Os recentes acontecimentos na Guiné-Bissau vieram levantar o véu sobre a trágica realidade vivida nesse país irmão desde a independência.
David Leite
A nossa história comum com a Guiné começou em 1466, quando o rei D Afonso V emitiu alvará autorizando os “tratos e resgates” na costa oeste-africana. Designava-se a região por “Rios da Guiné”, por serem os inúmeros rios uma espécie de autroestrada fluvial de penetração no interior das terras para toda a espéce de comérco, nomeadamente de escravos.
O resto já todos sabemos. Aqui, quero apenas fazer uma breve menção à luta de libertação e à propalada “unidade Guiné-Cabo Verde”, que afinal não passou de um slogan, uma bela utopia sem expressão real no pós-independência. E não podia ser de outro modo porquanto a chamada “união orgânica” não emanava da vontade expressa dos dois povos, mas antes de uma imposição político-ideológica do PAIGC.
Unidade como, se os guineenses e os cabo-verdianos nem sequer se conheciam, com a honrosa excepção dos que se encontraram na Luta em torno de Amilcar Cabral? Ou dos nossos patrícios residindo na Guiné, muitos dos quais por transferência ao tempo da administração colonial?
Foi preciso o golpe de Estado de 1980, liderado por Nino Vieira, para o Partido supranacional reconhecer que a “unidade” não passava de uma miragem! Desde então, os dois países “irmãos” vão enveredar por caminhos diferentes. Na Guiné, livre das “amarras” da unidade, o pior estava para vir. Seis anos depois do chamado “Reajustamento”, Nino Vieira, o golpista, manda fusilar seis camaradas seus, alegadamente por… tentativa de golpe! Com a execução de Paulo Correia e seus coarguídos estava dado o mote do que seriam os novos destinos da Guiné-Bissau.
A democracia instaurada em Cabo Verde em 1990 não é a mesma que chegou à Guiné, com Nino Vieira a ser empossado como o primeiro presidente eleito democraticamente em 1994. Pura demagogia das urnas numa Guiné forjada pelas armas!
Até à data de hoje, os dirigentes guineenses, salvo raras excepções, assentaram a sua legitimidade nas armas, mais do que nas urnas. Não souberam, infelizmente, reciclar a “legitimidade” das armas em sabedoria governativa para o exercício do poder político. A epopeia romanesca da luta de libertação subverteu-se com as sangrentas disputas de poder, camaradas contra camaradas, num país sem rumo, hoje um narco-Estado onde a tropa faz e desfaz.
Com efeito, a história da Guiné é uma sequência de golpes e contra-golpes, com eleições de circunstância e mandatos interrompidos pela força das armas. Em junho de 1998, o brigadeiro Ansumane Mané vai liderar uma sublevação militar que se prolonga sob forma de “bataille rangée” contra as tropas de Nino Vieira durante onze meses (o mais longo golpe de Estado jamais visto em Africa!) Nino Vieira, escorraçado, é forçado a exilar-se na… antiga potência colonial, claro, como o seu predecessor Luis Cabral!
Ansumane Mané entra de novo em rebelião e é abatido em novembro de 2000 pelas tropas leais ao presidente Kumba Yala, ele mesmo derrubado pelo seu chefe de estado-maior Veríssimo Correia Seabra, que será por sua vez assassinado em 2004 por soldados descontentes… por falta de pagamento! No ano seguinte, Nino Vieira regressa do exílio, concorre como independente e é eleito presidente contra Kumba Yala.
Em 2009, outro chefe de estado-maior, Baptista Tagmé Na Waié, morre num atentado à bomba. O exércto vê no ataque a mão do presidente Nino, que será barbaramente assassinado na mesma noite! A instabilidade politico-militar prossegue após a eleição de Malan Bacai Sagna, nos finais de 2009. Em 2010, outro general exilado, Bubo Na Tchuto, regressa da Gâmbia e refugia-se nos escritórios da ONU, de onde é libertado pelo general António Indjai e suas tropas depois de prenderem o chefe de estado-maior, Zamora Induta (Bubo Na Tchuto, célebre traficante de droga, será mais tarde apanhado e preso nos Estados-Unidos por 4 anos).
Este é apenas um breve apanhado das instabilidades politico-militares na Guiné-Bissau até 2010, não tendo cessado até à data de hoje os ajustes de contas e as matanças fratricidas nas lutas pelo poder. As forças armadas não cessaram de se imiscuir aberta e impunemente na esfera do poder político, normalmente minado pela corrupção. Pode-se ainda perguntar: quem, dos dirigentes políticos ou dos barões da droga, move os cordelinhos dessa temível mafia de Estado, com o narcotráfico em pano de fundo? Certamente, todos…
O heróico e martirizado povo da Guiné-Bissau conhece os seus inimigos e sabe onde estão: os seus inimigos são os políticos sem escrúpulos e as forças armadas que deveriam proteger os guineenses! E estão lá dentro da Guiné, ou esperando a sua vez no exterior!
Se não houver mudança, é caso para dizer: Heróis do Mato, Pobre Povo…







