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Entre a dor psíquica e a (des)esperança

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“O suicídio é um ato definitivo para um problema temporário”

[Shneidman]

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Arlindo Rocha

Ao mencionar um ´problema temporário´, creio que o autor se refere às dificuldades passageiras que, no entanto, para quem as vivencia intensamente, podem parecer insolúveis e definitivas. Nesse contexto, a perceção do tempo e do futuro é obscurecida e a esperança de mudança é anulada, abrindo espaço para que o suicídio seja visto, de forma distorcida e desesperada, como a única saída possível.”

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Começo este artigo com a célebre máxima de Edwin Shneidman, mencionada pela Doutora Karina Okagima Fukumitsu durante o Seminário “Agir, Proteger e Cuidar de Vidas”, organizado pelo Escritório de Políticas Transversais de Direitos e Cuidados, Saúde e Acessibilidade da Prefeitura Municipal de Niterói. O evento, realizado no Teatro Municipal da cidade, reuniu um público expressivo e suscitou profundas reflexões sobre a prevenção do suicídio.

A Dra. Karina Fukumitsu, psicóloga, psicopedagoga e gestalt-terapeuta, exerce funções como consultora em Saúde Existencial. A sua sólida trajetória académica inclui Pós-doutoramento e Doutoramento em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e Mestrado em Psicologia Clínica pela Michigan School of Professional Psychology (MiSPP). Reconhecida como referência em Suicidologia, coordena atualmente a Pós-Graduação em Suicidologia: Prevenção e Posvenção, Processos Autodestrutivos e Luto, na Faculdade Phorte.

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Entre os vários apontamentos apresentados na sua palestra, a máxima de Shneidman destacou-se pelo impacto que me causou, conduzindo-me à reflexão e ao desejo de elaborar este texto, ainda que o tema não seja a minha área de especialidade direta. A relevância desta máxima justifica-se pela sua densidade conceitual e pela urgência que a questão suscita.

Para melhor compreendê-la, acredito ser necessário conhecer o seu autor: Edwin Shneidman (1918–2009), foi um psicólogo norte-americano considerado o fundador da Suicidologia, criador do Centro de Prevenção do Suicídio de Los Angeles e da Associação Americana de Suicidologia. Shneidman definiu o suicídio como o resultado de uma dor psíquica intolerável, isto é, um sofrimento mental que se torna insuportável.

Ao mencionar um “problema temporário”, creio que o autor se refere às dificuldades passageiras que, no entanto, para quem as vivencia intensamente, podem parecer insolúveis e definitivas. Nesse contexto, a perceção do tempo e do futuro é obscurecida e a esperança de mudança é anulada, abrindo espaço para que o suicídio seja visto, de forma distorcida e desesperada, como a única saída possível.

Durante a sua exposição, em tom pedagógico e acolhedor, a Dra. Karina sublinhou que o suicídio não deve ser silenciado nem tratado socialmente como tabu. O silêncio, segundo ela, apenas perpetua preconceitos e mitos. O diálogo deve ser contínuo em todos os espaços sociais e não restrito ao Setembro Amarelo, mês de maior mobilização em torno da valorização da vida e da saúde mental.

A sua capacidade de dialogar de forma aberta e empática com os presentes, aliada a uma postura segura e sensível, reforçou de forma exemplar o lema do seminário: “Agir, Proteger e Cuidar de Vidas”, recordando-nos de que a vida, enquanto bem supremo, merece cuidados permanentes. Como afirmou a palestrante, “enquanto há vida, há solução”. Tomo a liberdade de acrescentar: “enquanto há tempo, há solução”, pois é no tempo que se abrem as possibilidades de transformação. O devir, como propôs Heráclito, só acontece porque o tempo não cessa.

Refletindo sobre a máxima de Shneidman, duas expressões merecem ser destacadas: (1) “suicídio”, entendido como ato de pôr termo à própria vida diante de um sofrimento psíquico insuportável; (2) “problema temporário”, que sob uma ótica externa pode ser solucionado, mas que, para quem sofre, é percebido como prisão inescapável. O paradoxo reside precisamente aí: no limite da dor, perde-se a capacidade de se projetar o amanhã.

Apesar da força da máxima, é necessário reconhecer o seu caráter limitador quando tomada de forma isolada. O suicídio é um fenómeno multifatorial, envolvendo aspetos como doenças mentais, exclusão social, bullying, xenofobia, desesperança, doenças crónicas e ausência de propósito. Para o indivíduo em sofrimento, a dor não é percebida como efémera, mas como absoluta, radical e definitiva. Daí a necessidade de uma abordagem sempre empática, integrada e multidisciplinar.

Ainda assim, a máxima pode atuar como um antídoto simbólico: ao recordar que “toda dor é passageira”, evidencia-se que os problemas temporários podem ser superados através da compreensão, do autoconhecimento, da terapia e, em certos casos, do recurso à medicação. Isto reafirma a importância do tempo e do apoio no processo de ressignificação da vida.

A reflexão que desenvolvi até aqui conduziu-me também a outro tema que abordei na minha dissertação de Mestrado na PUC-SP, em 2016: o tédio, na perspetiva do filósofo francês Blaise Pascal. Para ele, nada é tão insuportável ao homem quanto permanecer em repouso absoluto, sem paixões. Nessa condição, o indivíduo depara-se com o vazio existencial, que gera tristeza, mágoa, desespero e o sentimento do nada.

Contudo, o tédio deve ser compreendido como um estado temporário, e não como um destino inevitável. A tradição clássica já advertia, como lembra o filósofo estóico Séneca: “Otium sine litteris mors est et hominis vivi sepultura” (O ócio sem estudo é a morte e o sepultamento do homem vivo). Ou seja, o ócio improdutivo, sem reflexão ou cultivo intelectual, paralisa a vitalidade humana.

Para Pascal, a fuga através do divertimento era o meio mais comum de escapar ao tédio. Outros filósofos, como Schopenhauer e Kant, também destacaram que a raiz do problema está na relação do homem com o tempo e com a sua própria finitude. Ainda assim, o tédio pode ser superado pela criatividade, pela interioridade e, na visão pascaliana, pela relação com o transcendente.

Importa notar que, em situações de fragilidade psíquica, o tédio pode intensificar a angústia e abrir espaço para o desespero, constituindo um fator de risco para o suicídio. Isto não significa que conduza necessariamente a tal desfecho, mas que pode agravar vulnerabilidades já existentes.

Assim, tanto a dor psíquica como o tédio a angústia ou outros males psicológicos devem ser entendidos como problemas temporários, suscetíveis de ressignificação com o apoio adequado. Podem representar risco, quando associados à desesperança, mas também oportunidade de crescimento, quando enfrentados de forma saudável. Reconhecer esta ambivalência é essencial para a prevenção, sobretudo no âmbito de campanhas como o Setembro Amarelo.

Concluo retomando a máxima de Shneidman: na minha perspetiva, e em contraste com a afirmação do citado autor, o suicídio não deve ser entendido como uma solução definitiva, mas antes como o reflexo de um sofrimento que obscurece a esperança e a perceção do tempo. Há sempre outros caminhos possíveis para enfrentar e superar os problemas temporários. A responsabilidade que recai sobre todos nós: sociedade, instituições e profissionais é a de agir, proteger e cuidar de vidas, promovendo espaços de acolhimento e (auto)transformação.

Se chegou até aqui e está a passar por uma situação difícil ou a enfrentar um problema, saiba que não está sozinho. Procurar apoio é uma decisão sábia. Reconhecer que não somos autossuficientes e que, em determinados momentos, necessitamos de suporte externo quando não conseguimos resolver, por meios próprios, os nossos problemas existenciais não é sinal de fraqueza, mas de grandeza. Procure ajuda e ofereça ajuda a quem dela precisar!

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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