Por: Cídio Lopes de Almeida*
“Quando um estudante recorre a este novo ´eldorado´(IA) para eventuais trabalhos pessoais, delegando a um modelo de linguagem processada em circuito eletrônico binário a iniciativa de estruturar o seu trabalho escolar, sobressai alguns sinais desta manufatura simbólica, que apenas intenta emular o que é próprio dos humanos.”
Alguns escritores, entre eles Pierre Hadot, utilizam o termo composição para o ato da escrita. Em tela, ao apreciar como os filósofos da Antiga Grécia escreviam, o helenista francês coloca em destaque, com toda a sua autoridade de helenista de nossos dias, que os Antigos compunham mal.
Inicialmente parece-nos ousado tal assertiva sobre os clássicos da cultura ocidental. Contudo, a sua explicação parece plausível, eles estavam mais preocupados em vivenciar a filosofia, e não um mero exercício de escrita em sentido de produção de um sistema de ideias coesas e a tratar de um tema em todas as latitudes. Talvez no horizonte do autor francês, que detém uma escrita em francês muito aprazível de ser lida pelas formulações claras e concisas, estivesse nos latinos e toda uma sofisticada métrica na escrita desta época cultura e histórica que dizemos como os “Antigos”. Período ao qual o autor se dedicou a produzir traduções e comentários de Mario Vitorino, já na fase latina desta antiguidade, e suas conexões com outros pensadores do estoicismo, como Plotino em particular.
A escrita como composição parece estar mais próxima de um exercício existencial do que um mero ato informativo, uma argumentação meramente de lógica formal. Ideia que já é uma apreciação nossa, em partes do que já pensamos sobre o fenômeno da “Inteligência Artificial (I.A.) e seus limites e potencialidades enquanto instrumento técnico. Tecnologia que nos parece capaz de entregar um texto dotado de uma lógica segundo uma dada gramática, porém sem uma dotação de sentido, que só se mostra no ato da composição da escrita urdida por um humano, que expressa no ato de comunicação uma intenção.
Sentido que versa não só sobre informações do passado, mas de inferências futuras, de projeções sobre sentidos não gravados em algum banco de dados, bem como articulações sempre situadas em contextos de sentidos mais alargados e que se explicita rapidamente para outros leitores. Contexto que de certo diz e endossa a intencionalidade da pessoa humana a comunicar. Traço rapidamente perceptível como ausente na emulação dos textos da I.A´s.
Esta ideia de compor um texto para além de uma memória ou de uma informação dada no passado tem sido um divisor de águas no uso da tão propalada I.A. Tal realidade diz da sua natureza digital binária, e não analógica como é próprio do pensamento oriundo de sistemas orgânicos não binários, mas analógicos. Podemos ainda verificar os limites da I.A. nos trabalhos escolares. Quando um estudante recorre a este novo “eldorado” para eventuais trabalhos pessoais, delegando a um modelo de linguagem processada em circuito eletrônico binário a iniciativa de estruturar o seu trabalho escolar, sobressai alguns sinais desta manufatura simbólica, que apenas intenta emular o que é próprio dos humanos. Além dos erros risíveis de conceitos ou dados biográficos contidos nestas aparentes composições textuais, [nos fazendo lembrar das imagens com 6 dedos ou 4 dedos em uma mão humana], podemos notar sua total desidratação de sentido humano. Mesmo quando a I.A. propõe um roteiro de uma aparência criativa, pode-se logo sentir seu vazio de sentido. Um texto gramaticalmente correto, porém, que não diz nada, é um dos sintomas mais evidentes desta nova desse simulacro textual. Um certo excesso de adjetivos ou o popular “encheção de linguíça” [gíria para enrolar e não dizer nada e fingir estar a dizer] conclui os atuais sintomas de textos sem contextos.
Começamos esta crônica com Hadot e encaminhamos para o final com Agostinho da Silva. O ponto comum entre os autores é a filologia e o conhecimento da cultura da Antiguidade. Agostinho da Silva, um pensador das humanidades luso-brasileiro, também se lançou com os da sua geração e formação em algumas traduções latinas, que destaco a uma tradução de uma obra de Catulo. A sua tese de doutorado, lá nos anos de 1929, sobre o Sentido Histórico das Civilizações Clássicas, é outra referência para indicar o ponto comum como o helenista francófono.
Em 1930, ao se dedicar a um período que hoje denominaríamos de pós-doutorado, redige um trabalho sobre a Religião Grega e, por mais este contexto, podemos dizer que suas investigações acadêmicas passam a lidar e a tratar de temas que é muito próximo ao contexto de Pierre Hadot, sendo os dois autores quase contemporâneos, mas de certo da mesma geração de intelectuais que tem como ponto comum a cultura Clássica, a filologia e a filosofia.
Este destaque de pontos em comum é para dizer que Agostinho da Silva, como Hadot, também pensava a escrita como composição, o que nos permite inferir que a origem do tema advém deste contato específico a partir da filologia [posterior linguística] e cultura Clássica ou Antiga. Se no autor francês podemos verificar uma marcada atividade de escritos sistemáticos, dedicado a tradução e comentários de clássicos gregos e latinos, em Agostinho da Silva notamos um avanço bem peculiar nesta ideia de escrita como composição.
Através da ideia do autor de “fazer-se poema” como a atividade mais importante que todo vivente deveria se dedicar, tenho compreendido esta ideia como um tranço distintivo do poetizar filosofar na cultura Lusófona. Especialmente entre os PALOP´s, Brasil e Portugal. Nesta chave, a vida de Agostinho é o texto, a vida de vários poetas cabo-verdianos é o texto, que ainda tem a graça de serem musicados com muita frequência. Para Amom Pinho, sobre a obra e pensamento do pensador de Barca D´Alva, a sutiliza do seu pensamento está justamente em ter superado o “penso logo existo” de Descartes, o “sinto e penso” que pode ser extraído do pensamento de Friedrich Nietzsche, para o viver-pensar de Agostinho da Silva.
Para a ideia de texto e a sua composição o destaque desta proximidade de viver e pensar, sem uma separação da realidade, tem implicações as quais nos parecem ainda ausente por completo das I.A. O sentido do existir se dá misturado com a contradição. Os limites, os erros, fazem parte do sentido. A clareza que todos deveriam ter das suas respectivas discursividades por mais que seja um ideal desejado, ela nunca é dada no percurso dos viventes. Vamos “esclarecendo” os sentidos da vida em meios a manchas de sentidos, borrões de fronteiras, intercâmbios semióticos, substituições não confessadas. Este pensar viver é antes de tudo um território atordoado pelos afetos, pelas paixões nos sentidos dos Estoicos. O exercício poético filosófico, presente ao longo da biografia-pensamento de Agostinho da Silva, bem como na poesia de poetas e poetisas em vários sítios da lusofonia, é este exercitar-se no apaziguamento interior, na tal paz de espirito dos Antigos [ataraxia].
Escrever e compor escritas em épocas de GPT tem os mesmos desafios de sempre. Devemos fazer uso desta ferramenta, ela é uma auxiliar para algumas questões, como os corretores de textos tem sido. Mas demandar deste circuito eletrônico aspectos que só são possíveis ao pensamento humano é um exercício prático de perder a si, deixar de exercitar-se na composição de discursos que são o sentido mais fundamental do vivente humano. Delegar isto para uma máquina ou mesmo para outros humanos é abrir mão da coisa mais fundamental e elementar que é o viver mesmo.
*Doutorando em Ciências das Religiões, Faculdade Unida de Vitória, Bolsista FAPES.