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A Filosofia dos cães vadios

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Por: Cídio Lopes de Almeida 

Esta resenha não visa encontrar culpados, mas elaborar algumas reflexões sobre certos problemas e impasses do viver, que, afinal, são universais. A questão sobre a qual nos interrogamos é: qual lição os cínicos, enquanto escola de filosofia de vida, teriam a nos dizer, não só no caso dos “cães vadios”, objeto de algumas crónicas publicadas no Mindel Insite, mas também sobre nossas relações com o meio em que vivemos? 

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A Escola de Filosofia Cínica, fundada por Diógenes de Sinope (~412 – 323 a.C.), recebeu este nome por uma peculiar proximidade entre o fundador e seus seguidores com os cães. A palavra para “cão” naquela variação antiga da língua grega era “κύων” (kúōn). Ademais, o termo para designar “como um cão”, ou “viver como um canino”, advém de “κυνικός” (kynikós), daí nosso “Cínico”. 

Essa aproximação com a figura do “melhor amigo do homem” não ocorreu por acaso ou pura coincidência. O pensamento de Diógenes pode ser traçado por um desapego aos valores sociais de seu tempo, uma vez que, para ele, a felicidade era o centro da vida. Ser feliz passava, necessariamente, por não se importar com a opinião alheia e, sobretudo, por não se apegar a falsos desejos. A partir desse ponto, construía-se propriamente o que era importante para o viver. 

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O pensamento da Escola Cínica de Filosofia não é tão simples, e a abdicação de Diógenes de certos confortos de seu tempo, vivendo como mendigo pelas ruas de Atenas, não pode ser tomada como uma proposta de filosofia de vida para os nossos dias de um modo direto. A figura do célebre filósofo, que dispensou até os favores de Alexandre, o Grande, é oportuna nesta resenha para pensar duas questões de nossos dias: as relações afetivas entre nós, humanos, e não só com os cães, mas com as demais formas de vida. 

Penso mais em desafios, aos quais todos nós podemos nos perguntar como podemos colaborar para superar os problemas da nossa vida social. Esta resenha não visa encontrar culpados, mas elaborar algumas reflexões sobre certos problemas e impasses do viver, que, afinal, são universais. A questão sobre a qual nos interrogamos é: qual lição os cínicos, enquanto escola de filosofia de vida, teriam a nos dizer, não só no caso dos “cães vadios”, objeto de algumas crónicas publicadas no Mindel Insite, mas também sobre nossas relações com o meio em que vivemos? 

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Para aquela escola, a autossuficiência (autarkeia) e a independência material e social eram passos importantes. E, por consequência, evitava-se situações ou opções sociais que nos levassem a uma condição de dependência. Não ceder à sanha do consumo moderno, que infla o desejo a estágios nunca realizáveis, pode ser uma ideia derivada para nossos dias. Algo que não é fácil, e mesmo o filósofo profissional não está a salvo disso. Pelo que nos resta apenas o sincero compromisso de debater o tema, na esperança de que, em coletivo, possamos juntos superar essa submissão desesperada a certos tipos de consumo.  Ou a construção de certas atitudes preventiva, para que num futuro tenhamos animais domésticos os quais não conseguimos proporcionar uma vida saudável a eles.

Outro ponto de crítica dos cínicos era para com as convenções sociais. Consideravam que havia na sociedade muitos falsos objetivos, que distorciam a vida, tornando-a hipócrita. Portanto, o que estava em questão era o desejo de retomar um contato autêntico com o viver propriamente dito. Nesse sentido, chamo pessoalmente a atenção para uma sociedade dos nossos dias que negligencia os afetos. Aliás, temos sempre que explicar do que estamos falando quando mencionamos afetos. É preciso lembrar que não somos só razão; somos também afetos. E, nesse aspecto, os cães são afetivos; suas relações são 100% afetivas, sem distorções. Para variadas escolas de filosofia o pensamento autêntico é o que considera os afetos em si. A razão no fundo sempre está a dar vazão para estes afetos, que mesmo desconhecidos da consciência do indivíduo, estaria arquitetando nos bastidores o que a razão mostra com roupagem de pensamento racional e lógico.

Por último, os cínicos procuravam uma vida em harmonia com a Natureza. Aqui, natureza significa viver segundo os fins das coisas, e não propriamente viver em meio a uma vida campestre. Muito além dessa ideia moderna de lugares paradisíacos, tão divulgada pelos meios de comunicação do turismo global, que retratam Fontainhas como a melhor vista do mundo (National Geographic-ES). Sem dúvidas a beleza que mais nos interessa é a que se expressa na ideia de morabeza, pois uma vista meramente topográfica pode não ter sentido algum, sem o sentido humano presente nas pessoas do lugar.

Dos três pontos enumerados da Escola Cínica, podemos encaminhar para uma ideia que nos aproxima do tema do cuidado com o viver. Não é possível negligenciar a vida de outros animais sem que esse desprezo afete nossa relação com outros humanos, que também são animais. Desprezar e não agir de modo cidadão em relação aos animais em geral vai além dos cães. A indiferença humana pela miséria de outros humana se mostra de modo colateral no caso dos cães.

Antes das letras, minha vida pessoal foi no meio rural de Minas Gerais, Brasil. Cresci na “roça” (espaço da vida campestre), e, de fato, não havia o conceito de “animal de estimação”, expresso hoje pelo anglicismo “pet”. Alguns dizem que a vida naqueles tempos era bruta, sem afetos de cuidado e carinho para com os animais domésticos e, por vezes, até mesmo entre nós, humanos. Não havia no Brasil uma indústria dedicada ao mais variado fabrico destinado aos animais de estimação, realidade que se consolidou no final dos anos 90. Hoje, temos até planos de saúde para cães e gatos, ou seja, um sistema de seguridade de saúde semelhante ao dos humanos. 

Entretanto, aqui também enfrentamos as mesmas contradições verificadas alhures. Temos pessoas que não têm acesso a necessidades básicas, como alimentação e saúde. São Paulo (SP) tem uma população em situação de rua que nos corta a alma. Temos até políticos, para exemplificar a miséria espírito de certos humanos, que procuram criar atos legais para coibir a presença dessas pessoas nas ruas. Outros militantes políticos que atacam de todos os modos a figura do líder religioso, (Padre) Júlio Lancelotti, que devotou sua vida religiosa ao cuidado dos desamparados da região central da Capital Paulista. Aqui a miséria humana se mostra de múltiplas formas.

Pensar como cuidamos de humanos e cães é um tema global e é um exemplo das contradições sociais que nos desafiam. Fazer memória da Escola Filosófica dos Cínicos para pensar uma questão situada nos lembra que certas contradições presentes nas interações sociais já foram tematizadas pelo pensamento humano há mais de 2 mil anos.

Ser indiferente com a vida humana é uma disposição na alma que não fica muito distante da indiferença para com os cães. A indiferença, como um traço superinflacionado do nosso viver em sociedade capitalista de consumo exagerado, atravessa a todos nós. O esforço para solucionar esse problema é de todos nós. É a mesma indiferença que certas frações da sociedade dos países do “norte global” dispensam para conosco, do “sul global”. Incluir as demais vidas no horizonte de entidades que respeitamos é civilizacional. Predar, extrair, pilhar, coisificar é a barbárie. Os Cínicos com sua busca pela vida autêntica, com a crítica a certos valores sociais, nos fornecem um horizonte de sentido para pensar que uma vida feliz, que é a vida que todos nós procuramos, passa por uma relação afetiva com os humanos e com o meio que vivemos.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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