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A morte atende no Canal da Mancha ou algures – Sintoma localizado de uma catástrofe internacional planeada

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Por: Alcides Lopes, PhD

No dia 12 de março de 2021, o Department of Romance Studies da Universidade de Duke, nos EUA, realizou um evento com dois gigantes africanos pensadores da economia, política, filosofia, cultura, literatura, arte… Os ilustres: Felwine Sarr e Achille Mbembe. Ambos são considerados acadêmicos, pensadores extremamente importantes e com elevada influência sobre os mais variados temas que afligem as sociedades africanas contemporâneas.  

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O tema da aula magistral se intitula Cosmopolitique de l’hospitalité (Cosmopolítica da Hospitalidade).

Sarr, economista senegalês, também é Distinguished Professor de Romance Studies naquela universidade. Logo no início da aula começa explicando que uma das evoluções das políticas migratórias contemporâneas é o alcance do controle dos diversos fluxos que cruzam as fronteiras. Os migrantes que se deslocam para o hemisfério norte são interceptados nos países chamados de países de trânsito, cujos governos recebem ajuda financeira e suporte logístico para controlar e restringir determinados tipos de fluxo.

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Esta situação tem causado uma externalização dos aparelhos de controle dos fluxos migratórios e contribuído, em certa medida, com a fenomenalização da morte ao longo das fronteiras. Para o escritor, países como Marrocos, Ucrânia, Turquia, ou mesmo a Líbia, desempenham o papel de cães de guarda

Certamente, estes países terceiros não têm um bom histórico, ou mesmo, nenhuma preocupação com relação aos direitos dos migrantes. Frequentemente, recorrem a uma diversidade de métodos brutais para concretizar as tarefas, muitas vezes condenáveis, incumbidas a eles.

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Na ocasião, Felwine Sarr explicava que o deserto de Sahara foi transformado numa das regiões fatais que estão envolvidas nos fluxos migratórios provenientes da África subsariana. Referia-se portanto àquelas pessoas que tentavam alcançar as margens do mediterrâneo e a partir daí embarcar para a Europa. Entretanto, Sarr não deixa de destacar que, mesmo na Europa, certos países têm desempenhado o papel de países de trânsito. Alerta que as pessoas estão a morrer ao tentar atravessar a fronteira entre França e Inglaterra.

Portanto, podemos concluir que a fatalidade recente que vitimou pelo menos 27 pessoas, entre estas cinco mulheres e uma criança, no Canal da Mancha (quarta-feira 24 de novembro) não se trata de uma tragédia inevitável. Antes pelo contrário, a situação tem sido anunciada com frequência, contudo, em vez de focar nas possíveis causas do naufrágio, os franceses e os ingleses preferiram ‘trocar farpas’. Eu desconfio que tal performance seja uma tentativa de desviar as atenções dos verdadeiros problemas e das atribuições de responsabilidades sobre o sucedido.

Ora, nos tempos atuais, é inegável o facto de que vivemos num mundo cuja condição cosmopolita é cada vez mais incontornável. Somente em 2020, 270 milhões de migrantes internacionais transitaram sobre o globo, mesmo com a situação pandêmica de contenção de fluxos e mobilidades. Esta situação faz com que vivamos em mais de uma sociedade e cada vez mais seremos forçados a isso.

Esta é uma realidade que nos força a pensar diferentemente sobre as sociedades e culturas e o lugar de cada uma delas no mundo. O princípio ético que se encontra no fundamento da hospitalidade individual ou uma política de exílio nacional, não se prova mais suficiente para responder às crises que as nações Estado enfrentam com os diferentes tipos de mobilidades.

Não obstante, o fenômeno da crescente mortalidade nas fronteiras é um resultado da violência estrutural com relação aos migrantes. Podemos afirmar que trata-se de coleção multifacetada de violências perpetrada por atores de diferentes naturezas, mas que no centro da qual, as nações desempenham um papel determinante, semelhante à violência dos traficantes de seres humanos. Neste contexto, a violência protagonizada pelos países de trânsito ecoa aquela das políticas de migração nacionais. 

Considerando o escopo das mobilidades internacionais e a sua multicausalidade, a governança global dos migrantes emerge como aspecto necessário para combater a inadequação do fenômeno. Há necessidade de se reformular a configuração doméstica da hospitalidade numa dimensão pública. É imperativa, por várias razões, a fundamentação de uma política da hospitalidade transnacional.

A necessidade inadiável de construção de um mundo em comum, como também, o caráter inevitável da nossa condição cosmopolita, o fato irreversível das mobilidades globais alertam que precisamos antecipar as consequências da realidade do destino comum da humanidade demonstrando a eficácia das respostas sócio econômicas e políticas. 

Na ótica de Felwine Sarr, a concepção de uma noção de hospitalidade pública, mais do que uma questão moral, é uma questão prática de inteligência, a qual caracteriza a viabilidade do devir humano no mundo. Previne guerras, cria condições para o estabelecimento de trocas e vivências pacíficas, de compreensão mútua da humanidade e as consequências que podem resultar desta como uma exigência ética.

Devido ao escopo do fenômeno das migrações e da sua multicausalidade, emerge uma preocupação em torno da governança global dos migrantes. É importante e necessária. Os níveis através dos quais temos respondido a este fenômeno se provam constantemente inadequados. Mais do que um imperativo, é urgente a construção de políticas de hospitalidade por uma gama de razões, entre estas, a necessidade de construirmos um mundo em comum, como também, devido ao inevitável caráter da nossa condição cosmopolita. O facto irreversível das mobilidades transnacionais exige a antecipação das consequências da realidade que suporta o destino comum da humanidade. Cabe a todas e todos nós, intersubjetivamente, atentar para a eficácia da abordagem segundo a qual os benefícios econômicos e políticos devem contemplar todas as populações. É muito mais do que uma questão de moralidade, é mesmo de inteligência sociológica: a mútua compreensão da humanidade e as consequências que podem resultar como uma possibilidade ética. 

Estamos questionando, neste caso preciso, as disposições para as “fraternidades fechadas”. Estas são as questões colocadas. Existe um tipo de sororidade que abre e outro que fecha, na mesma medida em que conecta e une corpos. Além do mais, a fraternidade é assombrada pela possibilidade da violência e da aniquilação. 

Assim, enquanto meu coração sangra pelas três dezenas de migrantes cuja morte atravessou o caminho da sobrevivência no canal da Mancha, também relembra meia centena de mineiros mortos no incêndio na Rússia, as crianças e jovens negros atropelados mortalmente pela violência urbana protagonizada pelo estado, simplesmente porquê ousaram ser, a inefável onda crescente de feminicídios, entre outras coisas. Ainda sonho ser possível concebermos uma maneira de lidar com a alteridade para além das atmosferas de vigilância, controle e dominação. 

Mais fundamentalmente, alerta Sarr, precisamos adotar a perspectiva de constituição de um mundo em comum capaz de responder às questões e problemáticas do reconhecimento de quem é parte da comunidade, como ela é construída, quais imagens de pertencimento ela envolve e como é possível nos livrar dos atavismos que alimentam a propriedade dispensável e a produção da identidade pelo idêntico.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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