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Opinião
Tendência

A democracia … dos caciques”

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Nelson Faria

A democracia representativa, tal como a concebemos, assenta num princípio fundamental: a vontade da maioria, temperada pelo respeito pelos direitos das minorias e pela integridade das instituições. No entanto, um cancro tem corroído este ideal em várias democracias, inclusive na nossa, a dominação por parte de caciques que, apoiados por maiorias relativas, e por vezes até minoritárias, sequestram o poder, transformando-o num instrumento de interesse próprio, perpetuando um ciclo de estagnação e declínio. A democracia que desejamos, representativa, responsável e capaz de entregar resultados esperados, está em risco quando se enraíza o caciquismo amparado por vitórias de maioria relativa.

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Estes caciques modernos são, frequentemente, figuras que controlam o aparelho através de redes de clientelismo e favores. A sua força não emana de um mandato popular esmagador, mas de uma habilidade perversa para manipular o sistema eleitoral e institucional. Conseguem mobilizar um núcleo duro de apoiantes, suficiente para vencer em sistemas fraturados, e depois usam essa margem mínima para governar como se detivessem uma maioria absoluta ou qualificada.

As consequências desta distorção são profundamente nefastas. Em primeiro lugar, assiste- se à inoperância das instituições. Os órgãos colegiais que deveriam decidir em função da sua maioria são açambarcados por uma maioria relativa que impõe a sua vontade, ignorando o diálogo e marginalizando a oposição. Vontades convenientes são aprovadas à força, sem o escrutínio devido, enquanto o interesse coletivo é subjugado aos interesses de facção. A gestão política, em vez de administrar para todos, gasta o seu escasso capital político e energia para negociar a sua própria sobrevivência, cedendo a pressões de grupos específicos para manter o poder.

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Esta disfunção é o preâmbulo da decadência da democracia. A população, testemunha a paralisia e o jogo egoísta de alguns representantes, todos pagam por alguns e a população perde a fé no sistema, na política e nas pessoas. O ceticismo transforma-se em descrença, e a descrença, em apatia ou raiva. Quando a raiva é cega e ignorante, no sentido de não estar informada, pode tender a violência, física ou verbal. O espaço público é envenenado pela polarização, alimentada pelos próprios caciques, que encontram no conflito permanente uma forma de mobilizar a sua base e ocultar a sua incompetência. A qualidade do debate deteriora-se, os projetos de longo prazo tornam-se impossíveis e o país fica à deriva, incapaz de responder aos desafios do futuro.

O culminar mais sombrio deste processo é a apropriação do poder por parte do crime organizado. Quando as instituições são fracas, corruptas e disfuncionais, abrem-se vácuos de poder que são rapidamente preenchidos por atores não-estatais. Os caciques, focados na sua sobrevivência política, muitas vezes estabelecem pactos de conveniência com estas forças. Em troca de apoio eleitoral, financiamento ou controlo territorial, fecham os olhos, ou tornam-se cúmplices, de atividades criminosas. O Estado de Direito desmorona-se, e a linha que separa o poder político do poder criminoso torna-se perigosamente ténue. A democracia deixa, então, de existir, substituída por uma cleptocracia disfarçada nas urnas.

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Urge, portanto, que as democracias se libertem desse jugo. Isto exige mais do que uma simples alternância no poder, exige uma reforma estrutural e profunda de mentalidades. É necessário rever sistemas eleitorais que amplificam maiorias artificiais, é preciso fortalecer os freios e contrapesos institucionais, garantir a independência da justiça e dos órgãos de fiscalização e promover uma cultura política de transparência e accountability. A defesa da democracia não se faz apenas nas urnas, ou, como agora, em monumentos, mas numa vigilância constante e numa participação ativa que exija dos eleitos um serviço ao bem comum, e não a uma clique restrita.

A escolha é entre uma democracia viva, plural e operacional, ou uma farsa autocrática que apenas serve os que estão no topo da pirâmide corrupta. O futuro da nossa convivência coletiva depende do caminho que escolhermos. Sim, a política interessa e é necessária. A democracia precisa da cidadania para sobreviver sob pena de ser tomada por caciques.

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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