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Cabo Verde e a guerra contra os seus empreendedores – Quando a burocracia se transforma em política de Estado

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Kai Brossmann

Depois de mais de trinta anos como empresário e importador licenciado, trabalhando em vários países, nunca imaginei que um dia teria de defender o simples direito de fazer negócios… no meu próprio país. Em Cabo Verde, cada processo de importação legítimo transformou-se num percurso de obstáculos, concebido não para facilitar o comércio, mas para testar a paciência e a dignidade de quem ousa empreender. O processo é de uma complexidade absurda.

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Em cada etapa há uma nova instituição a reclamar o seu papel: a Autoridade Portuária, o Agente de
Navegação, o Despachante Aduaneiro, a Direção das Alfândegas e, mais recentemente, o Ministério da Indústria, Comércio e Energia — todos exigindo formulários, declarações e carimbos redundantes.
O que deveria ser um simples desalfandegamento converte-se numa corrida de bastão burocrática, onde ninguém avança até colocar o seu selo. Ainda mais desconcertante é o tipo de documentação exigida.

Em vez de se concentrarem na verificação das mercadorias, as autoridades parecem obcecadas com papéis sem qualquer ligação direta ao processo de importação — pedidos de comprovativos de
pagamento, declarações de exportação do país de origem e outros documentos que extravasam
claramente a jurisdição nacional. A mensagem implícita é inequívoca: todo o importador é presumido culpado até prova em contrário.

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A segunda camada de decisão

O problema mais profundo não está necessariamente na lei. Em muitos aspetos, o quadro legal cabo-verdiano é razoável e até alinhado com as normas internacionais. O verdadeiro bloqueio está na segunda camada de decisão — aquele nível intermédio de funcionários, despachantes e técnicos administrativos que interpretam e aplicam as regras. Muitos deles não conhecem — ou simplesmente não querem conhecer — a legislação atual, preferindo seguir práticas herdadas, procedimentos ultrapassados e interpretações pessoais. Na prática, o espírito das reformas é neutralizado à nascença.

Se uma mudança legal pode, de alguma forma, beneficiar o empreendedor, ela será ignorada ou
contestada. O resultado é um sistema regido não por leis, mas por tradições: uma tradição de desconfiança, rigidez e lentidão. Os despachantes aduaneiros são um exemplo emblemático. Apesar de serem pagos pelos importadores, comportam-se como se estivessem na folha salarial do Estado.
Sempre que surge uma dúvida, o instinto é quase sempre favorecer a Administração Pública, nunca o
cliente que lhes paga. É como ter um advogado de defesa que, secretamente, trabalha para a acusação.

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Um simples encomenda, uma odisseia

Tomemos um exemplo banal — a chegada de uma pequena encomenda urgente do estrangeiro. Na Europa, ou em praticamente qualquer outro país, o processo é simples: a campainha toca e o
estafeta da UPS, DHL ou FedEx entrega o pacote. Se houver direitos aduaneiros, paga-se ali mesmo e o assunto termina.

Em Cabo Verde, a história começa com um trabalho de detetive. Primeiro é preciso descobrir se a encomenda chegou e, mais importante, onde. Muitas vezes aterra em Praia, noutra ilha, o que obriga a organizar e pagar o transporte inter-ilhas.

Suponhamos que, por sorte, a carga chega ao aeroporto da sua ilha. Depois de várias chamadas telefónicas, alguém confirma que há uma encomenda à espera. Dirige-se ao aeroporto, apenas para saber que a mercadoria está “cativa”, até completar todo o processo de importação. Antes de entregar qualquer documento tem de preparar uma tradução em português da fatura estrangeira. Só então o despachante aceita o processo, que pode demorar entre uma e três semanas.

Segue-se o pagamento dos direitos, nova deslocação ao aeroporto, controlo tipo TSA para entrar na zona de carga, dupla verificação documental e, finalmente, a libertação da encomenda — sob a vigilância de um agente aduaneiro que abandona o seu posto para o observar a abrir a própria caixa. Um processo que noutros países leva horas, aqui leva semanas.

Carga marítima: a viagem não termina no porto

No transporte marítimo, a história repete-se. Primeiro, é preciso descobrir o que chegou — muitas vezes literalmente olhando para as caixas no cais. Depois, nova tradução da fatura: uma cópia para o despachante, outra para o Ministério. Segue-se a exigência do comprovativo de pagamento, como se alguém enviasse mercadorias 5.000 milhas com base na confiança.

Há ainda os pedidos absurdos: uma carta de justificação explicando para que servem os bens — mesmo quando o uso é óbvio. Importámos âncoras e painéis solares, por exemplo, e fomos questionados sobre o seu destino.

Se o produto tiver algo remotamente ligado a derivados de petróleo — por exemplo, WD-40 —, o
importador deve escrever uma carta formal à Enacol e à Vivo (Shell) a pedir autorização para importar uma dúzia de frascos. Noutros países chama-se “livre mercado”. Aqui é quase um privilégio administrativo.

Um país que desconfia dos seus próprios construtores

Cabo Verde quer modernizar-se, e a vontade política existe. Mas, a implementação continua presa por uma cultura de desconfiança e controle. Os que deviam aplicar a lei agem como guardiões do passado, não como executores de reformas. E os empresários, em vez de investir em inovação, investem em paciência.

Nos últimos tempos, a situação tornou-se ainda mais absurda. As autoridades começaram a exigir dos importadores documentação que diz respeito ao processo de exportação — como a declaração de exportação (EXA), que pertence ao país de origem.

Pode ser um pedido legítimo no contexto internacional, mas por que razão é dirigido a nós, que nada temos a ver com as formalidades do exportador? Como pode o importador cabo-verdiano ser responsabilizado por documentos emitidos por autoridades estrangeiras, fora do seu alcance e controlo?
Mais uma vez, o sistema confunde zelo com suspeição e transfere responsabilidades que não lhe competem.

Se o país quer competir globalmente, precisa antes de tudo de confiança — confiança institucional no
cidadão que trabalha, importa, paga impostos e cria empregos. Essa confiança deve traduzir-se em processos digitais transparentes, com prazos definidos e responsabilidades claras.

Um balcão único eletrónico para importações, formação obrigatória sobre atualizações legais e responsabilização efetiva de despachantes e funcionários seriam um começo. Mas, acima de tudo, é preciso uma mudança de mentalidade: perceber que o setor privado não é o inimigo – é o motor. Até lá, cada nova lei continuará a ser apenas mais um papel — entre as dezenas que nós, importadores,
continuaremos a carregar de balcão em balcão, à espera de um simples carimbo.

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Engenheiro, empresário e importador licenciado há mais de 40 anos, com atividade em Cabo Verde e na
Europa.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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