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A escala dos views como estágio de precarização máxima do trabalho

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Por: Cídio Lopes de Almeida*

Esta resenha ensaística é feita nos limites de um humano [sem I.A.]. Os debates sobre tecnologia em nossos dias apresentam uma série de marcas não ditas e outras ditas, mas que, no conjunto e nas trocas comunicativas das pessoas em geral, formam uma ideia sem reflexões básicas sobre o que ela é. Por esse traço impensado, ela figura como uma narrativa mítica.

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A primeira pergunta problema é sobre a percepção do que é tecnologia, para a qual a resposta geral tende a ser um tipo de aparato técnico como a totalidade da coisa propriamente dita. Quando achamos que apenas o nosso computador é capaz de processar dados [ábacos são processadores de dados] ou que “virtual” é exclusivo da nossa “internet” [a linguagem humana é virtual desde a sua origem], estamos tomando uma visão restrita.

Deste contexto, o objetivo desta resenha é organizar, em forma de uma narrativa textual argumentativa, algumas perguntas sobre certas ideias populares acerca do que é a tecnologia na vida cotidiana. Minha hipótese-problema é que há uma apreciação excessivamente positiva da tecnologia, percebida de forma mítica, e isso funciona como um disfarce do seu substrato real, perverso, que precariza, como nunca antes na história humana, as relações de trabalho e, consequentemente, a vida dos trabalhadores e trabalhadoras. O percurso, o método, consiste na construção de argumentos capazes de demonstrar, por si mesmos, o sentido do que se pretende refletir.

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O desafio de pensar o momento presente, sobretudo no contexto de como usamos e vemos o tema da tecnologia, nos leva a utilizar a comparação com outras épocas. Parece-nos, ainda que problemático, um recurso capaz de gerar contrastes e, assim, iniciar uma meditação mais abstrata sobre o tema da tecnologia em nossos dias. Se o contraste é utilizado para auferir resultados em áreas como os exames laboratoriais, nas ciências sociais e humanas ele tem mais limites, embora pedagogicamente ajude a começar a conversa.

Neste quadro, pensar o hoje será comparado com o século XIX. A escolha deste recorte do passado se dá pelo fato de que houve, nesta época, a Revolução Industrial. Foi um momento em que uma ideia e um uso de novas técnicas e instrumentos técnicos geraram realidades sociais singulares, nem sempre boas para todos.

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O ponto semelhante entre a Revolução Industrial no século XIX e o tema da tecnologia de hoje começa pelo fato de haver, de um lado, belos discursos liberais, preconizados no âmbito de um jus-iluminismo, que defendiam a livre iniciativa dos indivíduos. Porém, por outro lado, havia condições miseráveis para os trabalhadores, em que crianças de 6 anos de idade trabalhavam 12 horas nas máquinas de tecelagem nas regiões industrializadas da Inglaterra. Nesse contexto, em outros locais da Europa, não podemos esquecer que surgiram grupos católicos [congregações] dedicados a cuidar dos variados estágios de precarização da vida humana. Em Turim, a título de exemplo, surgem os hoje famosos Padres Salesianos, a partir do trabalho de seu fundador “Dom” Bosco [Giovanni Melchior Bosco, 1815–1888], que acolhia crianças que vagavam pelas ruas de Turim [Societas Sancti Francisci Salesi, 1859].

O impacto da Revolução Industrial na vida das pessoas não pode ser visto apenas de um modo simplista e otimista. Sem deixar de refletir sobre o papel dessa revolução nas duas Guerras Mundiais do século XX, muitos analistas argumentam que o processo de aceleração promovido pela produção em série, próprio da chamada Revolução Industrial, priorizou um tipo de saber: aquele capaz de ser útil na confecção de instrumentos industriais [saber técnico-instrumental, técnico-científico]. O cultivo de outros saberes foi posto em segundo plano, e essa demanda utilitária resultou na busca e disputa por recursos. A aceleração do consumo de matéria-prima para a indústria, que impulsionou a produção de valor monetário, fez com que os interesses, não só de empresários individuais, se chocassem, mas também, em algum momento, os Estados se vissem impelidos a disputar territórios por recursos. Além disso, houve a “divisão” dos continentes para que seus recursos fossem explorados por esses Estados industrializados.

A famigerada e tão bem propalada industrialização, que trouxe aos humanos os mais variados instrumentos técnicos, sobretudo nas ciências farmacológicas e médicas, parece carregar essa contradição. Apesar de a penicilina ter sido descoberta em 1928 por Alexander Fleming [1881–1955], não podemos desconsiderar que o contexto favorável a tal feito, de relevância para o bem comum, foi beneficiado pelo espírito da época da industrialização.

São contradições que não nos levam a conclusões apressadas. A ideia de bem-estar social ou de “Estado de Bem-Estar Social” foi primeiro pensada e posta em prática já nos anos finais do século XIX [Otto von Bismarck, 1815–1898], porém se tornaria mais evidente após a Segunda Guerra Mundial. Essa ideia tornou-se realidade no “primeiro mundo” [os países desenvolvidos, nos termos de hoje] nos anos 50. Entre as ideias de Bismarck e as duas Guerras Mundiais, verificou-se a urgência de algum tipo de cuidado por parte do Estado com aspectos do bem comum. A livre iniciativa, idealizada nos textos dos partidários do liberalismo, não era capaz de pensar e resolver tais dilemas.

O bem comum deveria ser cuidado por alguém, e, pela natureza do Estado como poder constituído, foi-lhe atribuída essa função. Sem desconsiderar o contexto dessa ideia, havia, no horizonte dos Estados da Europa, outra revolução. Em 1917, ocorreu a Revolução Socialista na Rússia, e, desde então, esse modelo social assombrou as míticas liberais da livre iniciativa, ao custo da alienação da vida dos trabalhadores e trabalhadoras.

Desse quadro generalíssimo da Revolução Industrial, saltamos para a chamada Revolução Tecnológica de nossos dias. Não vou adentrar aqui no sofisticado debate do conceito de revolução, especialmente sobre o que foi, de fato, a Revolução Industrial em seus aspectos de uso de energia e modos de manufatura. Considero, como diferencial de nossa mais recente revolução, que os computadores de nossos dias, além de utilizarem energia elétrica, operam exponencialmente com informações. Informações que, por vezes, são traduzidas por aparatos tecnológicos na manufatura de produtos, de forma similar à revolução anterior.

Uma das novidades da era da informação, como alguns procuram caracterizar o mais singular do momento presente, é que, em grande medida, os fluxos de mercadorias estão subordinados à sua dinâmica comunicativa. A manufatura de um produto está condicionada à demanda, e quem domina os fluxos informacionais tem a capacidade de gerar essa demanda. Não basta saber manufaturar um produto; sua razão de existir e fonte de financiamento está em ser comprado por alguém. Inverte-se o aparente fluxo das coisas, pois não é a coisa propriamente dita que gera o desejo por ela. É uma capacidade narrativa que simula a coisa primeiro, recolhe fundos e, assim, financia a sua confecção.

O desejo de consumo parece ser o plano primordial de nossa dinâmica atual. E, para esta esfera linguística, pois desejos são antes elaborados na subjetividade como sentidos exprimíveis em linguagem, os meios comunicativos propiciados pelos computadores têm se mostrado com capacidades difíceis de terem sido já implementadas na nossa história humana. As interações de sentido, intercambiadas pelos meios virtuais, computadores e celulares [telemóveis], impõem a dinâmica do viver humano em variadas latitudes. A capacidade de vender, de gerar nos indivíduos o desejo por algo que não se tem, é o que determina a produção. E, junto a isso, determina a própria condição humana de nossos dias.

Como centro capaz de dinamizar o viver, o virtual mostra-se capaz de escalas antes impensadas. E, na sofisticação por gerar demandas, o capitalismo, como dinâmica e modalidade de trocas, também se sofisticou em auferir valor em proporções impensadas. Centavos importam nesta caça ao dinheiro dos outros. Duas realidades então se impõem: o aumento da escala de faturamento, que vai buscar 1 centavo da moeda local, valor financeiro facilmente recolhido em vastas porções territoriais. Algo impensado no passado, pois recolher uma moeda de 1 centavo em larga escala geraria um custo operacional no qual sempre se gastaria mais dinheiro do que se poderia recolher.

O virtual permitiu fazer avançar sobre os centavos de todos. E o capitalismo sempre deseja mais. Este movimento operou a desvalorização do trabalho do trabalhador, que, no geral, se vê obrigado a sempre estar ligado à esfera da produção do desejo, esse produto abstrato, mas fundamental para outros produtos. Se a busca é pelos centavos, a pulverização no meio virtual exige muito mais ação do trabalhador para auferir alguns centavos.

Quando o capitalismo se modula para buscar os centavos, ele só ganha na totalidade dos centavos, ou ao acumular, em larga escala, os centavos. Para o trabalhador, a dinâmica é outra: será necessário muito mais trabalho para ele conseguir algum valor relevante. O jogo de trabalho está configurado para prospectar centavos, e aos trabalhadores e trabalhadoras será este o horizonte impositivo no qual terão acesso.

Assim, para obter um centavo, não se remunera além do pensamento de centavos. E, como estamos na esfera do desejo como ponto inicial de todo o consumo, o trabalhador terá que vender desejos ao valor de centavos. Contudo, para a sua manutenção, ele terá que percorrer não só o desejo inicial, mas também chegar no arroz com feijão, que terá um valor acima dos centavos. O paradoxo será esse: a hora trabalhada será desvalorizada para atender à nova dinâmica de distribuição. Nesta escola global, o trabalhador será obrigado a trabalhar pelos centavos por muito mais tempo.

A dinâmica dos “views” como venda de desejos por centavos impõe uma luta absurda pelas migalhas. Esta é a realidade dos influencers e de qualquer um que “deseja” vender pela internet. Terá que ter mil views para conseguir algumas moedas.

Falamos acima de desejo como ponto inicial para a venda de algo. O que mais gera desejo nas redes sociais tem sido aspectos da condição inata das pessoas. Há uma obsessão por despertar a falta [desejo é falta], e ela é tão insana que já não se atém a despertar o desejo por algo preciso, mas o que importa é um desejo insano. Pois, na economia da internet, estamos na época da atenção, do click.

O medo e o erótico têm sido os dois expedientes mais utilizados para insuflar essa dinâmica econômica. Se preciso desesperadamente promover o desejo como meio de auferir meus centavos, não há espaço para pensamento crítico reflexivo. O que há é a redução impulsiva das pessoas, e, para obter a atenção delas, faço de tudo neste mesmo tema. Só assim compreendemos o apelo erótico e pornográfico pela atenção nas chamadas “redes sociais” [TikTok, YouTube, Facebook, Instagram, etc.]. O medo é também explorado, pois, como afeto inerente à condição humana, ele sempre se destaca. Assim, os títulos e imagens que possam evocar pânico são eficientes, ao lado do erótico, para receber a atenção das pessoas.

Os efeitos dessa realidade são um capítulo à parte da meditação. Se, na Revolução Industrial, registramos que crianças de 6 anos eram exploradas até a morte nas tecelagens nos arredores de Londres, as condições e os efeitos negativos podem também ser percebidos nesta nova forma de organização social do trabalho de nossos dias. O virtual gera impactos diversos na subjetividade das pessoas, além de precarizar seus ganhos monetários, o que as obrigará a uma vida sem bens necessários para um viver adequado. Como estamos na esfera da linguagem e do desejo, o impacto poderá ser investigado nessa esfera.

Entre várias possibilidades, há uma geração de pessoas buscando ser vistas em uma busca desesperadora. A busca por ser visto gera uma nova subjetividade, muito frágil. Os que são vistos, os poucos, são impactados por essa devassa de si. Os que não são, mas se expõem em busca de um lugar, enfrentam a angústia e a frustração como seu horizonte. Na fala da Professora Dra. Marilena Chauí: “Está surgindo uma nova subjetividade produzida por esse mundo digital. Primeiro, é uma subjetividade narcisista. Ou seja, existir é ser visto. Se você não é visto, você não existe. Então, ser visto é a primeira marca do narcisismo. Só que, como você depende para ser visto do olhar do outro e não tem controle sobre o olhar do outro, você está ininterruptamente… e, como Freud dizia, o narcisismo é inseparável da depressão” [Chauí, TV Brasil, 2024].

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A comparação entre as épocas nos permite perceber que o impacto das tecnologias de hoje parece se distinguir pela degradação da subjetividade. Ao estar centrada na esfera da linguagem e do desejo, os impactos da atividade econômica mediada pelos computadores e pelas redes sociais geram um tipo de incidência subjetiva e de saúde psíquica das pessoas que não haveria naquela época.

Somos levados a pensar se a produção industrial teve o mesmo poder de tornar as pessoas em nada à medida que ela tornou tudo produto. Este assunto é tratado sob a ideia de indústria cultural e da cultura para as massas. A massificação das pessoas é uma forma de não as considerar como pessoas. A sutileza para nossos dias é que esse processo se tornou mais rápido e ainda mais refinado. A atual dinâmica econômica majoritária não ocorre apenas na fábrica tradicional, mas nas dinâmicas do virtual. E, nesse cenário, ainda que em aparente contradição, os fluxos de produção econômica conseguem submeter 90% da população de um país a condições de empregos precários e/ou virtuais/precarizados. Parece que, desse modo, a diferença é apenas na escala exponencial da exploração. A esta ideia pode-se chamar de exagero, pois as condições das crianças na fábrica nos arredores de Londres seriam efetivamente precárias, e a dos milhares de jovens dos grandes centros seria algo muito melhor. O argumento que apresento para contrapor é que a vida precária de hoje tem mais semelhança do que diferença. Se olharmos os índices de violência policial nas periferias de São Paulo contra os jovens, além de um olhar refinado para os meios onde as subjetividades dessa juventude se exprimem, não veremos grandes diferenças.

Podemos encaminhar para uma consideração provisória sobre a comparação que arrolamos acima. As tecnologias de nossos dias refinaram um processo de precarização dos trabalhadores e trabalhadoras muito mais ao nível das subjetividades. A condição precária do trabalhador(a) em nossos dias encontra-se na sua subjetividade. Como é uma esfera que se furta justamente ao objetivo, por vezes fica-se na aparência, numa aparência forjada pela sedução capitalista, sobre como seria tal subjetividade. Confunde-se a propaganda da sedução, que vende a alegria como sedução, como se esta fosse a subjetividade das pessoas em nossos dias. A escala exponencial à qual o capitalismo busca recolher os centavos, como última fronteira de prospecção de valor monetário, leva-nos todos, trabalhadores(as), a disputar tais centavos, pois é o que está posto. Porém, nesta busca, o esforço do trabalho empenhado é brutalmente desvalorizado, para se ter ao final alguns centavos. E, como pessoa individual, estará sempre em desvantagem nessa nova dinâmica econômica. Os efeitos dessa destruição do valor do trabalho poderão ser verificados de forma objetiva no registro visível do adoecimento psíquico massivo das pessoas de nosso tempo.

* Doutorando em Ciências das Religiões, Faculdade Unida de Vitória, bolsista FAPES.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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