Américo Medina*
Voltou à agenda mediática a promessa do Governo de construir um aeroporto em Santo Antão, com o anúncio de que “todas as condições logísticas e financeiras estão a ser criadas”. No entanto, do ponto de vista da indústria aeronáutica, esse projeto continua a ser um exercício de voluntarismo político sem fundamento técnico, jurídico ou financeiro. Pior: continua a ser promovido à revelia dos princípios consagrados pela ICAO (Organização da Aviação Civil Internacional) e pela ACI (Airports Council International) sobre a planificação e desenvolvimento de infraestruturas aeroportuárias.
Na indústria, a construção de um aeroporto é precedida por um conjunto rigoroso de etapas e pressupostos, bem definidos nos documentos normativos internacionais. A ICAO estabelece que qualquer novo aeródromo deve resultar de um processo transparente, que inclua:
1. Estudo de procura (demand forecast);
2. Análise de alternativas de transporte e localização (site selection);
3. Estudos ambientais (EIA – Environmental Impact Assessment);
4. Análise custo-benefício (CBA – Cost Benefit Analysis);
5. Plano diretor aeroportuário (Airport Master Plan);
6. Modelo de financiamento claro e sustentável.
Ora, até à presente data, não foi tornado público nenhum estudo técnico que sustente o projeto do aeroporto de Santo Antão. Nenhuma entidade independente validou a viabilidade da infraestrutura. Não se conhece estudo de tráfego aéreo que justifique a sua construção. Não há dados atualizados sobre o custo estimado da obra, nem se conhece o modelo de financiamento. Tudo o que existe são promessas políticas vagas, repetidas de forma cíclica.
Adicionalmente, a ilha de Santo Antão apresenta desafios orográficos sérios, com terrenos montanhosos, ventos fortes e limitações de espaço para uma pista com especificações mínimas de segurança e operação. A ICAO, nas suas normas (Anexo 14) define requisitos estritos para a escolha de locais de implantação, incluindo segurança operacional, acessibilidade, condições meteorológicas e impacto ambiental. Aparentemente, nenhuma destas variáveis tem sido discutida com a profundidade e o rigor exigidos.
A falta de um plano diretor, associado à inexistência de estudos de procura realista — considerando a atual conectividade via ferry com São Vicente — levanta sérias dúvidas sobre o retorno económico do investimento. Um aeroporto não é uma obra de prestígio, nem um símbolo de “desenvolvimento” per se: é uma infraestrutura cara, tecnicamente exigente, e que só se justifica quando responde a necessidades concretas de mobilidade, com custos e riscos devidamente controlados.
A ACI alerta sistematicamente para os perigos do chamado “overbuilding” — construção de aeroportos não sustentáveis — que tem levado ao encerramento de infraestruturas pouco utilizadas e à criação de “elefantes brancos” por todo o mundo, especialmente em contextos onde decisões técnicas são subordinadas a agendas políticas.
O que se passa com o suposto aeroporto de Santo Antão é, infelizmente, um exemplo clássico de manipulação da iliteracia aeronáutica da população. Em vez de informar com rigor e responsabilidade, cria-se a ilusão de que basta “vontade política” para erguer um aeroporto. Ignora-se que a aviação é uma das indústrias mais reguladas e exigentes do mundo — e que, por isso mesmo, não pode ser tratada com leviandade.
Santo Antão precisa, sim, de soluções para reforçar a sua conectividade e promover o seu desenvolvimento. Mas essas soluções devem ser pensadas com seriedade, baseadas em dados, e integradas numa política nacional de transportes intermodais. Continuar a alimentar promessas infundadas só serve para adiar decisões eficazes e degradar a relação entre a política e a verdade.
Chegou o momento de exigir responsabilidade técnica, transparência e respeito pelos padrões da indústria. O povo de Santo Antão — e o país — merecem isso.
*Aerospace MBA, IAP-AMPAP, Consultor e Analista do Aerospa-ce, com foco em políticas públicas e modelos empresariais