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O céu estrelado agora tem os satélites da Starlink

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Por: Cídio Lopes de Almeida*

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Nossa intenção é refletir sobre a aparente revolução tecnológica que nos encanta em nossos dias. Como problema, talvez de maneira um tanto pessimista, levantamos a pergunta: as famigeradas revoluções podem ser assim percebidas por todos, sobretudo pelos trabalhadores e trabalhadoras? Nosso método reflexivo-analítico tem sido o meio pelo qual formulamos perguntas que se impõem ao vivente de nossos dias.

Olhar o céu à noite para apreciar estrelas não tem sido mais a mesma coisa. Astros semelhantes às demais estrelas, sob um olhar leigo, se locomovem às dezenas no horizonte. Em meio a estrelas cadentes, cortam o céu noturno pontos de luz que supomos serem os satélites da empresa Starlink, provedora de serviços de telecomunicação, como a internet banda larga. É a revolução tecnológica de nossos dias pairando sobre nossas cabeças como se fossem os demais astros.

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Como é evidente nos livros de historiografia do século XIX, a Revolução Industrial e o ambiente necessário para que ela ocorresse não foram apenas maravilhas. Do ponto de vista ecológico, isto é, das interações com todos os atores e elementos em um dado contexto, a Revolução Industrial foi devastadora. Se, por um lado, podemos relacionar certos confortos de hoje a esse feito histórico, pouco se fala dos seus efeitos negativos, especialmente na práxis humana. O encantamento com a maravilha tecnológica que são os satélites de internet pode não ser uma boa nova para todos.

A realidade é contraditória, possuindo aspectos bons e ruins. Pesquisadores denominam essas tensões de “contradições”. As contradições que, por vezes, parecem conduzir ao bloqueio do funcionamento da vida social ou à revolução daqueles que são os mais prejudicados, têm demonstrado resiliência. Apesar de aparentes fins de ciclo, esses processos continuam. Contudo, têm um custo. Para muitos, esse custo se manifestou nas duas Grandes Guerras Mundiais [ocidentais]. Outra reação a essas contradições tem sido a ascensão de governos autoritários, que atuam à revelia da vontade popular, funcionando como plutocracias, sistemas em que o dinheiro governa tudo, inclusive precarizando a vida das pessoas.

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A questão que se coloca nesse contexto é a de sempre: partindo da ideia de que não só a vida humana, mas toda forma de vida possui um status quo sagrado [respeitável], digna de um respeito solene, por que os aparatos tecnológicos não são capazes de, por si sós, propiciarem uma vida digna para um crescente número de pessoas e outros sistemas de vida? Por que existe uma aparente relação entre o avanço tecnológico [como foi na Revolução Industrial] e o aumento da precariedade da experiência de vida?

A Revolução Industrial revolucionou a forma de aplicar máquinas na produção, mas tornou a vida dos trabalhadores [homens, mulheres e crianças] insanamente precária. A quantidade de mortes no ambiente de trabalho, o emprego de crianças nas fábricas de tecidos, entre outros fatos, revela o show de horrores que foi essa realidade socioeconômica do século XIX no contexto da Europa central. Para a maioria das pessoas, o que realmente mudou?

Em nossos dias, a internet tem sido exaltada em prosas e versos, e, dessa forma, a percepção das pessoas sobre ela torna-se algo mistificado. A internet apresenta-se, nesse imaginário, como uma salvadora à qual devemos fazer oferendas em seu altar. Contudo, assistimos no Brasil — para citar um exemplo mais próximo de nossa vivência — à modificação das leis de proteção ao trabalhador. Aposentadoria, proteção em momentos de cuidado com a saúde, férias, 13º salário tem se tornado cada vez mais escassos. Os sistemas financeiros, para os quais as tecnologias informáticas são altamente apropriadas, defendem sem pudor a necessidade de desmontar os sistemas de poupança dos trabalhadores em benefício de interesses privados, no geral sob a alcunha mística de “mercado financeiro”.

Em resumo, esses discursos argumentam que os direitos do trabalhador não lhe pertencem, mas seriam favores concedidos pelo “senhor” capitalista. Férias e descanso remunerado são apresentados, na retórica capitalista, como absurdos, sendo o empresário visto como o salvador que sustenta tudo isso. Essa lógica, contudo, é consistente com o sistema capitalista, que essencialmente é uma prática de apropriar-se do valor produzido por outros. Para justificar tal apropriação, naturaliza-se a ideia de que apenas o capitalista produz valor e que, portanto, todo valor lhe pertence. Por isto, nesta ótica insana, não é justo que o “messias” capitalista assuma a conta de manter os luxos dos trabalhadores, como salários dignos, descanso remunerado, etc.

Para o trabalhador, que frequentemente não tem condições de preservar sua memória histórica, não houve revolução, mas uma involução. O direito à memória torna-se, então, um bem de suma importância para os lascados [espoliados] da história. Com acesso a informações desse tipo, talvez não se iludissem com a bravata da Revolução Industrial, que foi, na realidade, apenas uma sofisticação dos mecanismos de acumulação e exploração da natureza e da humanidade. A mítica da internet como salvadora seria mais adequadamente compreendida pelos trabalhadores caso houvesse meios e condições de ensino dessa perspectiva histórica — a história dos trabalhadores.

Na prática, a internet hoje é apenas mais um aparato técnico para explorar valor. A sedução que a tecnologia proporciona, com promessas de milagres na saúde ou na educação, ao fim, cumpre a função de disfarce. Apesar dos avanços tecnológicos, como aparelhos para diagnósticos e tratamentos, quem não tem dinheiro para pagar não terá acesso a esse oásis tecnológico. O trabalhador, por sua vez, permanece sem garantias.

O “modelo de negócio” dos aplicativos de mediação de serviços e produtos é apenas uma nova forma de usar tecnologia para acumular valor nas mãos de poucos e explorar muitos. O capitalismo, em sua essência, é psicopático, incapaz de empatia ou vínculos afetivos com as fontes de onde extrai o seu valor — mesmo que isso signifique o extermínio dessas fontes.

Chamar alguém de pessimista frequentemente serve para interditar a reflexão social e psíquica sobre os milhares de lascados da história. Enquanto os satélites da Starlink cruzam o céu estrelado, a vida de milhares de pessoas continua a ser uma sucessão de desesperos.

A internet, embora sedutora, oculta o mais fundamental. Os avanços tecnológicos são implementados prioritariamente com propósitos utilitários que ao fim apenas uns raros são os grandes ganhadores ao custo da precarização de milhares. Embora todos nós busquemos utilidade neste meio tecnológico [para estudos, organização de aulas, etc.], o poder real está nas mãos das “big techs”. Nos últimos 500 anos, desde o início da modernidade, o saber que prevalece é aquele que traduz a máxima de Bacon: “saber é poder”.

Para evitar a paralisia do pessimismo ou o “profetismo do caos”, é possível organizar ideias e pensamentos capazes de dar voz a narrativas que melhor represente a história da maioria das pessoas. A história do fracasso e dos fracassados necessários para o esplendor das revoluções tecnológicas ocorram.  Em face dos feitos tecnológicos não podemos contornar ou fingir que no geral não se traduziu em benefícios a todos. A atitude não é anti-tencologia, mas pelo fato de que ela também é de direito dos trabalhadores. O revolucionário é demonstrar que os benefícios tecnológicos são direito de todos. O valor das coisas pertence a todos, pois somos todos que o produzimos. Como Ailton Krenak, filósofo originário, nos convida a pensar: talvez possamos adiar o fim do mundo e levarmos a sério essas e outras perguntas.

*Doutorando em Ciências das Religiões, Faculdade Unida de Vitória, bolsista FAPES.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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