“A escolha unilateral do Santiaguense como variante oficial reproduz, de forma paradoxal, a lógica colonial que Cabo Verde tanto combateu. Ao eleger uma única forma linguística como ´legítima´, o Estado substitui o antigo colonizador português por uma nova centralidade, desta vez interna, que desconsidera a riqueza linguística e dialetal das outras ilhas.”
Nelson Faria
Sendo um defensor da cabo-verdianidade por inteiro, com todas as suas diferenças e Idiossincrasias, por isso, não me furto a opinar sobre um tema que tem levado a muito debate nas redes sociais, a questão da língua cabo-verdiana e a forma como tem sido “imposta”.
A perspectiva de oficialização do crioulo cabo-verdiano, com a imposição predominante de uma variante em praticamente toda a comunicação institucional do país e agora em mais uma tradução da Constituição da República, que reacende debates profundos sobre identidade, poder e representação. O processo, longe de ser um consenso nacional, reflete tensões históricas e geográficas que remetem a uma espécie de nova colonização interna, onde se percebe que há uma tentativa explícita de imposição de uma variante linguística como norma, marginalizando as expressões culturais e linguísticas das demais ilhas. O resultado é um divisionismo perigoso, que ameaça a coesão nacional em nome de uma falsa unidade.
A escolha unilateral do Santiaguense como variante oficial reproduz, de forma paradoxal, a lógica colonial que Cabo Verde tanto combateu. Ao eleger uma única forma linguística como “legítima”, o Estado substitui o antigo colonizador português por uma nova centralidade, desta vez interna, que desconsidera a riqueza linguística e dialetal das outras ilhas. Não se trata de negar a importância do Santiaguense, amplamente falado e influente, mas de questionar por que uma nação arquipelágica, cuja identidade se constrói na pluralidade, opta por apagar nuances regionais em prol de um monólito cultural.
Esse gesto reforça a perceção de que uma ilha detêm não apenas o poder político, mas também o simbólico, relegando as demais à condição de coadjuvantes. A imposição de uma variante única em documentos oficiais, campanhas públicas e educação formal cria uma hierarquia linguística que ecoa a velha dinâmica de centro e periferia, agora vestida de nacionalismo.
Os críticos dessa uniformização são frequentemente taxados de “bairristas” ou resistentes ao progresso, como se a defesa das particularidades locais fosse um atraso. Esse discurso, porém, ignora que a identidade cabo-verdiana é intrinsecamente plural. A diversidade linguística entre ilhas, como o Crioulo do Fogo, de Santo Antão, São Nicolau ou da Brava, não é mero detalhe, é a manifestação de histórias, migrações e adaptações únicas. Desprezá-las em nome de uma suposta eficiência comunicativa ou unidade nacional é promover uma homogeneização forçada, que exclui cidadãos nacionais de se reconhecerem na língua oficial.
Além disso, o rótulo de “bairrismo” serve para silenciar vozes dissidentes, transformando um debate legítimo sobre representação em uma questão de deslealdade. Essa estratégia, comum em contextos de dominação cultural, inviabiliza o diálogo e aprofunda fraturas entre ilhas, alimentando ressentimentos que podem se traduzir em divisões políticas e sociais duradouras.
O cerne do problema, na minha perspetiva, reside na forma como a oficialização tem sido conduzida. Em vez de se procurar um consenso amplo, através de fóruns populares, consultas às comunidades e estudos linguísticos inclusivos, os promotores da medida optaram por uma via autoritária, impondo seus próprios critérios como se fossem os únicos válidos. Essa abordagem vertical ignora que a língua seja um organismo vivo, moldado pelo uso e pela afetividade das pessoas.
Um processo democrático exigiria, por exemplo, a criação de uma norma crioula unificada que incorporasse elementos das diversas variantes, garantindo que nenhuma ilha se sentisse excluída. Países como a Suíça ou a África do Sul oferecem exemplos de como equilibrar a diversidade linguística com a necessidade de padrões oficiais, sem hegemonizar um grupo sobre os outros. Em Cabo Verde, porém, a ausência desse diálogo prévio transformou a língua, que deveria ser um símbolo de união, em um novo campo de batalha.
A oficialização do crioulo é, em tese, um avanço histórico, um resgate de uma língua marginalizada por séculos. No entanto, a forma como está sendo implementada corre o risco de repetir os erros do passado, substituindo uma dominação por outra. Se o objetivo é fortalecer a identidade nacional, é essencial que o Estado reconheça que a “cabo-verdianidade” não cabe em uma única variante linguística.
A verdadeira oficialização só ocorrerá quando todos os cabo-verdianos, de todas as ilhas, puderem se ver refletidos na língua que os representa. Isso exige humildade para ouvir, coragem para incluir e sabedoria para entender que a unidade não se constrói apagando diferenças, mas celebrando-as dentro de um projeto comum. Caso contrário, o que se oficializa não é a língua do povo, mas a vontade de alguns.