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Carnaval do Mindelo e os seus paradoxos

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Ronise Évora

Acontece que os grupos de carnaval, que, em última instância, são as “estrelas” do certame, são os que menos beneficiam do seu crescimento a olhos vistos. Desde logo porque os critérios e os valores do financiamento do evento mantêm-se quase inalterados, quando a qualidade que se exige a cada ano que passa é manifestamente maior.

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Que o Carnaval de São Vicente se tornou um produto turístico importante, ninguém duvida! Que atingiu um nível de quase excelência na parte formal, nas normas do desfile e em outros aspetos, também é inquestionável!

O governo, o município de São Vicente, a Ligog e outros atores muito têm trabalhado para a internacionalização do certame. E todos temos ganho com isso. No entanto, e também por isso, o grau de exigência mostra-se cada vez mais elevado e rigoroso.

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Acontece que os grupos de carnaval, que, em última instância, são as “estrelas” do certame, são os que menos beneficiam do seu crescimento a olhos vistos. Desde logo porque os critérios e os valores do financiamento do evento mantêm-se quase inalterados, quando a qualidade que se exige a cada ano que passa é manifestamente maior. Basta ver que só nesta quarta feira de cinzas, ficamos a saber pelas notícias que “o Governo está pronto para distribuir aos grupos a segunda tranche do financiamento” atribuído pelo Ministério da Cultura! E, fique claro, os valores em causa são simbólicos quando confrontados com a responsabilidade, o volume de trabalho e qualidade que se quer exigir.

A Câmara Municipal e mesmo a Ligog só transferem os valores acordados já muito próximo da data do desfile, quando, na verdade, faz muito mais sentido adjudicá-los mais cedo, para que os grupos possam atempadamente gerir da melhor maneira as respetivas estratégias financeiras, contratuais ou outras. Tanto mais que existem grupos que não têm, além destas, outras fontes de financiamento.

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E este aspeto vem trazer ao de cima o seguinte: o Carnaval de São Vicente deve ser uma festa de inclusão. É uma festa do povo, e para o povo, que dá voz e vez a todos. No entanto, o caminho que parece que vem sendo trilhado é o oposto. Tanto que qualquer pessoa, mesmo desconhecendo a realidade aqui do burgo, dá conta do fosso existente entre os ditos grupos maiores e os outros. O fosso faz-se enorme, sendo avaliados por iguais critérios.

Talvez tenha chegado a hora de refletirmos sobre o carnaval que queremos. Porque se o não fizermos agora, algum ou alguns dos grupos menos favorecidos por “empresas e financiadores amigos”, ainda que tradicionais e também amados, venham desaparecer. Ficando apenas dois ou três, que não são, nem pretendem ser, a voz de todos.

Se o carnaval é do povo, deve-se, e o desafio é descobrir como, pelo menos inicialmente, garantir a participação digna de todos. Nesta senda, não faz sentido o financiamento tardio pelos poderes públicos. Porque, se é verdade que há grupos que têm fundos próprios que lhes permitem trabalhar até ao momento do recebimento dos financiamentos públicos, outros não o têm, e isto tem o seu peso quando falamos de prazos curtos.

No mais, com a dimensão que as festas do Rei Momo têm vindo a atingir, com notório aumento dos números no que ao turismo interno e internacional diz respeito, é notório o incremento financeiro na economia local, e não só. Ganham as companhias com os voos internacionais e internos, ganham os hotéis, ganham os restaurantes e afins, ganha o comércio informal. E, salvo as exceções que conhecemos de todos os anos, nada retribuem. Sem que ninguém lhes exija nada.

Mais grave ainda, quando empresas, participadas pelo Estado deste país, que ganham com o carnaval e por causa do carnaval feito, com mais ou menos sacrifício, por todos, se dão ao luxo de financiar, com mil contos cada um, dois dos grupos concorrentes, ignorando todos os outros. O Estado de Cabo Verde, como qualquer estado de direito, está vinculado na sua atuação, direta ou indireta, por critérios de transparência, responsabilidade social e equidade, que não se afastam por supostamente a empresa ser uma sociedade comercial.

Desde já fique claro que em nossa opinião, se querem concorrer e estar á altura, os próprios grupos, o do meu coração inclusive, têm de se (re)organizar, modernizar e responsabilizar. Humildade, disciplina, resiliência, solidariedade e seriedade são fundamentais. Já estamos em tempo de ultrapassar a gestão do “buldonhe” na qual todos querem mandar e ninguém obedece. A imagem e a conduta da direção de qualquer agremiação são essenciais para credibilizar e fazer recrutar financiamentos, simpatizantes, sócios e foliões. Organizar e cumprir, para poder exigir, este deve ser o lema. E já agora, nada como recuperar o espírito de inclusão e participação de todos na angariação e recolha de recursos para o grupo. E todos incluí direção, foliões simpatizantes e sócios. Foi sempre este o espírito do carnal de S. Vicente, que não devemos deixar perder.

No fundo, o paradoxo maior é que cada vez mais os grupos carnavalescos, os menos favorecidos sobretudo, sacrificam até ao último tostão para pôr na rua o desfile, e, ao contrário de todos os outros atores que visivelmente ganham com o evento, endividam-se e perdem fôlego e fulgor.

É hora de parar e redimensionar a questão, se queremos o melhor para o Carnaval de S. Vicente.

Parabéns a todos que fizeram deste Carnaval o espetáculo que foi. Parabéns aos Cruzeiros do Norte, em nossa opinião o justo vencedor. Bem-vindos os “VINDOS DO ORIENTE”; o carnaval de S. Vicente já sentia a vossa falta.

Para o meu grupo de sempre, estamos juntos.    

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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