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Acordo de Pesca Cabo Verde – UE: Parceria Justa ou Exploração?

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Heider Spencer

O acordo pesqueiro entre Cabo Verde e a União Europeia (UE) tem sido apresentado como um passo positivo para a cooperação internacional, garantindo acesso aos recursos pesqueiros para a frota europeia e, em troca, apoio financeiro e técnico para Cabo Verde. No entanto, uma análise detalhada revela um desbalanceamento gritante entre os benefícios que a UE obtém e as perdas que Cabo Verde sofre.

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Os benefícios para a União Europeia: Um Negócio Perfeito

A UE garantiu para si um negócio altamente lucrativo. O acordo concede a 56 embarcações europeias (de Espanha, França e Portugal) o direito de capturar 7.000 toneladas anuais de atum e espécies relacionadas nas águas cabo-verdianas. O custo deste privilégio? Apenas 780.000 euros por ano, o que equivale a: 350.000 euros pelo acesso aos recursos pesqueiros; 430.000 euros para apoiar políticas pesqueiras em Cabo Verde. Que se traduz em? Quem de direito que explique em que se traduz ” apoiar políticas pesqueiras em Cabo Verde”.

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Para contextualizar, o preço médio do atum no mercado europeu gira em torno de 3.500 euros por tonelada. Com 7.000 toneladas anuais, (muito mais seguramente, devido a nossa incapacidade para controlar a captura) a frota europeia poderá gerar cerca de 24,5 milhões de euros por ano, o que significa que, ao final do período do acordo (2024-2029), a UE poderá faturar cerca de 122,5 milhões de euros. Enquanto isso, Cabo Verde receberá, no total, míseros 3,9 milhões de euros. Se esta fosse uma negociação justa, os ganhos deveriam ser proporcionais ao valor real do recurso explorado, mas claramente não são.

As Perdas para Cabo Verde: Oportunidade Perdida

O que Cabo Verde está entregando não é apenas peixe, mas um recurso económico estratégico que poderia impulsionar o desenvolvimento nacional se fosse gerido internamente. O impacto negativo pode ser analisado em três níveis:

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  1. Perda de Lucros e Oportunidade de Desenvolvimento. Se Cabo Verde investisse na sua própria frota pesqueira e no processamento do pescado, poderia capturar esse valor de mercado diretamente. Se processasse 70% da produção capturada (4.900 toneladas por ano), poderia comercializar esse pescado por um preço ainda mais alto, algo entre 7.000 e 8.000 euros por tonelada, resultando em: Receita potencial anual de 34 a 39 milhões de euros. Receita total no período de 5 anos entre 170 e 195 milhões de euros. Ou seja, em vez de receber 780.000 euros anuais, Cabo Verde poderia estar faturando até 50 vezes mais se controlasse o setor pesqueiro de forma independente. O que este acordo faz é manter Cabo Verde na posição de fornecedor de matéria-prima barata para países desenvolvidos, enquanto a UE transforma esse recurso em um produto de alto valor agregado e lucra massivamente.
  2. Enfraquecimento da Indústria Pesqueira Nacional. Ao permitir que frotas estrangeiras explorem seus mares, Cabo Verde reduz a necessidade de investir em sua própria frota. Não desenvolve sua indústria de processamento e exportação. Mantém-se economicamente dependente da UE e de acordos similares. O argumento de que o acordo inclui investimentos em políticas pesqueiras locais não muda o fato de que o valor pago pela UE não é suficiente para transformar o setor pesqueiro nacional em algo competitivo e sustentável.
  3. Riscos Ambientais e Perda de Controle sobre os Recursos Marinhos – O acordo prevê supostamente uma pesca sustentável, mas, na prática, o que impede que a sobrepesca aconteça? A frota europeia, equipada com tecnologia avançada e capacidade para capturas em larga escala, pode: Exercer pressão sobre estoques pesqueiros locais, ameaçando a sustentabilidade a longo prazo; Diminuir a oferta de pescado para pescadores locais, afetando a segurança alimentar; Tornar Cabo Verde dependente da importação de produtos do mar que antes eram abundantes nas suas próprias águas. Além disso, com a UE controlando a maior parte da atividade pesqueira, Cabo Verde perde autonomia na gestão de seus próprios recursos naturais.

A Falsa Justificativa do Acordo: “Apoio ao Desenvolvimento”

A UE justifica este acordo com promessas de: – Investimento em políticas pesqueiras. – Controle e monitoramento da pesca ilegal. – Parcerias para a sustentabilidade ambiental. Mas a verdade é que estes elementos são usados como fachada para justificar um modelo de exploração económica disfarçado de cooperação. Se a UE quisesse realmente fortalecer Cabo Verde, promoveria investimentos que ajudassem o país a desenvolver sua própria frota e sua própria indústria pesqueira, em vez de apenas financiar migalhas em infraestrutura de monitoramento.

Conclusão: Quem Realmente Ganha com Este Acordo?

Este acordo gera benefícios desproporcionais. Para a União Europeia: Garante um acesso barato e seguro aos recursos pesqueiros de Cabo Verde; Protege os empregos e lucros da indústria pesqueira europeia. Mantém Cabo Verde dependente economicamente da UE.

Para Cabo Verde: Perda de milhões de euros anuais em receitas que poderiam ser geradas internamente; Impedimento do desenvolvimento da sua própria indústria pesqueira; Risco ambiental devido a pesca em larga escala por frotas estrangeiras.

A realidade é que este não é um acordo de cooperação. É um modelo colonial moderno, onde os recursos naturais de um país são explorados por potências estrangeiras a um preço simbólico. Se Cabo Verde quiser garantir um futuro sustentável e lucrativo para sua indústria pesqueira precisa urgentemente rever esses modelos de negociação e investir na sua própria frota e processamento de pescado. Caso contrário, continuará a ser um fornecedor barato de matéria-prima para os ricos, enquanto seu próprio povo fica sem acesso aos benefícios dessa riqueza natural.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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