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Cinema como agente cultural na sociedade são-vicentina

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O cinema cabo-verdiano, essencialmente em São Vicente, assumiu de forma plena o papel de agente cultural, favorecendo o desenvolvimento local, criando espaços de sociabilidade e também promovendo a valorização, o desenvolvimento e a preservação da cultura local.

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Por: Jaime Brito*

Ao falar de cinema, a nossa geração Z mindelense ou são-vicentina, com certeza, deve
imaginar essa prática como distinta ou de pouca frequência em São Vicente. Entretanto,
poucos sabem que o cinema, em tempos passados, teve uma forte manifestação nesta ilha
e contribuiu imensamente para o desenvolver da identidade cultural desta cidade. A história
do cinema coincide com a história e as mudanças sociais desta ilha.

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Na tentativa de reconstruir o percurso do cinema em São Vicente, percebe-se que não há uma data exata da sua chegada na ilha. Mas há informações que remetem o cinema à presença dos ingleses. Por volta de 1903, segundo Leão Lopes, diretor de cinema, artista visual e escritor cabo-verdiano, “há dados de que os ingleses possuíam um projetor e o usavam para passar filmes em seus convívios sociais”. O cinema marcou sua permanência durante o regime colonial português em Cabo Verde.

O cinema era, e ainda é para os que vivem dele, portador de grandes esperanças, que lhes permitiria criar estruturas próprias e autónomas para atuar na sociedade. Dando um salto na história, vamos ao ano de 1922, em que César Marques da Silva inaugurou o cinema Éden Park, que posteriormente veio a se tornar um dos maiores patrimónios da cidade do Mindelo.

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Éden Park, segundo se ouve, passava filmes de todos os géneros, desde aventura até romances. Foi neste cinema que os cabo-verdianos conheceram exemplos da dignidade e solidariedade humana e ainda a consciência da liberdade. Em 1926, houve um golpe de Estado em Portugal, que levou ao poder Salazar, um ditador que impunha censura no seu governo. Com isso, por Cabo Verde ser colónia de Portugal, o cinema viu-se censurado e incapaz de transmitir filmes que passavam lições acerca da exploração humana, como Charlot, ou filmes que transmitiam cenas polémicas, ensinando acerca da liberdade.

Ainda em clima de ditadura e de muita censura, surgiu em São Vicente, por volta de 1950, mais um cinema – o Cine Park Miramar, que pertencia ao Tuta Melo, um empresário no sector privado, que veio partilhar a clientela amante do cinema com o Éden Park. O Cine Park Miramar teve um papel importante na cultura da sociedade mindelense. Tudo começou com a exibição de filmes mudos, por Tuta Melo, no quintal da sua casa, até a construção desse cinema já mencionado.

O Cine Park Miramar tinha grande reputação como transmissor de desenhos animados e dos filmes mais modernos. Note-se que o cinema em São Vicente funcionou, na sua totalidade, fruto de iniciativas privadas, sem intervenções autárquicas ou nacionais. Entretanto, com o desenvolver da tecnologia e o surgimento das televisões, a prática das pessoas irem ao cinema começou a ser deixada de lado. Sendo assim, os cinemas, face às crises económicas tiveram que fechar as portas.

O Cine Park Miramar foi o primeiro a decair. Como ressaltou António Ramos, entusiasta do cinema e ex-funcionário do Cine Park Miramar. “Normalmente, em estreias vendíamos cerca de 100 bilhetes ou mais, entretanto com a chegada da televisão, o cinema entrou numa dificuldade enorme, as pessoas já não iam ao cinema e conseguia vender em torno de 20 bilhetes apenas…”.

Com isso, o espaço onde era o Cine Park Miramar teve de ser cedido à igreja Universal. Éden Park durou mais alguns anos, mas posteriormente também teve de fechar as portas. Ambos os espaços, que eram ambientes de muita sociabilidade e euforia, hoje são edifícios abandonados. Isso pela inexistência de políticas estatais para auxiliar os cinemas a contornar a crise e ajudá-los a preservar esses espaços, mantendo suas atividades, que porventura trariam um grande contributo à cidade.

Cinema levava instrução e a cultura popular…

O cinema em São Vicente foi mais do que um entretenimento, tendo-se enraizado no modo de viver das pessoas. Há quem diga que a própria cidade do Mindelo é um palco do cinema, onde personagens constroem e reconstroem as suas histórias, dramas e tramas. Essa arte, ou indústria, conforme cada um a queira considerar, tornou-se parte da vida das pessoas.

Há muita gente, que por intermédio do cinema e em sintonia com as atividades portuárias aprenderam a compreender e a falar um pouco do inglês. Para além disso, o cinema estimulava muito a economia da ilha. António Ramos conta que “muitos jovens executavam pequenos serviços no cais, como carregar e descarregar carga, para poderem arrecadar algum dinheiro para conseguirem comprar bilhetes do cinema”.

Segundo se percebe nos artigos de Luís Silva sobre o cinema em São Vicente, a economia beneficiava
muito quando havia estreias, visto que pessoas das outras ilhas viajavam para cá para assistir aos filmes. Seria por meio do cinema que conseguiam sair um pouco de suas rotinas cansativas e se dedicar um pouco ao lazer e à socialização. Neste espaço, as pessoas riam- se e desenvolviam novas formas de ver o mundo, a partir da criatividade que o cinema injetava nelas.

Segundo testemunhos ouvidos num encontro intitulado “Conversa paradisíaca sobre o Cinema”, que aconteceu na cantina do M_EIA, Liceu Velho, no dia 27 de janeiro, foi no cinema que muitas pessoas “aprenderam a sonhar grande” e a almejar novas expetativas na vida. O cinema era um grande divertimento para a população, muitas saíam de lá encarnando os personagens e reproduzindo os diálogos ouvidos nos filmes.

Entretanto, o cinema não se constituía apenas como divertimento, também era uma escola popular, onde as pessoas aprendiam muito sobre os acontecimentos do mundo. O cinema levava instrução e cultura popular ao povo mindelense. Luís Silva afirma num dos seus artigos sobre o cinema que foi o mesmo que despertou e fomentou o sentido crítico do povo em relação ao racismo, às injustiças humanas e à esperança dum mundo melhor onde a justiça é um valor absoluto.

O cinema foi um dos meios que contribuiu sem medida para a consciencialização, a instrução do povo cabo-verdiano. Foi por meio dele que o povo se tornou consciente da necessidade da luta pela libertação nacional. Há relatos de que teria sido por meio deste que autores como Amílcar Cabral e Abílio Duarte teriam denunciado as atrocidades coloniais existentes.

Ao comparar a função de um agente cultural e o trabalho feito pelo cinema em São Vicente, nota-se que este desempenhou, e de forma majestosa, o papel de agente cultural. O cinema como agente cultural na sociedade mindelense promoveu, desenvolveu e preservou a cultura local, atuando em diversas áreas, como artes cénicas, literatura, música, arte visual, património cultural e educação. Afinal, cinema é a compilação de todas as artes.

O cinema foi e ainda pode ser hoje, se aproveitado, uma das maiores fontes de cultura local e geral. Claro, isto se houver interesse em aproveitar o seu potencial.

*Estudante do 2º ano da Licenciatura em Ciências da Comunicação da Uni-CV (polo do
Mindelo). Trabalho realizado para a disciplina de Português IV Intermodal.
Fontes consultadas: Silva, Luís (1998). DO CINEMA EM CABO VERDE: CONTRIBUIÇÃO
PARA A SUA HISTORIA (I) e (II) \ https://mascarenhas.com.ar/islas-de-cabo-
verde/san_vicente/eden_park/6_do_cinema_em_cabo_verde_contribuicao_para_sua_histori
a_(I).htm \ https://arrozcatum.blogspot.com/2013/12/6259-do-cinema-em-cabo-verde-2.html

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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