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Na Porto Novo n’tem ‘San Jon’. Sê nome é Son Jon Revultióde!

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Por: Alcides Lopes (Ph D)

Uma população privada de direitos básicos por gerações.

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As festas de Kolá Son Jon na cidade do Porto Novo, ilha de Santo Antão, neste ano de 2022, foram consideradas uma rabenkada de festa. Tal afirmação parece-me unânime entre os adolescentes e os jovens cuja predominância é masculina e constitui a faixa etária mais expressiva da população de estudantes, desempregados ou desocupados – polidores de calçada. Outrora os mais propensos a serem ejetados da ilha como emigrantes. Porém, atualmente, a maioria leva uma vida inteira, de sonhos, frustrada e de expectativas minguantes, em desesperança, mirando o fundo do copo de grog méfe vazio, irresponsáveis aos ouvidos moucos do Estado.

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A ilha de Mé Maia (Mamaia, no bucê de Soncent) é uma mãe solo, a quem a vida nunca aliviou as dores de parto, a solidão dos abandonos nem a dureza das lutas cotidianas. Das adversidades sofridas, as piores imagináveis. Abandonada por anos a fio, descuidada, morta de sede, infestada de mil-pés. Embargada, até hoje, desconsiderada nas categorizações nacionais. É a ilha onde a cidade mais populosa não dispõe de uma mera biblioteca, um anfiteatro, sala de cinema ou parque: uma vergonha. 

Mas, alguém pode argumentar que tal situação de abandono é comum a várias ilhas do arquipélago e que se explica, em parte, pela falta de recursos do Estado. Neste caso, abaixo a minha voz educadamente e, com calma, procuro explicar, pausadamente, que os fenômenos catastróficos decorrentes dos ciclos de seca extrema, dos índices de pobreza e abandono das populações vulneráveis, dos períodos coletivos de inanição, não são aspectos históricos exclusivos da nação cabo-verdiana. Não obstante, estamos a falar da segunda maior ilha do arquipélago.

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Durante toda a história do colonialismo europeu moderno, desde Cabo Blanco e as desventuras de Nuno Tristão; de Ceuta até o Cabo das Palmas; do perambular do Infante entre as ilhas do Atlântico Norte dos Açores, Madeira e as Canárias até o achamento das ilhas de Cabo Verde; da circunavegação do continente africano por Vasco da Gama, às travessias transatlânticas de Caliban e às Américas de Pinzón, Colombo, Vespucci e Balboa, as narrativas são caracterizadas pelos crimes da passagem média, os genocídios de africanos e ameríndios no Novo Mundo, por todos os lugares do Oriente, onde a cruz se fez um símbolo de invasão, violação, humilhação, cativeiro e matança.

Esboços de um sonho esquecido na parte posterior das memórias de uma infância longínqua, empoeirada pelo tempo, rememoram que a ilha de Santo Antão nem sempre teve apenas uma irmã tão próxima, a ilha de São Vicente. As ilhas são todas irmãs, frutos da relação conturbada e avassaladora entre Sangò, o Senhor do Fogo Oculto – a rocha -, as águas salgadas do mar (Iemanjá), as torrencialidades (Oyá) e as ausências prolongadas das águas das chuvas que causam a inanição e as moléstias decorrentes (Obaluaê e Omulú).

Se analisarmos, com calma e cautela, as cartografias marinhas documentadas da região, iremos perceber que, ao noroeste da ilha jaz, no fundo do oceano, a irmã defunta, igual, na dimensão imersa, ao corpo da ilha irmã sobrevivente que emerge do azul índigo do mar trópico-canceriano.

A voz que penetra as frestas da porta entreaberta para o limbo da vigília e das convicções, deixa transparecer, incontroladamente, as medonhas litanias sobre inomináveis actos cometidos, inefáveis regimes impostos sobre corpos escravizados. Se fossem provenientes da região do Magreb ou da Andaluzia recebiam nomes. Senão, se fossem trazidos do continente, recebiam apenas um “x”, riscado toscamente com pigmento sobre papiro. Mas, a brutalidade a que eram sujeitos estes últimos, era bastante para todos.

A brutalização das marias josefas, emílias e tomásias é recorrentemente subsumida nos silêncios da violência estruturados e estruturantes da nossa sociedade. Os nossos tabus são bradados em sincronia tanto com o rebentar da ira das águas do mar nos rochedos, como com o escorraçar das terras aráveis pelas trombas d’ águas turbulentas das chuvas torrenciais caídas do céu, após longos anos de carestia.

Na dimensão mítica das devoções populares, a devolução da imagem de Son Jon, pelas ondas do mar, às mãos de Mé Maia, seja por via de um irresistível pescador de pele queimada e peito de quilha, ou outra linha torta utilizada pela divina providência no intuito de escrever e fazer valer a sua rectitude, escutaram os clamores dos invisibilizados e acudiram às preces silenciadas dos flagelados do vento leste. O santo vinha de outras paragens. O seu espírito ancestral guerreiro, muito antigo, foi igualmente instrumentalizado pelo judaísmo, o islamismo e o cristianismo.

Entre os colonos, os inúmeros aventureiros, degredados, desterrados e escravizados que pisaram na ilha das montanhas, a partir de 1548, as crenças nunca foram homogêneas, como também, suas lealdades não respondiam exclusivamente ao sumo pontífice e ao projeto de internacionalização da igreja católica romana do século XVI. Mas, nos parece que entre as diferenças existiam certas ressonâncias.

A devoção à natividade de João, filho de Zacarias, está registada no calendário muçulmano de Córdoba de 961 d.c. As referências ao livro bíblico de Josué reiteram a conexão entre São João Baptista e o Solstício de verão: “E o sol parou no meio do céu, e não se pôs durante quase um dia inteiro” (10: 12-13). No Islam andaluz e magrebino, as práticas rituais relacionadas à natividade de São João Baptista foram celebradas, em contextos cristãos, durante as festividades de Ansara e Mahrayan, com pompa e esplendor das corridas de cavalos e provas de destreza. 

As ilações de Santo Elígio, transcritas a partir das citações do etnógrafo espanhol Julio Caro Baroja, sobre a proibição de costumes mundanos, no século VII, são reveladoras. Pois confirmam os primeiros testemunhos sobre as fogueiras de São João e o repúdio da Igreja: “Não creiam nas fogueiras e não sentem-se cantando, pois todas estas práticas são obras do demónio. Não se reúnam nos solstícios e que ninguém dentre vós dance, salte ou cante canções diabólicas no dia de festa de São João, nem de [de nenhum] outro santo.”

No século XI, durante o período conhecido no mundo islâmico como as Taifas, cristãos moçárabes e muwaladis, ou seja, muçulmanos ibéricos, celebravam as festas em conjunto. Na época, igualmente, as celebrações recebiam críticas das autoridades religiosas muçulmanas com relatos sobre homens e mulheres gritando e dançando juntos, sem nenhum véu, à luz das luminárias, na referida noite de junho.

Na antiga Madrid árabe (Mayerit), nas noites de São João e São Pedro, a vigilância nas muralhas da praça era reforçada sob acusações de que as aglomerações provocadas por infiéis e inimigos de Alá (cristãos), aconteciam sob pretexto de devoções aos santos, quando, na verdade, propagavam-se pelos campos com bailes obscenos e algazarras alegres.

O mesmo tipo de relato também ocorre em Sevilha, onde, durante a famosa Velada de San Juan, são descritos comportamentos licenciosos protagonizados pelos habitantes. A idolatria aparece como fator catalisador durante os empreendimentos críticos. Outros relatos remetem-nos  aos jogos equestres de destreza a cavalo do Ansara que, sem dúvida, ecoam nos costumes e tradições preservadas e praticadas, até hoje, na ilha do Fogo.

Pela ocasião das festividades, as mulheres se vestiam com suas melhores roupas de gala e adornavam-se com henna, era proclamado feriado no dia da festividade dedicado à Yahya ibn Zakariya (João filho de Zacarias). 

O mesmo ocorria no continente africano, em Ifriqiya, (Túnis), as pessoas seguiam costumes similares aos dos andaluzos nessa festividade, havia corridas de cavalos, jogos equestres e banquetes. As pessoas frequentavam o “hammam”, ou os “banhos árabes” e faziam fogueiras “al-Ansara” debaixo de árvores frutíferas. Há igualmente relatos sobre a lavagem das escadarias dos templos e sobre os códigos da indumentária por parte dos “novos” cristãos descendentes de mouros convertidos ao catolicismo forçadamente.

Em Lisboa, no Largo de São Domingos, existe um memorial dedicado aos milhares de judeus vítimas da intolerância e fanatismo religiosos assassinados durante o massacre que teve início no mesmo largo em 1506. Sabemos que muitos evadiram ou foram degredados para os mais diversos lugares, entre os quais as ilhas de Cabo Verde, cuja capital Santiago era conhecida como a Capital das Desgraças. Todos sabemos da presença de túmulos judaicos em algumas ilhas de Cabo Verde, entre estas Fogo e Santo Antão, nesta última existe uma localidade que, curiosamente, leva o nome de Sinagoga.

A Ermida de São João, localizada na Fajã de São João, curato da paróquia de Santo Antão, Concelho da Calheta, Ilha de São Jorge, Açores, foi benzida em 1550. Por sua vez, no Novo Mundo, a ilha de Puerto Rico, no Caribe, um dos primeiros locais conhecidos a receber pessoas escravizadas provenientes da costa africana, a respectiva capital se chama San Juan. 

Em Olinda, no Brasil, a ermida de São João, construída em estilo maneirista na segunda metade do século XVI, sobreviveu ao ataque holandês que incendiou a cidade em 1631 e serviu como sua matriz durante a reconstrução da Sé de Olinda, entre 1656 e 1669. 

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Precisamos compreender, portanto, que as festas juninas, além de religiosas, são astronômicas e foram contempladas tanto pelo calendário solar quanto pelo lunar. Elas também influenciaram os modos de funcionamento dos sistemas tradicionais de irrigação, como por exemplo, no cotidiano do reino Nacérida, uma unidade política que vigorou na Península Ibérica de 1238 a 1492.

 Na conjuntura envolvente das conquistas do Atlântico, as viagens dos descobrimentos e as subsequentes actividades transatlânticas envolvendo a escravidão africana moderna, as devoções a São João tomaram novas feições e a dimensão das suas práticas foi contemplada por uma grande diversidade de formas performativas de devoção, também aos outros santos do ciclo popular. Este ciclo envolve mais comumente a tríade Santo António, São João e São Pedro. Mas, como sabemos, em Cabo Verde e na Cova da Moura, em Portugal, o ciclo começa a ser observado a partir de 3 de maio, dia da Santa Cruz, tanto nas ilhas do grupo Barlavento quanto nas Tabancas de Santiago e nas festividades das ilhas do Fogo, da Brava e 1º de maio na ilha homônima..

As festas de Kolá Son Jon de Porto Novo, Santo Antão, estão amparadas pelas narrativas fundacionais e mitos locais ricamente retratados através de uma identidade coletiva marcada pela performance linguística de uma variante do Kriolu vastamente desconsiderada e historicamente ridicularizada. 

Por este motivo, quando se faz uma pesquisa de opinião rápida entre os santantonenses é evidente que a unanimidade é que não existe Kola San Jon em Porto Novo e sim, existe Kolá Son Jon Revultióde!

Para referências, leia também do mesmo autor:

Os domadores de sons: antigos idiomas dos tambores de Son Jon – Cabo Verde & a Música – Museu Virtual (caboverdeamusica.online)

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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