Christian Lopes
Entre o colapso herdado e os primeiros sinais de estabilização, um país vive o seu teste mais radical em décadas.
A Argentina vive um dos momentos mais marcantes da sua história recente. Após décadas de instabilidade económica, desvalorização crónica da moeda, endividamento sucessivo e perda de credibilidade institucional, a eleição de Javier Milei assinala um ponto de rutura no percurso político e económico do país. A sua ascensão meteórica à presidência, com um discurso anti-establishment e ultraliberal, transformou a frustração coletiva em plataforma de poder e colocou a nação sul-americana sob os olhos atentos do mundo.
1. Antes de Milei: o colapso prolongado
Durante anos, a Argentina foi gerida por um modelo que combinava intervenção estatal, subsídios amplos e expansão monetária desenfreada. O kirchnerismo e o governo de Alberto Fernández apostaram num Estado ativo, mas a incapacidade de controlar a inflação, a fuga de capitais e a deterioração do peso minaram qualquer estabilidade.
Em 2023, a inflação acumulava mais de 200% ao ano, a pobreza ultrapassava os 50% da população e as reservas internacionais estavam praticamente esgotadas. O peso argentino tinha perdido qualquer poder de referência no mercado internacional e a confiança da sociedade nas instituições políticas estava profundamente corroída.
2. A ascensão de Milei: rutura como bandeira
Foi neste cenário de colapso que Javier Milei, economista excêntrico, com discurso iconoclasta e um estilo político de confronto, captou a atenção dos eleitores. Com um discurso radical, rejeitou “a casta política”, prometeu “dinamitar o Banco Central” e apresentou-se como o único capaz de romper com um sistema que, segundo ele, escravizava a população através da inflação e do clientelismo estatal.
A sua vitória presidencial não foi apenas eleitoral, mas simbólica: um recado claro da sociedade ao sistema político tradicional, marcada pela frustração, descrença e vontade de mudança profunda.
3. As primeiras medidas: liberalismo de choque
Logo após a posse, Milei avançou com um conjunto de medidas que configuram uma verdadeira terapia de choque, centrada na redução drástica do papel do Estado:
- Redução de 18 para 9 ministérios, eliminando áreas como Trabalho e Cultura;
- Fim de subsídios a combustíveis, energia e transportes, gerando aumentos imediatos nas contas das famílias;
- Desvalorização do peso em mais de 50%, considerada necessária para corrigir distorções cambiais;
- Apresentação de um megadecreto com mais de 300 medidas para desregulamentar a economia, revogar leis laborais, facilitar privatizações e liberalizar preços.
As reações foram intensas: greves gerais, protestos em Buenos Aires, confrontos com governadores provinciais e questionamentos judiciais sobre a constitucionalidade dos decretos. Ainda assim, Milei manteve a linha de ação: “Não há dinheiro”, repete como justificação e como doutrina.
4. Os dias seguintes: choque, resultados e incertezas
Apesar da dureza das medidas, os primeiros efeitos macroeconómicos começaram a surgir:
- A inflação mensal, que ultrapassava os 25%, começou a desacelerar nos primeiros meses de 2024, com previsões abaixo dos 5% (inflação acumulada de 12 meses em 66,9%);
- O governo registou superávit primário, algo que não acontecia há anos;
- As reservas internacionais começaram a ser recompostas com medidas de austeridade e contenção fiscal;
- A taxa de pobreza, embora ainda elevada, deu sinais de recuo, passando de 57% para cerca de 38% segundo dados preliminares do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina (INDEC).
Por outro lado, o custo social foi elevado: recessão económica, queda do consumo, aumento do desemprego em determinados setores e maior vulnerabilidade de populações periféricas.
A Argentina atual é, pois, um país em transição delicada: entre a esperança de estabilização e o risco de colapso social. Milei propõe uma refundação radical, mas enfrenta resistência institucional e uma base social frágil, num ambiente ainda marcado pela polarização e pela instabilidade.
5. Conclusão: entre o laboratório económico e a encruzilhada democrática
O governo de Javier Milei representa, para muitos, um teste extremo de até onde um país pode ir na aplicação de políticas ultraliberais num contexto de colapso económico e institucional. A sua agenda rompe com décadas de tradição argentina marcada pelo intervencionismo estatal, pela cultura sindical e pelo protagonismo político do peronismo.
O futuro imediato do país dependerá de três fatores fundamentais:
- A capacidade de Milei de manter apoio popular diante do sofrimento social de curto prazo;
- A resiliência das instituições democráticas para garantir equilíbrio e fiscalização do poder;
- A articulação de alternativas políticas viáveis que evitem a regressão para modelos falidos.
A Argentina, hoje, caminha por um percurso estreito e exigente. As reformas em curso começaram a produzir efeitos visíveis, com queda da inflação, recomposição fiscal e sinalização positiva nos mercados, mas à custa de fortes impactos sociais.
Num cenário de colapso económico acumulado, qualquer esforço de correção implicaria, inevitavelmente, custos sociais relevantes. A questão, agora, está em saber se esses custos serão politicamente e socialmente suportáveis, e se o país conseguirá preservar a coesão institucional ao longo desse processo.
O mundo observa a experiência argentina com curiosidade, prudência e expectativa. Mais do que uma exceção sul-americana, a Argentina tornou-se um espelho da tensão entre urgência económica, legitimidade democrática e capacidade de reforma estrutural.”