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Opinião

A Crise da Democracia

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Por: Cídio Lopes de Almeida*

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A partir da década de 1970 surgiu um debate sobre a “crise da democracia” dentro da literatura sobre democratização. Para o filósofo contemporâneo Jürgen Habermas, esta crise pode ser verificada a partir dos aspectos económicos que atinge e ou é visto como um problema político. Levando os governos a estarem em permanente equilíbrio, ora para garantir que os interesses do capitalismo mantenham seus ganhos, ora para atender as demandas da sociedade de por bem-estar.

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Como este equilíbrio tende a não se resolver, instaura uma crise de racionalidade no sistema político levando-nos a uma crise de legitimidade. O que acaba por instaurar uma incontornável crise do próprio sistema político democrático. E a percepção dos indivíduos para com os políticos e os sistemas políticos perde um horizonte de sentido. Nada será capaz de instaurar uma política propriamente, e sem modular isto de modo consciente, os indivíduos embarcam numa jornada que fatalmente nos levará ao caos, onde não há política.

Revisitando a ideia de democracia ocidental podemos pensar em três fase mais recente. Entre os anos 1970 e 80 pode-se dizer que havia muita esperança, e experimentou uma certa expansão global deste modelo. De certo modo, alguns países europeus e os Estados Unidos da América do Norte experimentaram um crescente ganho financeiro geral, em especial dos trabalhadores e trabalhadoras e isto era percebido como sendo resultado democrático.

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Uma segunda fase, situado entre os anos 1990 até 2000 aquele otimismo não se mantém. Para alguns especialistas seria a “zona cinzenta” entre os princípios da democracia e regimes autoritários com sucesso económico. Registra-se que nesta época há o fim do modelo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e junto com ele o tema do ganho financeiro dos trabalhadores e trabalhadoras no mundo ocidental irá pender para os ganhos do capital, que irá ascender cada vez mais soberano.

Além dos ganhos capitalistas em detrimento do trabalho, progressivamente pode-se verificar que certos modelos de autoritarismo irão despertar a sanha do capital na medida em que se mostram eficientes para o aumento dos lucros. Se o “muro de Berlim caiu”, caiu também a “cortina de bambu” e, com ela, a República Popular da China inseriu milhares de trabalhadores a preços irrisórios e irresistíveis para a Indústria da Europa e EUA-N. A opção pela prática económica do capitalismo no interior do socialismo chinês seria outra resenha, mas será nesta década que suas ações iniciadas nos 80 irá ascender até os nossos dias. Através de um regime não democrático, com cariz autoritário, o capitalismo deu saltos exponenciais.

A terceira fase, que começa nos anos 2000 até nossos dias, pode ser caracterizado pela desilusão democrática. Em que a crise económica de 2008 a partir dos Estados Unidos da América do Norte é um ícone. Algo iniciado pela prática económica sem regulação do Estado, mas que foi resolvida com dinheiro público. Após a retomada ou resolução do problema, houve recuperação das empresas, mas não dos trabalhadores. No referido país, a precarização do trabalho manteve-se. Como no mundo ocidental assistiu-se a todo tipo de trabalho que se especializou em explorar mais o trabalho a preços mínimos.

Neste quadro nos perguntamos sobre como anda o modelo democrático de nossos dias. Experimentamos nós últimos anos no Brasil a ascensão da não política. Sob o anglicismo fake news (falsas notícias) e um ódio absurdo performa-se nas mídias corporativas (grandes empresas de comunicação) e mesmo nas mídias alternativas um desejo insano de eliminar o oponente. Incialmente chamam isto de política, mas, como veremos, isto é os primeiro arroubos da barbárie.

Em nossa percepção, este desejo do monstruoso jogado na praça pública como política não é de todas as correntes. Em nossa apreciação é uma horda de pessoas que ao longo destes últimos 40 anos nutriram em silêncio algum tipo de percepção de fracasso pessoal. Esta percepção pode ter ao menos dois planos. O primeiro é que de fato experimentaram fracassos. No livro A Tirania do Mérito, de Michel Sandel, podemos pensar como uma sociedade que diz que o melhor merece, mas o perdedor deve se recolher na sua experiência de fracasso, a fonte de uma horda gigante de pessoas que experimentam o fracasso. Não são os primeiros das salas de aulas, não passaram nos melhores concursos, não são os primeiros no trabalho, etc.

Uma segunda ideia do fracasso, pode estar na promessa crescente de desejo operada pela cultura do consumo de massa. O fracasso ou a falta é parte da engrenagem do consumo, que precisa ser construindo a todo o momento junto às pessoas para que elas consumam. A falta como traço essencial de uma sociedade baseada no consumo, acaba por garantir que todos no fundo façam algum tipo de experiência de falta. E desta fonte de ausência, alimenta-se o ódio que agora se viu liberado para se jogar em praça pública, disfarçado de um tipo de prática política. 

Como a realidade que mais importa é esta ausência cultivada por longos anos, associada a precarização da vida econômica, qualquer fala é transpassada por esta vontade, que no caso é traduzida por raiva e ódio. A política como esfera de debates, de consensos, virou esfera de atrito. Esfera na qual a angústia pessoal é tão avassaladora que não vejo nem a mim, muito menos os outros. Não há debate, mas os atores se batem com as palavras.

Alguns políticos subiram nos sistemas de eleições representativas capitaneando estas forças que habitavam seus espectadores. E por isto não se pergunta sobre verdade, sobre consenso. Uma pessoa possuída de raiva, se sente representada quando a discursividade do outro toca estes temas que habitam em si. Por isto falas racistas de Trump ou Bolsonaro ecoa entre seus seguidores de modo contagiante.

O fracasso experimentado ou provocado pela indústria do consumo desmedido deixa seu registro nas intervenções dos políticos e das pessoas debatendo sobre política a cada dia. O ausente dos seus textos (falas), como no negativo de um filme fotográfico, é o monstruoso do ódio, do vazio, da frustração pessoal reprimida. A fala que parece política é só um pretexto, o que move a narrativa é a raiva.

A dialética da política, sobretudo das democracias, em que cidadãos discutem temas e constroem consensos, subsumindo os desejos de todos em um projeto de nação e de Estado parecem não existir mais. Na retórica cidadã, o que não se mostra no seu texto, é o desejo do bem comum. É por este desejo que se faz avançar os projetos políticos para o bem comum. O esforço é dirimir “contraditoriedes”, para celebrar a vida cidadã, garantir o Estado democrático como instância garantidora da liberdade individual e comunitária.

O denuncismo como estratégia de liquidação do outro, encerra a dialética. Impossibilita a sua existência e com isto inviabiliza a política. O que leva a tais práticas carregarem em si pressupostos autoritários, não ditos em primeiro momento, mas que se revelará assim que oportuno. Em recapitulação histórica, os anos 20 do século passado foi exemplo disto, o fascismo em Itália e o social socialismo na Alemanha nos fornecem muitos elementos de como este ódio reprimido chegou pelas vias da democracia. Incialmente todos eles emularam serem debates políticos democráticos. E aqui não está a fazer uma ligação dos atuais políticos com aqueles do passado, apenas denotar elementos em comum o que não nós permite afirmar que o momento presente é o do passado.

No contexto da lusofonia, de modos variados, temos notado este expediente. Pelo tamanho do Brasil, a quantidade tem nos colocado em evidência, porém, não parece ser algo exclusivo da nossa democracia. Outro fato importante, é que para além da política nacional, na política das eleições de 2024, este denuncismo eivado de ódio tem se misturado com as falsas notícias. Pelo que este pleito irá nos mostrar em que estado estamos com este tema, se estamos avançando na direção do abismo ou não.

O sentido de quem ensina ou se dedica ao pensamento reflexivo é que estamos em plena distopia. A distopia tem borrado nosso horizonte de esperança democrática. Temos a cada dia quase que alucinar (inventar imagens e pensamentos que não tem contato com a realidade) a democracia. A democracia nesta fase precisa recorrer aos poetas, para ser recriada.

Doutorando Ciências das Religiões – Faculdade Unida de Vitória – Pesquisador FAPES

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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