta reconhecer os esforços dos profissionais que fazem o impossível com os meios que têm – é preciso garantir que não sejam deixados sozinhos. O acesso equitativo e eficaz ao atendimento pré-hospitalar não é luxo – é um direito básico à saúde.

O futuro do socorro em Cabo Verde passa por investimento, formação, coordenação e visão política. E não pode mais esperar. Porque onde o sistema falha, a vida se perde. E com ela, perdemos todos nós.

O caso da Ilha do Sal serve de exemplo e inspiração, mas também de alerta: é hora de transformar boas práticas locais em políticas nacionais sólidas, sustentadas, e voltadas para salvar vidas — em todas as ilhas, em todos os contextos.

*Enfermeiro Pós-graduado em Atendimento Pré-Hospitalar
Enfermeiro Pós-graduado em Urgências e Emergências
Enfermeiro Mestrando em Urgências e Emergências

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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