Arlindo Rocha*
Na semana passada, a notícia sobre a “introdução do ensino da educação moral e religiosa católica nas escolas” em Cabo Verde, foi manchete em alguns diários online. Esse fato ganhou destaque quando a Deputada Dora Oriana, segundo as fontes que tivemos acesso, manifestou sua perplexidade quanto ao assunto. Em um dos diários foi destaque que “a Deputada deu voz à posição contra do seu Partido e mostrou-se ‘chocada’ com a introdução, opcional, do ensino da moral Católica”. Mas, não é de se estranhar que notícias como esta sejam amplamente compartilhadas e comentadas nas redes sociais, sobretudo, porque desperta nos leitores e internautas paixões e manifestações que muitas vezes ganham outros contornos, já que o binômio política e religião nem sempre geram discussões pacíficas. Nessas discussões é preciso que se reconheça que, algumas vezes os interlocutores perdem-se em suas argumentações e o debate perde seu real sentido, já que as premissas pelas quais partem muitas vezes estão embasadas em concepções equivocadas.
Quando se fala de um tema tão sensível e tão importante como o Ensino Religioso em um Estado laico (imparcialidade em assuntos religiosos), é preciso não deixar-se contaminar por paixões político-partidárias ou religiosas, pois, somos um país democrático e multireligioso fundado no princípio da dignidade da pessoa humana. A nível religioso é verossímil afirmar que, a partir da independência de Cabo Verde, a laicidade do Estado vem se consolidando progressivamente em contraposição ao Estado colonial, vinculadamente confessional que sobreviveu mais de cinco séculos. Desde já é preciso dizer que o Ensino Religioso confessional por essas bandas não é de hoje, mas, sempre esteve ao serviço de determinadas confissões religiosas. Entretanto, com a inauguração do Estado democrático e laico, essa modalidade de Ensino perdeu espaço, ficando confinado a algumas instituições confessionais.
Com a tentativa de resgatar o Ensino Religioso (facultativo e de livre escolha) mesmo a título experimental que terá início no próximo ano letivo é normal que haja reações prós e contras, pois, a livre expressão é garantida pela nossa Constituição. Entendo perfeitamente ambos os lados, e, embora não querendo fazer juízo de valor, não posso omitir minha opinião quando ao assunto. Em relação a postura da Deputada, compreendo sua indignação, pois, se Cabo Verde é um país laico, os dirigentes governamentais precisam honrar esse compromisso tratando todas as religiões da mesma forma, ou seja, sem privilégios especiais ou restrições; por outro lado, entendo também os que se posicionam a favor desse tipo de Ensino, porém, sugere-se que, a “sua implementação” não deve ser ampla e universal, mas sim, restrita às escolas ditas confessionais, como já o é, visto, não ser um ensino que privilegie o pluralismo e o diálogo inter-religioso, ou seja, o estudo das religiões sem viés apologético, proselitista, confessional e dogmático. Então, se em Cabo Verde nos orgulhamos tanto das conquistas e inovações na educação, a “introdução do ensino da educação moral e religiosa católica nas escolas públicas” seria um retrocesso de no mínimo quatro décadas, embora seja reconhecida sua importância na formação moral e cívica da sociedade cabo-verdiana, mas, os tempos mudaram.
Atualmente, em alguns países existe consenso que, para atingir seus objetivos o Ensino Religioso deve ter um aporte científico que o caracteriza como disciplina. Como componente curricular deve abordar os conteúdos específicos que promovam o processo de ensino e aprendizagem das religiões, contextualizando-as e ressignificando-as. Por isso, para que possamos entender e falar sobre as boas práticas no que tange ao Ensino Religioso é preciso que se conheça com alguma profundidade principalmente os métodos e os modelos e sua aplicabilidade em contextos diferentes. A proposta que versa sobre o “ensino da educação moral e religiosa nas escolas” defendida pela atual Ministra da Educação, mesmo sendo facultativo, pode efetivamente contribuir para a violação do Artigo 48º Inciso I, da Constituição de Cabo Verde, referente à ‘Liberdade de consciência, de religião e de culto’, uma vez que, essa iniciativa poderá exacerbar ainda mais atos de intolerância religiosa dentro e fora das escolas, o que constituiria um retrocesso gigantesco no que tange as relações entre as confissões e instituições religiosos existentes no país. Então, antes de mais delongas, torna-se importante elencar algumas questões que são fundamentais para que se possa dimensionar epistemologicamente os limites e as possibilidades, julgar e entender em seu justo valor a importância do Ensino Religioso em Cabo Verde: Que tipo de Ensino Religioso queremos para os nossos filhos? Como ensinar a (s) religião (ões) em um estado laico? Qual é o perfil/competências do docente do Ensino Religioso? Quem formará/capacitará os futuros docentes? Como dar conta da complexidade/diversidade religiosa nas escolas? Como elaborar um Ensino Religioso que promova a tolerância e o diálogo inter-religioso?
Responder essas e outras questões é fundamental, não para a materialização do ‘ensino da educação moral e religiosa católica’, mas, sim, para a consolidação de um Ensino Religioso que seja plural, pois, cultivar e estimular o respeito à diversidade/liberdade religiosa é uma tarefa complexa, tendo em conta a diversidade do seu objeto de estudo (Religiões). Por isso, nossa sugestão inicial, começa pela mudança do escopo da disciplina, ou seja, nome, conteúdos, objetivos, métodos e modelos que norteará uma verdadeira transformação no ensino das religiões nas escolas. Sendo assim, torna-se imprescindível: estudar os vários modelos de Ensino Religioso, como instrumento metodológico que auxilie o entendimento das práticas pedagógicas dos alunos e professores; disponibilizar a partir dos modelos apresentados, pormenores para o esclarecimento dos fundamentos que subjazem às concepções e práticas de Ensino Religioso; valorizar o pluralismo e a diversidade religiosa/cultural presente na sociedade cabo-verdiana visando possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de estruturas religiosas que têm na liberdade o seu valor inalienável.
Acredita-se que só assim, o Ensino Religioso possa produzir uma educação fundamentada na tolerância, no respeito, na convivência e na paz como princípios fundamentais do convívio humano e harmonioso na sociedade. O Ensino Religioso deve proteger, não obstante as contradições, limites e ambiguidades, a diversidade de crenças e o pluralismo religioso em conformidade com os objetivos educacionais. Então, para esclarecer alguns equívocos sistematizaremos inicialmente os modelos de Ensino Religioso e posteriormente faremos um paralelo com os valores relativos ao respeito e à diversidade religiosa nas escolas. Dentre os modelos mais estudados, destacamos: Modelo confessional/catequético; Modelo teológico; Modelo da Ciência da Religião.
O modelo confessional/catequético estrutura-se a partir do ensino de uma determinada confissão religiosa no espaço escolar, pois, os alunos são vistos como fiéis. Este modelo pressupõe, em última instância, a fé do aluno. Ela propõe a formação de salas diferentes de acordo com as opções de fé, com exceção da escola confessional. Esta baseia-se seus princípios, objetivos e formas de atuação numa religião específica, diferenciando-se, portanto, das escolas laicas/seculares. Para esse tipo de escola/modelo de ensino (confessional) o desenvolvimento do sentimento religioso e moral nos alunos é o objetivo primeiro do trabalho educacional. Esse seria o modelo que se quer implementar em Cabo Verde no próximo ano. Porém, esse modelo é amplamente criticado por especialistas devido: a confusão do Ensino Religioso com a catequese; a divisão dos alunos no espaço escolar; a crença na pertença e crença eclesial; a indiferença em relação ao pluralismo religioso no cotidiano escolar. Entretanto, o modelo pode ser levado adiante no contexto da escola confessional. Mas, é preciso que se diga que, Ensino Religioso e Catequese não se identificam, no entanto não se contrapõem. A questão está no enfoque sobre o objeto: o Ensino Religioso visa à educação da religiosidade e a Catequese a educação da fé baseado no que é próprio da sua religião, portanto, objetiva desenvolver a formação na fé.
Já o modelo teológico é uma perspectiva ecumênica do Ensino Religioso. Alguns autores como Sérgio Junqueira (Professor Livre Docente e Pós-Doutor em Ciência da Religião pela PUCSP) preferem denominar esse modelo de inter-confessional, inter-religioso e inter-relacional, e, João Décio Passos (Livre Docente em Teologia e Professor associado da PUCSP) sustenta que esse modelo “[…] age, sobretudo, como um pressuposto que sustenta a convicção dos agentes e a própria motivação da ação; a missão de educar é afirmada como um valor sustentado por uma visão transcendente do ser humano […]” Essa visão, conquanto revele uma disposição democrática da disciplina do Ensino Religioso, também parte do dado da fé nas diversas designações religiosas e procura o diálogo com diferentes confissões religiosas presentes na sociedade de forma a proporcionar o respeito e o diálogo entre as religiões visando à formação integral do ser humano.
A nova visão do modelo da Ciência da Religião é considerada por especialistas como Afonso Soares (Ex-professor Livre-Docente do Departamento de Ciência da Religião da PUCSP) e Robson Stigar (Doutor em Ciência da Religião) o novo “paradigma do Ensino Religioso, pois, possui um modelo de racionalidade no qual incluem-se todas as esferas: científicas, filosóficas, teológicas ou até mesmo o senso comum.” Então, com a emergência desse novo paradigma, o Ensino Religioso adquiriu autonomia como área de conhecimento com estatuto epistemológico e pedagógico próprios. Segundo Usarski (Livre Docente na área de Ciência da Religião pela PUC-SP) o objetivo da Ciência da Religião é “fazer um inventário o mais abrangente de fatos reais do mundo religioso, um entendimento histórico do surgimento e desenvolvimento das religiões particulares, uma identificação de seus contatos mútuos e a investigação de suas inter-relações.” Acrescenta ainda que “o estudo dos fenômenos religiosos, leva a um entendimento das semelhanças e diferenças de religiões singulares a respeito de suas formas, conteúdos e práticas e o reconhecimento de traços comuns, permite uma dedução de elementos que caracterizam como um fenômeno antropológico universal“.
Assim, o Ensino Religioso no contexto das escolas públicas, não necessita mais ser desempenhado por um teólogo, um pastor ou um padre (especialistas em uma religião), mas por um Cientista da Religião (especialista em religiões) com formação e capacidades pedagógicas para a docência e investigação. Apesar de saber que atualmente não existem profissionais em Cabo Verde com esse perfil (formados em Ciência da Religião), vejo nesse fato, um obstáculo à sua implementação, pois, acredito que eu seja o único cabo-verdiano com formação nessa área (Mestre e atualmente Doutorando em Ciência da Religião pela PUCSP). Por isso, na qualidade de Cientista da Religião, coloco-me a inteira disposição para que possamos ampliar o debate sobre o tema na procura das melhores soluções, sendo que uma das primeiras passa necessariamente pela formação dos docentes. Nesse sentido ela deve ocorrer a partir de procedimentos e avaliações peculiares ao Ensino Superior e que propicie o desenvolvimento de habilidades e competências específicas, pois, diferente dos outros profissionais do Ensino Religioso o Cientista da Religião (docente) deve ser capaz de: analisar e interpretar um fenômeno religioso, sem que seus pré-conceitos interfiram o que não pressupõe necessariamente neutralidade, já que esta última implica na total insensibilidade e absoluta ausência de envolvimento e opinião do estudioso quanto ao fenômeno estudado; Ser imparcial, porém, jamais neutro, o que tiraria a sensibilidade e o senso crítico necessário para a apreensão e crítica dos inúmeros sentidos secundários de um símbolo religioso.
A partir desses pontos, ficou claro que a pretensão foi apresentar uma reflexão que some esforços na busca de caminhos para uma ética religiosa global e para o diálogo com a diversidade, mas sem a ilusão de que o diálogo seja possível com todos. É óbvio que, se tivéssemos que escolher um modelo em que o diálogo fosse indispensável, embora não exclusiva, seria o modelo da Ciência da Religião, uma vez que rompe com os outros modelos em nome da autonomia pedagógica e epistemológica da disciplina, salvaguardando assim, o respeito à diversidade religiosa dos alunos e de todos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, pautando-se pelo ‘ateísmo metodológico’ por parte do Cientista da Religião e a garantia do diálogo inter-religioso e do respeito pela diversidade religiosa.
Por isso, acreditamos que a implementação do Ensino Religioso em Cabo Verde deve necessariamente passar por uma reflexão profunda, uma revisão ampla dos conceitos, uma abertura à diversidade respeitando sempre a dignidade e a liberdade dos alunos, professores e demais envolvidos, estimulando o pensamento crítico, construtivo e tolerante com as diferenças religiosas. Só assim será possível atingir os objetivos do Ensino Religioso que consiste em oferecer aos alunos os elementos necessários à compreensão do mundo, da cultura, da história e de si mesmos, para além do contato com uma única religião.
Cabo Verde caminha para frente, dia-a-dia desenvolvendo-se, reinventando-se e lutando para mostrar suas potencialidades, ser global, sem perder suas tradições, porém, seria um retrocesso, aplicar mesmo que facultativo o Ensino Religioso apenas com o viés católico, pois não estaríamos dando a opção de escolha, afinal não há opções quando já se impõe uma religião. A questão central da democracia é saber se desejamos e somos capazes de participar da vida em comunidade. Convém não esquecer que esse desejo depende do sentido de responsabilidade de cada um. Ora, apesar de ter conquistado novos espaços, dominados anteriormente pelo totalitarismo, pela religião única e pela arbitrariedade ainda não aprendemos a lição básica que é a nossa própria historia?
Rio de Janeiro aos 22/05/2019.
* Mestre e Doutorando em Ciência da Religião na PUC-SP (Bolsista CAPES)
Autor das obras: Entretextos: coletânea de textos acadêmicos (2016)
Paradoxos da condição humana: grandeza e miséria como paradoxo fundamental em Blaise Pascal (2019)
Referências:
FONSECA, Alexandre Brasil. Relações e privilégios: estado, secularização e diversidade religiosa. – Rio de Janeiro: Novos Diálogos Editora, 2011.
LIMA, Ronald. Novas perspectivas para o Ensino religioso no Brasil: uma educação para convivência e a paz no contexto religioso plural. – 1ª Ed.: Clube dos Autores, 2016.
SOARES, Afonso. M. L; STIGAR Robson. Perspectivas para o Ensino Religioso: uma Ciência da Religião como novo paradigma. In: Revista Rever. Ano 16. no 01, janeiro de 2016.
USARSKI, Frank. Interações entre Ciência e Religião (entrevista com Frank Usarski). Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, v. II/17, n. outubro, 2002.
XAVIER, Mateus Geraldo. A contribuição do Ensino religioso no acesso a fé: uma leitura teologia-pastoral. – São Paulo: Edições Loyola, 2006.
Se Cabo Verde é um País Laico, nao podemos levar religião a escola… os políticos já devem saber do que se trata…
Ser um País laico, não quer dizer um país anti-religioso! Pode-se sim, levar o Ensino Religioso às escolas, desde que seja plural, ou seja, um Ensino que privilegie o estudo comparado e sistemático de todas as religiões sem proselitismos e discriminações. As religiões devem ser estudadas como fatos sociais independentemente da fé, da crença e da pertença religiosa dos indivíduos envolvidos . Por isso, deve ser feita por profissionais competentes que saibam usar os métodos, as teorias e os modelos do Ensino Religioso aplicados pela Ciência da Religião…