Dylan da Graça
Aos 50 anos de independência, é alarmante constatar que líderes políticos e membros partidários cabo-verdianos se assumem como desprovidos de ideologia. A ausência de posições firmes no debate político revela uma fragilidade preocupante no pensamento estratégico nacional. É, no mínimo, lamentável, para não dizer bárbaro.
Cabral, que tanto insistiu que tivéssemos a ousadia de “pensar com as nossas próprias cabeças”, talvez hoje preferisse o silêncio ao vislumbrar esta paisagem empoeirada, onde cabeças pensantes jazem como bustos ornamentais em salões de discursos ocasos.
Desde que o mundo é mundo, o ser humano assume posições face às diversas esferas da vida. Se já é duvidoso que um cidadão comum se declare neutro, torna-se mais grave quando tal postura advém de quem já tem responsabilidade política. “Eu sou eu e a minha circunstância”, dizia Ortega y Gasset. O simples facto de vivermos em sociedade, de sermos moldados por uma família, uma educação, e dotados de razão, confere-nos necessariamente ideais.
O político, ao dizer não ter ideologia, o que revela, na verdade, é um vazio de convicções e escassa noção de suas responsabilidades. A corrida aos votos, em vez de ser uma marcha lúcida rumo ao interesse do bem comum, tornou-se numa procissão sombria de vaidades, disputas pessoais, interesses familiares e uma ambição cega pelo poder, em que este deixou de ser um meio e passou a ser o altar.
A matriz ideológica faz a essência de qualquer estrutura partidária. Não obstante, como esperar coerência de membros que apenas repetem lemas, quando os próprios partidos, em seu âmago, parecem já não recordar o que são? Se no estatuto proclamam um cortejo de valores, princípios e ideias, na prática tornam-se farsantes de si mesmos, atores de um teatro em que o roteiro ideológico é mero adereço esquecido no camarim.
Não se trata, infelizmente, de uma doença exclusiva de um dos lados da bancada. Ambos os eixos apresentam os mesmos sintomas desta epidemia que se alastra pelos corredores. Tavares, com um olhar pessimista, assinala que, onde outrora floresciam ideais que constituíram a génese dos partidos, hoje impera uma ideologia da caça — não à verdade, nem à justiça, mas aos votos.
A verdade é que as frentes políticas demonstram escasso interesse em sustentar, com vigor e honestidade, os próprios princípios, sobretudo quando estes colidem com as exigências prementes da nação. E quando os alicerces ideológicos se curvam à conveniência, o debate torna-se neblina, e o caminho a seguir, mera silhueta difusa no horizonte. Obscurece-se a possibilidade de traçar, com clareza e firmeza, a rota que conduza nossas ilhas.
Talvez o contexto histórico nos ajude a compreender o desalento dos nossos dias. Por um lado, o PAIGC não nasceu de uma abstração teórica, nem de jogos partidários moldados por vaidades. Nasceu da dor e da esperança. Nasceu quando os pés descalços do povo pisavam um chão que não lhes pertencia, quando o suor dos corpos negros era tributado sem justiça, quando a opressão se impunha sobre os nossos cantos e os nossos silêncios.
Foi no seio dessa realidade que veio à luz um partido — não apenas para a independência territorial, mas para a libertação do homem cabo-verdiano, em todas as suas dimensões. Inspirado nos ventos do pan-africanismo, sim, mas também nas palavras vivas de Frantz Fanon, nas reflexões lúcidas de Kwame Nkrumah, nas sementes lançadas por Eduardo Mondlane, Cheikh Anta Diop, Julius Nyerere. Seus líderes? Filhos da luta.
E a sua ideologia, forjada não nos salões, mas nas matas, nos campos minados, nos bairros pobres, era feita de realidade e sonho. Parte daqueles que herdaram o partido não herdaram o espírito. Não viveram
os mesmos fantasmas, nem carregam as mesmas memórias nos ossos. E, talvez por isso, alguns, deslembrados de onde advém o nome do partido, afastaram-se dos princípios, trocando a coerência pela conveniência, a causa pelo cargo, o povo pela plateia. Mas, a história não é indulgente com a amnésia. Um partido que se esquece da sua razão de ser, transforma-se numa casca (vistosa talvez, mas oca).
Em contrapartida, quase duas décadas após o hasteamento da bandeira nacional na Várzea, ergue-se um novo fôlego político: o Movimento para a Democracia. Oriundo de uma cisão interna no seio do PAICV, o MpD fez-se germinar da inquietação de alas, que já não se reviam nas práticas herdadas de um partido único, mais inclinadas para os ideais democráticos ocidentais, propondo uma nova visão para o futuro da nação, uma promessa de renovação. Um grito silencioso que enunciava: é tempo de pluralidade, de respeito pela diferença, de uma nova forma de servir o povo.
Não nasceu por oposição cega, mas por convicção. Acreditavam, com a alma exposta, que a democracia não seria um luxo importado, mas uma necessidade natural de um povo com um sonho de liberdade. Muitos cresceram com Cabral no peito, mas também com a convicção de que a independência conquistada com sangue e suor, precisava de ser acompanhada por liberdades civis, participação efetiva e alternância real.
Contudo, o percurso do MpD não foi isento de ambiguidades. A sua génese, embora nobre no propósito, mostrou-se por vezes difusa na transição. A rápida mudança de um sistema monolítico para um campo político aberto, somada à vontade urgente de distanciamento das práticas anteriores, contribuiu para uma certa fragilidade doutrinária. Muitos dos princípios estruturantes proclamados na fundação esbarraram, ao longo dos anos, na complexidade da governança real e no pragmatismo eleitoral. E o tempo, como sempre, revela-se: hoje, observa-se com pesar a repetição de um ciclo.
Tal como sucedeu com o PAICV, também no seio do MpD as gerações primeiras que se sentaram à mesa da (re)fundação da pátria, vão sendo, progressivamente, substituídas por quadros alheios à densidade simbólica e histórica do nascimento do partido, e que não viveram o fardo da decisão, nem o peso do medo, nem o ardor da promessa. Vê-se com inquietação o esvaziamento de certos ideais, a transformação da política em carreira, em estatuto, em exercício de cálculo. O projeto que em tempos representou uma lufada de ar fresco na vida política nacional parece, por vezes, ceder aos mesmos vícios que outrora havia criticado — personalismos, clientelismo e a erosão de princípios em favor de jogos de poder.
Um partido, tal como uma nação, precisa de memória. E é na memória, lúcida, crítica e comprometida, que reside a possibilidade de reencontro com os ideais que lhe deram origem. A perda de ideais políticos representa, em última instância, uma perda para Cabo Verde enquanto projeto coletivo. Quando os partidos já não são capazes de apresentar visões distintas de futuro, propostas que nasçam da reflexão e da diferença legítima, o espaço político transforma-se num deserto de ideias onde apenas sobrevivem as disputas pessoais e vaidades que se digladiam sob o teto da casa parlamentar, hoje banalizada e frequentemente esvaziada da dignidade que lhe é devida.
A decadência do debate teórico-político não é uma falha menor; é a abdicação de uma das mais nobres funções da democracia: a de pensar-se a si mesma. O confronto de ideias, no seu sentido mais elevado, é o que permite a um povo compreender, discutir e aperfeiçoar as noções de poder, justiça, liberdade, igualdade e responsabilidade coletiva. Sem esse confronto, sem o estímulo à formação crítica dos cidadãos, resta apenas a retórica pobre e o ruído do imediatismo, onde as palavras perdem peso e os gestos se esvaziam de sentido.
Num país onde nem os dirigentes demonstram compromisso com esses valores fundadores, que expetativa se pode nutrir em relação ao cidadão comum? A política, desprovida de pensamento, torna-se espetáculo. E, neste teatro de sombras, a ideologia já não é bússola… é adereço.
Ainda que alguns partidos manifestem, aqui e ali, o desejo de resgatar um ethos programático, é a sede de poder que prevalece. E quando o poder se torna fim e não meio, abre-se espaço ao populismo, esse veneno sorridente que promete tudo e nada sustenta. Alimentado por slogans fáceis e respostas simplistas, o populismo mina o discernimento coletivo e transforma a democracia numa caricatura de si mesma. Vivemos um cenário de alternância sem alternativa.
Cabo Verde, outrora moldado por homens e mulheres que ousaram sonhar com um país livre e justo, encontra-se hoje numa encruzilhada moral e intelectual. É imperativo, mais do que nunca, que se recupere o vigor do pensamento político, que se resgate o valor da divergência esclarecida, e que a política volte a ser, não o jogo de quem grita mais alto, mas a arte de escutar, propor e construir.