Por: Cídio Lopes de Almeida*
“A verdade tem sido vítima em nossos dias não só pelas guerras, cenário em que Hannah Arendt viveu e pensou, mas pelo fluxo massivo e frenético de informações, em especial destinada a produzir desejos de compra nos espectadores. As falsas notícias, expressa no anglicismo fake-news, tem vitimado quase todo tipo de verdade, da política à geografia, a geopolítica e a biologia.”
A ideia do título esteve em mim associado ao pensamento de Hanna Arendt, no trabalho Verdade e Política (1967). Ainda que o tema não aprece com esta frase exata, bem como não pretendemos resenhar o tema segundo a autora, especialmente suas reflexões sobre a ideia de facto e como as ciências modernas produzem as suas verdades, ela me vem aqui no sentido de pensarmos a partir desta relação de poder e verdade em nossos dias. Outra fonte que podemos encontrar na frase, para ficar apenas no âmbito de uma certa fortuna académica literária, seriam as tragédias de Ésquilo, lá Grécia Antiga, onde também não encontramos o termo exato, mas uma reflexão que trata como problema a questão. Destacaria que em Os Persas ou Os setes contra Tebas encontramos este debate de modo indireto.
De certo a verdade não é dada facilmente e em face ou situada socialmente em regimes sócio-políticos totalitários (“Origens do Totalitarismo” (1951), que eram o horizonte reflexivo e de vida de Hannah Arendt, ela tende a ser prejudicada ou até mesmo privada dos meios necessários para ser construída. As meditações a seguir estão situadas no totalitarismo de nossos dias. O incessante apelo ao consumo figura como uma variação de totalitarismo. Expresso no exponencial fluxo informativo que nos interpela para todas as direções, resultando na impossibilidade das condições de meditação necessária para a manufatura da verdade, sobretudo na que incide na minha vida cotidiana de pessoa comum.
A verdade tem sido vítima em nossos dias não só pelas guerras, cenário em que Hannah Arendt viveu e pensou, mas pelo fluxo massivo e frenético de informações, em especial destinada a produzir desejos de compra nos espectadores. As falsas notícias, expressa no anglicismo fake-news, tem vitimado quase todo tipo de verdade, da política à geografia, a geopolítica e a biologia. E, na esfera do pensamento reflexivo, uma bricolagem caricata de pensamento tem ganhado até a alcunha de ideias filosóficas, no geral elaborada pelos tais “coaching”. O “disse-não-me-disse” tem posto por terra a própria expectativa humana sobre o tema da verdade. O horizonte da cultura de consumo massivo parece substituir este antigo modo humano de se estabelecer com o seu meio através do “é” (verdade) das coisas. É habitual em aulas de filosofia propormos justamente pensarmos a diferença entre o ser e o ter. Sendo os nossos dias um império do ter.
E nesta geleia geral, em que todas as antigas formas parecem que não mais existiram, o próprio tema da guerra e o que deste tema pode nos interessar ganham contornos caricatos. Apesar de se poder verificar vários conflitos considerados guerras em curso neste momento no globo terrestre, apenas duas tem pautado a vida dos jornais ou os grupos de mídias alternativos. De momento podemos notar o intenso fluxo sobre o conflito entre Ucrânia e a Federação Russa e na sequência Israel e os Palestinos da Faixa de Gaza. Sobre os demais, parecem não existirem.
Proliferam um variado circuito de intensas trocas informativas sobre os acontecimentos no front de batalha, ao menos dos dois acima citados. Os lugares destas discussões estão situados nos grupos em aplicativos de trocas de mensagem nos celulares (telemóveis) ou nos canais das plataformas de armazenamento de vídeos. Em pouco tempo notamos verdadeiros cultores do lado A, contra o lado B. De modo abrupto, nomes e cidades em língua russa ou ucraniana passam para o horizonte de pessoas que inicialmente parecem estarem bem distante destas realidades. Nomes árabes figuram noutras partes. E neste engajamento parecem que todos tem acesso à verdade dos conflitos ou que em questão de minutos uma verdade irá surgir no grupo do Telegram. Para alguns, os nomes deep web ou dark web até mesmo parece uma zona do além mundo, um correlato do Hades da mitologia Grega. Porém, o fato das demais guerras simplesmente não aparecerem nestes circuitos é um silêncio sintomático.
O que todos não estão interessados em ter contato é que a verdade destes temas parecem estar fora do alcance, e que a verdade é vitimada por esta excessiva profusão de “disse-não-me-disse”. O primeiro impedimento advém da própria ideia do que seja um fato. De modo mais simples, temos uma expectativa espontânea em que imaginamos haver um fato em algum lugar e apenas nos resta ter o relato dele. Quase nunca compreendemos que o ato de relatar o facto (fato = Pt/Br) pode ser o de construir o facto. O ato de contar é também o de inventar. Esta ideia parece ser absurda para esta lógica do fluxo obsessivo das redes sociais dos pequenos textos, os ditos micro-blogs. A pressa vitupera a verdade sem rodeios. A construção da verdade, que não é dada, implica um tempo mais alargado para ser construída, já que não existe de modo pronto. Somos nós humanos que produzimos o “é” das coisas. Ainda que na cultura ocidental tenhamos uma cultura que procura fazer coincidir nossa hipótese de é das coisas, com as coisas mesmas. Neste mundo apressado, somos obrigados a admitir verdades dadas, que na verdade foram construídas por outros segundo interesses outros e impostas a nós. Na pressa pegamos as verdades prontas, que foram produzidas segundo lógicas as quais desconhecemos e nem mesmo sabemos se tais verdades serão também as nossas verdades.
Esta ideia da verdade não como dada, mas construída, me faz lembrar o pensador Luiz Alfredo Garcia-Rosa, que no livro “Palavra e Verdade: na filosofia antiga e na psicanálise (1990)”, cria uma ótima imagem para o tema. Parafraseando, o autor diz que é comum achar que é só se deixar sentado debaixo de uma árvore frondosa e sua sombra agradável para que em dado momento, sem esforço algum, a verdade apareça. Ele contrapõe esta imagem, que para ele é mais de um certo senso-comum, com outra, mais dos filósofos e cientistas dos variados campos da pesquisa, que só haverá verdade se o pesquisador e a pesquisadora saltar no lombo da realidade e lutar bravamente para dai extrair a tão desejada verdade.
As duas imagens pedagógicas nos preparam para compreender que até certo ponto temos uma esperança de encontrar a verdade pronta. Em sentido popular não nos perguntamos quais são os instrumentos para se construir ou extrair verdades. Este desejo de verdade, presente em todos nós, tem sido ocupado pelo objeto do consumo. O consumo se apresenta como capaz de resolver esta demando intima da nossa subjetividade. Consumir é a verdade de uma cultura devotada ao consumo desesperado. Não que certos bens de consumo possam ser negligenciados, de modo algum, pois enquanto seres também biológicos, temos demandas nesta esfera. A observação e crítica é de uma cultura em que a vida do consumo ignora a ideia de utilidade ou função do produto consumido e ganha uma autonomia que negligencia até mesmo esta demanda inicial da nossa condição humana.
Para além do turbilhão da pressa, temos outro fator que nos impede de ter acesso ao material para construirmos nossas verdades. As atividades econômicas não tem em si o propósito de tornar público o que faz, muito menos as atividades militares. Na esfera do econômico e do militar-econômico, suas causas internas tendem a se manterem fechadas. O que demanda ainda mais tempo dos especialistas, em especial professores e jornalistas, em apurar informações para em seguida construírem alguma verdade sobre este ou aquele fato.
O cenário não é animador, mas o desejo de ter uma compreensão do real não se apaga em nós mesmo diante do desafio da multiplicidade do real. Este desejo(vontade) de saber pode ainda ser tomado como uma hipótese de explicação para a constante manifestação de buscas de respostas nas redes virtuais de comunicação. A percepção de que há lacunas faz com milhares proponha respostas sobre o que seja este “é” das coisas.
Nesta busca, parece ainda que que as “teorias das conspirações”, que são pseudoteorias, se mostram como solução. Podem serem vistas como exemplo do esforço humano em explicar o real. Por vezes partem de dados desconexos e dando saltos quase místicos estabelecem nexos entre os fragmentos da realidade que se mostram. Apesar de caricato, o fenômeno das teorias da conspiração – que não passa de um “disse-não-me-disse” disfarçado, não é algo simples e inofensivo. No contexto da pandemia de Convid-19 gerou implicações de impactos na vida de milhares de pessoas. Uma vaga enti-ciência e anti-vacina gerou pessoas expostas a risco de morte. A verdade também é negligenciada nesta tentativa, popular e insufladas pelas redes sociais, de preencher a falta de uma cultura de cultivo da verdade.
Para os nossos dias, a verdade tem sido vítima não só da guerra bélica. O excesso dos fluxos comunicativos, desse modo, tem vitimado a verdade, ainda que a internet como meio tem possibilidades fantásticas para construção da verdade. Como instrumento ela pode ser justamente o caminho oposto das fake-news. Enquanto professor e pesquisador das ideias filosóficas ou mesmo de temas do sentido da vida, expresso comumente nas Filosofia de Vida, a questão relevante não é propor uma verdade. Reclamar que não há mais as condições para uma verdade que outrora tinha lugar. A ideia é convidar a todos e todas a pensarem como tem construído ou disposto a sua rotina cotidiana em função da construção das verdades que mais lhe apetecem. Para além das verdades desta ou daquela disciplina científica, enquanto subjetividade e singularidade, qual é a sua verdade? O que toca a sua subjetividade? Em que você se dedica, de modo paciente e lento, na construção da sua verdade? E por esta subjetividade não se está a advogar algum tipo de egoísmo moderno. O verdadeiramente singular e situado é universal.
Encerro esta meditação compartilhada com uma ideia que inspirou muito ao filósofo Pierre Hadot: “a filosofia não é uma construção de sistema, mas a resolução, uma vez tomada, de olhar ingenuamente para si e ao redor de si” (2014, p.15).
*Doutorando em Ciências das Religiões
Faculdade Unida de Vitória – Bolsista FAPES