Por: Cídio Lopes de Almeida*
Dentro de várias correntes filosóficas temos ao menos uma que procura ligar filosofia e a vida cotidiana das pessoas. Ela não nega a filosofia acadêmica e universitária e nem se opõe a ela, mas apenas procura retomar antigas escolas filosóficas que eram locais de uma prática a qual Pierre Hadot (2014) optou por denominar de exercícios espirituais. Importava viver segundo uma filosofia, sem preocupações de escrever esse ou aquele tratado. Operando aquilo que já citamos noutros textos, citando Hadot, para quem “a filosofia não é uma construção de sistema, mas a resolução, uma vez tomada, de olhar ingenuamente para si e ao redor de si” (2014, p.15)
Desse modo, e inspirado também no pensamento do filósofo Agostinho da Silva (Filosofia Enquanto Poesia, 2020), procuramos utilizar três palavras que denotasse tudo o que importa para este olhar ingênuo a si e ao redor de si ou, para Agostinho da Silva, o “fazer-se poema”. Chegamos a “sustento, saúde e sabedoria”. Como se trata da vida vivida, logo se nota que as três dimensões nunca se apresentam em separado, mas as três ao mesmo tempo. A ideia é simples, quando se busca pelo sustento, espera-se que a saúde esteja boa e que seja sábio no jeito de levar a vida.
Cada tópico pode ainda ser dividido em três partes. Aqui faço a opção por começar pelo sustento como aquele que se coloca de imediato a todos nós, afinal, o choro para obter um pouco de leite parece estar ligado, além da respiração, uma das primeiras atividades que executamos como recém-nascidos (ainda que em simultâneo a interpretação deste desejo ocorra também). Alguns poderão pensar que fizemos uma opção materialista. Penso que não, a intensão está mais para a percepção das pessoas em geral, não acadêmicas e familiarizadas com Marx e o marxismo.
Em nossos dias, as pessoas tem se ocupado intensivamente deste imediato que é prover o seu sustento. Penso ainda nos jovens, filhos de trabalhadores que, entre 14 e 18 anos de idade e no Ensino Médio-BR, que estão muito ocupados deste tema. Expresso na preocupação de se inserirem no mundo do trabalho.
Pretendo, portanto, fatiar esta demanda imediata de procurar um emprego/sustento em três momentos. Afinal, quando chegamos nesse mundo, chegamos com o mundo já em movimento. Pegamos carona no que já é feito. Assim, a família, a religião e a escola são esses lugares que nos informa do andamento do mundo. É curioso que, para falar de sustento, aparecemos com religião, mas se tivermos Max Weber em perspectiva, na sua obra a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, veremos que o termo em alemão para profissão e vocação é beruf (profissão). No âmbito da religião cristã, e das suas múltiplas igrejas, não será estranho diferenciar que certos trabalhos se empenham como uma vocação, uma profissão de fé, etc.
No presente texto destaca-se o tema do sustento para melhor analisa-lo. É uma estratégia que dizemos ser pedagógica, pois na vida real ele está ali junto e misturado com os dois outros, saúde e sabedoria.
A busca pelo sustento
A palavra sustento pode nos levar à ideia de sustentável. Termo muito usado em nossos dias para o setor empresarial. Todos falam que é preciso ser sustentável, ou seja, que o negócio não destrua o meio ambiente, que faça bem aos usuários dos produtos, etc. No âmbito da filosofia de vida a ideia passa por aí e vai um pouco além. A busca por sustento implica certos cuidados, tais como o respeito ao meio onde estamos, e que o sustento seja saudável para si e para os outros. Que seja sustentável na esfera do sentido do viver humano, pois uma vida sem sentido deseja não ser vida.
Uma definição mais ampla, sustento é tudo o que gera e mantém a vida. Assim, os conhecimentos técnicos (como cortar árvore), as técnicas (fazer uma casa), os instrumentos técnicos (o machado) são objetos de quem se ocupa do sustento. Mas não nos esqueçamos, faz parte dos conhecimentos sustentáveis o sentido da vida. Daí podermos notar que não é possível pensar a tríade separada. Uma dor de dentes ou qualquer outro problema de saúde inviabiliza os demais. Quando integramos em um só lugar os três temas, espera-se que a vida seja plena, sustentável. Ocupar-se demasiado apenas de uma esfera, pode gerar problemas no conjunto.
A família no sustento
A família é um tema corrente nos discursos políticos e religiosos. Um dos motivos é exatamente seu lugar estratégico em nossas vidas. Podemos debater modelos de família, mas todos iremos concordar com o seu papel em nossas vidas. Para além do agenciamento do tema feito pelas vertentes políticas de extrema-direita, a família no sentido alargada que ela pode tomar em nossos dias, é fundante para nós humanos.
A família pode ser a força ou a fraqueza em qualquer empreitada. Na dimensão do sustento não seria diferente. Sendo força ela pode contribuir de dois modos. Primeiro legando saberes que já estão em família. Em segundo lugar, ela pode propiciar um ambiente de acolhida e estabilidade afetiva. Os afetos em nossas vidas são a base do pensamento racional, se eles não estiverem bem arrumados, o saber na sua forma racional será seriamente comprometido. Se há um legado importante da família, muito mais importante do que bens materiais, esse é o histórico dos afetos positivo. Amoroso enquanto acolhedor da nova vida.
Se há uma estratégia importante em buscar o sustento ela começa por se deter um pouco em como são meus vínculos familiares. Esse exame, que conta com várias técnicas além da simples ideia de olhar ingenuamente para si e para o meio, deve ser constante e ao longo de toda a vida; consistindo não em algo que se “concerta” e parte para outra empreitada. Esse constante exame de si, é o meditar diário que devemos fazer, já como um saber sobre o sentido da vida. E o primeiro passo desta meditação é uma educação da percepção dos afetos em si, sendo o pensamento do luso-neerlandês Bento de Espinosa (1632 – 1677) algo fundamental para esta educação.
Será sempre um erro ignorar o papel da família e partir para a “prática”. Um método adequado para ensinar a buscar o sustento ou inserir-se na vida econômica precisa cuidar antes desta dimensão dos afetos e como ele encontrou lugar no convívio familiar.
A Igreja no sustento
No mundo dos negócios, das grandes corporações, creio que falar em religião não seja habitual. Contudo, os indivíduos são pessoas e portadoras de religiosidade. Dito de outro modo, todos temos um desejo maior do que as atividades cotidianas; um sentido sobre tudo que fazemos e somos (Ser). Buscamos um sentido além dos sentidos imediatos.
A religião, que se manifesta na forma de igrejas (eclesia = igreja = assembleia), tem muito mais ligação com o mundo do sustento do que se imagina. É clássica a obra de Max Weber sobre “O espírito protestante e o capitalismo”, como já referida acima. A experiência religiosa pode nos conduzir a se posicionar no mundo do sustento de modo adequado ou não. Por isso dominar os conhecimentos religiosos que lhe foram legados pela família, bem como fazer algumas perguntas ou procurar compreender como esta tradição relaciona-se com a esfera do trabalho ou economia em nossos dias não deve passar desapercebida. Esta aproximação deve ir além das tentativas de instrumentalizar o religioso em função do sucesso no consumo como sentido da vida.
O tema da religião é importante, como também é um assunto muito sensível. A primeira característica dele é se “localizar” na esfera afetiva da nossa vida. No geral nossa ligação com a religião é afetiva em primeiro momento. E por esta realidade, exige de nós uma pedagogia específica, um expediente “diplomático” entre a razão e as emoções. Porém, isto não nos impede de pensar o religioso, em especial por ocupar um lugar importante na organização ou não dos afetos que se mostram em nós.
Além dessa realidade que coloca a experiência religiosa no campo dos saberes afetivos, do gosto, da convicção de um lado, e a razão de outro lado, já na esfera do pensamento lógico, a religião nos lega orientações, compreensões, juízos, sobre o que é família, o que é bom, o que é mau, o que se deve ocupar na vida profissional. Pessoas que não devemos conviver, pessoas que devemos imitar, etc. Além de propor um sentido último do viver, que funciona como motivador da nossa vida entre o nascer e o morrer, para lembrar Hannah Arendt no livro A Vida do Espírito (2022)
De modo discreto e fora da visão consciente, a religião tem até mais força em nós do que a própria família. E não nos enganemos, basta ter nascido num país de cultura dominante “x” que seremos fortemente impactados por isso. Daí a ideia, passível de complexos debates, do Ocidente como sendo culturalmente cristão. Sem adentrarmos nos detalhes da violência com este traço cultural se impôs sobre outros, podemos dizer, em resumo, que as religiões cristãs tem estreita relação com a ideia de Estado Moderno. Utilizando uma metáfora dos programas de computadora, primeiro “instala” a religião para depois o Estado Moderno e a escola moderna.
É popular e a cada dia crescente o uso da ideia difusa, sobretudo na articulação da política e os “evangélicos” no Brasil de hoje, que os protestantes se derem muito bem com o capitalismo e que o catolicismo não. Pelo contrário, é até fonte de “atrasos” sociais. Ideia polêmica e generalista que apenas propaga um desejo ou uma ânsia social de querer se dar bem no mundo do sustento. Para explicar esta ideia, que existe como fenômeno no horizonte de sentidos de muitos, poderíamos ir para outro terreno, o do desejo e a tentativa de encontrar uma explicação para ele. O desejo de se dar bem nesta dinâmica social do sustento tenta encontrar uma explicação ou um caminho capaz de garantir este sucesso. O religioso aqui é um meio, um modelo para se chegar neste prazer.
Olhado de perto tais generalidade revelam contradições as mais variadas possíveis e não passam de “ideologias” (ideias falsas no sentido de Marx e não de Gramsci). Contudo, há sempre uma relação entre a vida econômica e a religião e os detalhes desse processo precisam ser analisados nas situações de cada comunidade. É preciso de um método cuidadoso e constante na observação dessa relação. Na tradição cristã temos vários métodos de “ler” as escrituras e Tradição. Sem nunca se esquecer que se tratam de realidades independentes, mas com fluxo constante de intercâmbios. Mercantilizar a fé será um erro raso; tornar o mercado um culto de fé uma redução fatal.
A escola na busca do sustento
A escola como conhecemos em nossos dias é um fenômeno recente. Antes dos efeitos sociais da Revolução Francesa (século XVIII), o conhecimento era passado no interior das famílias, nas ‘escolas’ religiosas ou associações de oficio, as guildas medievais. Claro que lá na Grécia Antiga (século V a.C) ou ao longo de todo Império Romano podemos verificar “escolas”. Contudo, aqueles modelos guardam diferenças com as nossas escolas atuais, sobretudo por serem elas restritas e as nossas essencialmente para o máximo de pessoas. Para além deste aspecto de distribuição social do conhecimento, pelo que torna possível uma nova forma de manter uma nação(narração) comum a todos os cidadãos, que são iguais perante a Lei que rege um Estado/País. Outra faceta da escola moderna é substituir a distribuição dos papéis sociais, que antes era por herança aristocrata. O que nos joga na complexa temática do mérito e como ela ainda é fonte de problemas sociais.
Apesar de recente, a escola é em nossos dias a base de quem está na direção de buscar o sustento. Ela é o lugar em que se pode trocar de maneira mais intensiva informações e formações variadas. Se na família a formação tem uma natureza estrutural da pessoa – pois estabelece como organizamos nossas emoções, na escola ela é mais técnica, direcionada para as atividades profissionais da vida. Os saberes da razão têm aí maior relevância, o que não implica que as demais dimensões do humano, seus afetos, sejam deixados de nado. O pensamento racional ganha muito com a organização escolar, mas historicamente se verifica que nela também se precisa cuidar dos afetos, a escola tem que ser amorosa. Ainda sobre a escola, ela precisa ser pública e financiada pelo Estado, sem cair nas ideias facistas de uma educação em casa, como projeto de segregação social, na qual certas frações da classe média ocidental por vezes acham que seria resolvidos os problemas sociais.
Uma escola eficiente é baseada na criação de um lugar amigável. No conforto da amizade conseguimos não só “gravar” melhor as coisas, mas nos sentimos mais disponíveis para testar novidades. A escola será marcante na medida em que for capaz de envolver os estudantes, familiares, professores e funcionários escolares nos seus processos de maneira afetiva. Os afetos, muito comuns na família e na igreja, também são necessários aqui, pois eles são as estruturas para as informações técnicas se assentarem. Saber algo de cor é o desejo de todo estudante; é confortável um saber o qual temos fácil acesso em nossa memória ou como buscar ele em algum lugar. Para que isso ocorra as emoções necessárias para se apropriar de uma novidade também devem ser promovidas na escola.
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P.s.: Este texto foi elaborado noutro contexto, do site amf3 e alguns debates em torno do pensamento de Agostinho da Silva enquanto uma filosofia de vida. Nesta versão fizemos ajustes diversos num exercício de reelaboração. No geral é um exercício exploratório acerca do que seria pensar o tema de uma Filosofia de Vida, enquanto prática filosófica contextualizada na tradição da Filosofia Ocidental.
*Doutorando em Ciências das Religiões – Faculdade Unida de Vitória
Bolsista FAPES