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Estamos todos num mar de rosas ou de arriolas? Os rumores e as fofocas na vida institucional kriolu

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Por: Alcides Lopes

“A vida não tem sido fácil para ninguém”. Tenho escutado esta frase mais do que o necessário. Bem! Pelo menos, mais do que eu achava ser o necessário.

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Bem antes da pandemia, a falsidade ou a sinceridade daqueles que falam bem ou mal da gente pelas costas, viram a cara e mostram os dentes aos nossos entes queridos, já viajava por estes caminhos vicinais. Esta qualidade, nada louvável, é um dos traços mais característicos das formações sociais crioulas, como define Trajano Filho na sua tese Polymorphic Creoledom: the creole society of Guine Bissau (1998). 

A parte II da referida tese intitula-se “Structure and Rumours in Creole Society”. O antropólogo brasileiro afirma que uma das coisas que mais o impressionaram, durante a sua estadia na Guiné Bissau, foi a alta frequência com que as anedotas, as quais podem perfeitamente ser rotuladas como fofoca ou rumor, circulavam pelas cidades crioulas do país. Ele, sobretudo, reconhece que nunca havia pensado na possibilidade de se concentrar na coleção e análise deste tipo de histórias, digamos, efêmeras.

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Não obstante, o interesse do autor crescia na mesma proporção em que ele ouvia essas histórias no seu dia a dia. A abundância era tanta que ele era incapaz de analisá-las, sistematicamente, desde a sua genealogia até o seu perecimento. Todos nascemos, crescemos e, se tivermos sorte, morremos de velhice. Com as fofocas e os rumores, não é diferente. Eles sofrem do mesmo destino fatídico.

Assim, como as tradições e os costumes são disputados em campos simbólicos de contestação, são, igualmente, reinventados, ressignificados, nas moendas do tempo. Reconstruídos nas relações espaciais de identidade, empatia, alteridade, pertencimento: do lugar de fala se cuida, é a nossa casa; é o nosso corpo, o lugar da nossa liberdade. Ou a nossa danação. Que o diga, a criatura dependente do algoz.

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Na nossa sociedade kriolu de Cabo Verde, por exemplo, a forma reiterativa, intensa e profundamente emocional como os rumores são difundidos no arquipélago sugere um sistema de comunicação oral com alta capacidade de produzir e transmitir sentido. Trajano Filho sugere que, geralmente, as histórias estão relacionadas com os processos de produção de identidade social. 

Os temas principais estão centrados naquilo que confere pertencimento à sociedade kriolu na sua dimensão nacional. Na realidade, revelam os conflitos e ambiguidades básicos da sociedade praiense, em particular, e comunicam, enquanto inculcam, de forma peculiar, as representações e os valores fundamentais inerentes à suposta cultura kriolu que se desenvolve há séculos.

Em Porto Novo e Mindelo, usamos frequentemente as expressões tmá bonê, ou visigole para nos referir aos sujeitos efetivamente envolvidos na estrutura dos rumores e das fofocas. Kel lá ta gostá de se riola! Em qualquer povoação, seja em que ilha for, encontramos estes tipos de personagens e, eventualmente, somos aparentemente envolvidos  em uma performance que decorre de um processo de reconhecimento, aceitação ou rejeição.

Em trabalho de campo, nos meses finais de 2020, coincidentemente, durante as campanhas autárquicas, recolhi rumores na minha cidade natal. O corpus que tenho analisado tem uma enorme variabilidade. Às vezes era possível constatar vestígios físicos, ou a tentativa de eliminação destes, por parte de partidários na mesma proporção em que se propagavam os rumores. 

Outras vezes, como já previam os rumores; obras realizadas “nas coxas” durante as campanhas político-partidárias têm demonstrado inúmeras razões para a subsequente desaprovação e eventual abandono por parte da população, a qual – jovem -, quase sempre classificada de vândala e má usuária dos escassos, quando não inexistentes, bens públicos. 

Em algumas ocasiões tive a oportunidade de recolher mais de uma versão do mesmo rumor. Tentei reconstruir o processo a partir da sua disseminação no intuito de tomar conhecimento, pelo menos parcialmente, dos atores sociais envolvidos na sua circulação. Quanto mais provável o comprometimento de personalidades políticas, sociais, ou empresariais conhecidas, mais os rumores são resistentes à inspecção. Alguns parecem impenetráveis. Tão impenetráveis que a redolência tende a desencorajar-nos de procurar ilegalidades, quando muito, não sejam mal entendidos ou aberrações.

Houve situações em que foi possível recolher apenas a versão que chegou até mim e reter o ator social que a transmitiu, todos os aspectos e factos restantes permaneceram opacos. Durante a campanha municipal na cidade, a maioria dos rumores e fofocas que circulavam era ativa, sendo, contudo, perceptíveis algumas latências e processos de hibernação nas versões mais antigas. 

Não obstante, aqueles rumores de um passado próximo, pareciam estar prontos à reinserção no circuito dos rumores ativos. Nesta esteira, os rumores se agrupam em ciclos temáticos. Ou seja, um grande número de histórias que pode ser individualizado, é compreendido como diferentes versões do mesmo rumor ou como uma manifestação transformadora de um rumor paradigmático.

Portanto, o que é que conecta todas estas histórias e faz com que seja possível classificá-las como pertencentes à categoria dos rumores? De facto, fofocas maliciosas sobre maridos ou esposas sendo infiéis, histórias sobre como as pessoas usam e abusam dos parentes e amigos para obter benefícios das agências governamentais, rumores difusos sobre poderes especiais de determinadas pessoas ou entidades, como no caso dos mossongue, kenilinha, katxorrona, como relatados pelas gerações dos meus pais e avós, parecem não ter nada em comum.

A análise dos rumores e das fofocas como gênero de comunicação e de interação não cabe no escopo deste ensaio. Pois, trata-se de uma literatura densa, vasta e saturada por uma obsessão preocupante pelas questões de definição e estabelecimento das diferenças entre os estilos. No nosso caso, seguindo as passadas do antropólogo, interessamo-nos em desvendar o papel e a importância deste sistema de comunicação na nossa sociedade kriolu.

Estamos todas e todos envoltos num mar de arriolas, narrativas orais sobre ações de criaturas poderosas, ladrões habilidosos, tinhosos, traficantes ousados, rumores sobre os abusos que ocorrem entre parentes e fidjus di kriason, intrigas políticas, assédios, estupros, assassinatos, especulações sobre a falência de ricos empresários, exoneração de altos funcionários por corrupção e até sobre a queda de ministros. 

Bokasiñu, cucidor, kin ki ta cuci, banoberu, jornal di tabanca, gordu noba, obi li leba lá são das muitas expressões que identificam formas de práticas discursivas sobre os rumores e as fofocas na Guiné Bissau nas décadas de 1980 e 90. Portanto, devemos compreender que em um nível diferente, os rumores são localmente forjados e difundidos como um gênero radicalmente diferente das formas escritas de comunicação tais como livros, cartilhas e outros veículos da escrita. 

A relação entre os respectivos gêneros não assume a forma de uma oposição diacrítica na qual um gênero exclui o outro. Pelo contrário, trata-se de uma relação marcada por uma tensão permanente no que concerne à construção da hegemonia que determina qual forma de discurso é a portadora da genuína autoridade. A tensa competição entre estes gêneros é uma manifestação concreta da tensão mais profunda que se interpõe entre os diferentes estilos de vida e as estruturas de autoridade na nossa sociedade.

A permeabilidade e a eficiência dos rumores na sociedade kriolu estão diretamente relacionadas com a sua natureza oral com que as instituições são gerenciadas. Em Cabo Verde, assistimos atualmente a uma comunidade discente, geralmente apática e particularmente elementar à leitura, seja ela literária, científica, sociológica ou musical. Percebemos esta limitação em diferentes áreas, na própria atrofia, no [des]funcionamento, na personalização e verticalização das instituições das mais variadas naturezas.

Não estou a bradar sozinho contra os ventos. O podcast Opinião da Rosário Luz, do dia 26 de abril de 2022 na RTP, é conciso e cristalino com relação à situação rasteira na qual derrapa a classe dos professores, dependurados nas bordas das escolas e liceus que ocupam obras inacabadas, inauguradas às pressas em eleições passadas e em constante degradação. Enquanto assistimos às galas e ouvimos rumores maliciosos sobre melhoramentos nas estagnadas carreiras. Alguns estão prontos a empurrar o seu igual no precipício, escravos da cobiça, ávidos pela ilusão do pequeno poder de possuir migalhas sozinhos.

O desânimo, a desesperança e a deseducação, somados à falta de perspectivas e mobilidade profissionais, desencadeiam processos de opacidade envolvendo a ausência de uma agenda transparente e, ao mesmo tempo, a conspicuidade do improviso, da cobrança e do desgaste criativo em vários ministérios. Para além das carências e vulnerabilidades convivemos com um culto desatualizado de pequenos poderes, no qual a nossa população insularizada é sistematicamente desconsiderada e obliterada pelos seus iguais. 

Não há dúvidas, por aquilo que não tem sido feito, no âmbito dos sucessivos ministérios em prol da cultura (essa palavra monstruosa) e da educação, sem mencionar a questão da alfabetização musical e outras formas de educação artística, antes de falarmos em linha de pesquisa em música e outras prospecções, precisamos reconhecer a carência crassa dos estudos artísticos e culturais derivada da ignorância política e ideológica, senão, falta de vontade de ultrapassar um estágio de ostracismo e neo colonialidades irresolvido.

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Entrementes, o que vemos é uma performance de galas, inaugurações, visitas, condecorações e tantas outras basófias, dignas de comparação com o crepúsculo salazarista, que toda a gente sabe que é bazófia mesmo!

Para mim não pode haver outra explicação! 

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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