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Estilista Aldina Jesus: “Um profissional africano tem de se sobrevalorizar para ser opção em diversas áreas”

Aldina Luz Jesus é uma cabo-verdiana de sucesso em Portugal que entende ser “prioritário e urgente” trabalhar-se a representatividade africana no sector das artes, embora reconheça que isso esteja a acontecer aos poucos. Em entrevista ao Mindelinsite, esta modelista e empresária lamenta a existência ainda de visões estereotipadas e considera ser necessário trabalhar-se a integração até que o reconhecimento do valor africano seja algo natural e não excêntrico, ou específico de determinadas áreas de trabalho ou papéis na sociedade portuguesa. Aldina Jesus, que é também guarda-roupa no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, conta um dia poder levar a sua arte a Cabo Verde no campo da formação de jovens.

Por: João A. do Rosário

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Mindel Insite –  Como vê a arte e a integração dos cabo-verdianos e dos africanos no geral em Portugal?

Aldina Luz Jesus – Os africanos estão mais ou menos integrados. Preservam hábitos, crenças, expressões culturais que são bastante admirados e que se encaixam na estética da cultura europeia pela proximidade que a história proporcionou entre os dois continentes. Um profissional não pode parar, mas um profissional africano tem de manter uma certa inconformidade extra, tem de se sobrevalorizar para que possa ser visto como opção para se integrar nas várias áreas, e ser visto com outro olhar. É preciso ainda trabalhar a representatividade africana no sector, embora isso esteja a acontecer aos poucos. Abandonar visões estereotipadas e trabalhar a integração até que o reconhecimento do valor africano seja algo natural e não excêntrico, ou específico de determinadas áreas de trabalho ou papéis na sociedade. É preciso sentir que uma criança africana pode aspirar a ser tudo o que quiser na sua vida. E eu espero poder contribuir para isso com o meu percurso.

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MI – Sabemos que dirige uma equipa de 15 pessoas enquanto guarda-roupa no teatro D. Maria II. O que é ser uma cabo-verdiana a liderar uma equipa dessas numa casa de teatro e espetáculos da dimensão da D. Maria II?

ALJ – Paralelamente ao trabalho no meu atelier, coordeno a execução do Guarda-roupa de todas as produções do D. Maria II. Mediante as necessidades de cada espectáculo podemos ser uma equipa de 6 a 15 pessoas. Gosto muito da forma como respeitam o meu trabalho no D. Maria II e, de facto, ser uma cabo-verdiana nesta casa tem sido, a meu ver, um exemplo, mas também faço de tudo para que os meus conhecimentos e a experiência, adquiridos ao longo de 20 anos, sejam uma mais valia para todas as companhias e para as produções executadas no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII).

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MI – Explica-nos como se processa o seu trabalho e qual é a responsabilidade que acarreta?

ALJ – O meu trabalho, seja no meu atelier ou no TNDMII, começa pela  coordenação de uma equipa para fazer face à produção do guarda-roupa de um espectáculo. Em conjunto com o figurinista ou encenador é feita uma pesquisa de materiais e de valores por forma a obter um orçamento mais preciso para a compra de tecidos e aviamentos e para a execução do guarda-roupa. A modelagem, corte e confecção é toda executada pela equipa que trabalha comigo, quer no Teatro, quer no Atelier Aldina Jesus. A responsabilidade é, como em qualquer chefia, a de  garantir atempadamente todas as provas, olhando as necessidades de todos, de forma a ter nas datas estipuladas o guarda-roupa pronto para utilizações nos ensaios propostos pelo calendário da temporada. 

M I – Como é a interação que tem com os actores, produtores, realizadores e outras pessoas que estão envolvidas, digamos, durante uma sessão ou uma peça teatral?

ALJ – A nossa interação com os actores é muito importante, na medida em que temos a responsabilidade de ir ao encontro de todas as necessidades das personagens em causa nos espectáculos, quer a nível de mobilidade ou exigências específicas dos actores. Há um trabalho de equipa em torno do figurinista, mestra e todos os actores, passando por todos os envolvidos – encenador/a, produtor/a do espectáculo, até chegarmos a um figurino certo para o actor ou actriz. 

Não existem “lugares ao Sol”

M i – É uma pessoa ligada à moda aqui em Portugal. Pergunto se é fácil enquanto  cabo-verdiana e  africana  conseguir-se um “lugar ao sol”, nesse meio?

ALJ – Não existem lugares ao sol, no meu caso acho que o facto de ter trabalhado com nomes bastante sonantes e da linha da frente do mundo da moda, como José António Tenente e Storytailors, abrem portas para as melhores oportunidades quer na moda quer no teatro. Sempre nos bastidores, fosse das passereles ou dos camarins, aproveitei cada oportunidade para superar todas as exigências do que me era pedido. Sempre procurei ir construindo uma marca em paralelo com o trabalho desempenhado no Teatro, até conseguir ter a minha loja com o meu nome.  Neste meio, facilmente passamos da linha da frente para o fim da linha no dia seguinte, porque as marcas tentam constantemente superar-se e subir o nível na elaboração de novas peças e na escolha de materiais inovadores. Acompanhar esta evolução é muito importante para quem quer desenvolver novas técnicas a vários níveis de produção, execução e confecção, sem esquecer a publicidade, que faz com que o nosso trabalho chegue a mais pessoas. 

Sempre nos bastidores, fosse das passereles ou dos camarins, aproveitei cada oportunidade para superar todas as exigências do que me era pedido. Sempre procurei ir construindo uma marca em paralelo com o trabalho desempenhado no Teatro, até conseguir ter a minha loja com o meu nome.

M I – No teu “atelier” utilizas muitos tecidos típicos africanos, gêneros, capulana, que na cultura de Cabo Verde é conhecido como “pano di tera”. Como tem sido isso aliado a sua arte de costura e de estilista? 

ALJ – Tenho vindo a ter cada vez mais clientes que gostam de misturar panos típicos africanos com tecidos básicos para o dia-a-dia ou mesmo em ocasiões especiais. Os panos são muito específicos, falam por si mas não quero trabalhá-los sem formas, pelo contrário, gosto de aplicar todas as técnicas desenvolvidas ao longo destes anos para executar peças com uma particularidade, a elaboração de uma boa modelagem ajustada ao corpo da cliente. 

M I – Qual a sua relação com Cabo Verde no que toca à profissão de modista? Nunca pensou em expor  a sua obra na terra dos teus pais?

ALJ – Embora a minha ligação à cultura portuguesa tenha influenciado as minhas opções de vida, revejo-me em Cabo Verde não para expor o meu trabalho, mas para passar conhecimento aos mais novos e interessados nesta arte!  O convite já surgiu de uma empresa, mas não era a melhor altura para regressar a Cabo Verde. A formação é uma área na qual me sinto bem, já estive a dar aulas na Casa Pia, recebo vários convites nesse sentido pela Modatex, e outras escolas da área, mas ficou a vontade de querer partilhar conhecimento e experiências, em Cabo Verde. 

M I – Quais os projectos em que vai estar envolvida nos proximos tempos?

ALJ – Embora não possa desvendar que figurinos estamos a confeccionar no TNDMII, a temporada já foi apresentada ao público e existe uma lista de espectáculos a escolher, para assistir até junho. A título pessoal, tenho mantido activamente colaborações na execução de figurinos com o Teatro Ibérico, o Grupo de Teatro Terapêutico e com o Figurinista José Capela. 

Embora a minha ligação à cultura portuguesa tenha influenciado as minhas opções de vida, revejo-me em Cabo Verde não para expor o meu trabalho, mas para passar conhecimento aos mais novos e interessados nesta arte!” 

E mantenho o meu trabalho para as marchas populares que foram adiadas para o próximo ano, um dos momentos mais altos a nível turístico de Lisboa, em que estaria a meu cargo a confecção de quatro marchas.

M I – A situação vivida nos últimos meses devido a pandemia tem provocado enormes transtornos a volta de todas as profissões e áreas mas, a classe artistica foi das mais que sofreu com esta situação do covid 19. Q que tem a dizer sobre isso?

ALJ – A maior parte das pessoas acha que este sector é basicamente constituído por artistas. Mas além de artistas e produtores, nós temos técnicos, figurinistas, costureiras, maquilhagem, luz, som, directores de cena, electricistas, manutenção….Existem algumas produções onde são necessárias mais de 50 pessoas, ou mais de 100, por vezes mais de 1000 pessoas para a realização de um espectáculo. A cultura foi um dos primeiros sectores a parar. Sessões de cinema, concertos de música, estreia de espectáculos e exposições de arte foram suspensos, foram interrompidos, sem um plano para fazer face aos orçamentos dos espectáculos. Embora o TNDMII tenha feito de tudo para cumprir com todos os seus compromissos para com os cerca de 180 trabalhadores e respectivas companhias com espectáculos na temporada corrente, devem ser revistas as medidas de contratação, para fazer face a esta nova realidade e apostar cada vez mais na divulgação e novas formas de criação de projectos que levem o público a aderir às actividades culturais. 

Percurso de ALDINA JESUS

É uma cabo-verdiana de sucesso na Diáspora que se define na primeira pessoa:

Aldina Jesus, 45 anos,  tenho dois filhos, vivo há 41 anos em Portugal com a minha família. 

– Sou gerente e modelista na empresa Aldina Jesus, Lda, com confecção de vestuário e execução de guarda-roupa para espectáculos de teatro 

Sou Mestra de Guarda Roupa no Teatro D. Maria II.

Formei-me em Modelagem Profissional no “Centro de Indústria, Vestuário e Confeção” (CIVEC) e em 1998 fiz um estágio com o Estilista “José António Tenente”, que ganhou continuidade com uma colaboração profissional que se estendeu por 10 anos com trabalhos de Modelagem, Corte e Confecção para diversos eventos, como o “Moda Lisboa”, “Moda Cascais”, “Portugal Fashion” e vários Programas de televisão (“Furor”, “Chuva de Estrelas” e “Globos de Ouro”).

-Em 2008, iniciei uma colaboração como Modelista e Coordenadora com os Estilistas Storytailors, com execução de trabalhos para eventos de Moda (“Moda Lisboa”, “Portugal Fashion” e “Moda Paris”), e desempenho de funções de coordernação de Atelier em vários espectáculos de teatro. 

Em 2012, iniciei funções no “Teatro Nacional D. Maria II” (TNDMII) como Mestra de Guarda Roupa, tendo desenvolvido trabalhos de Modelagem, Corte e Confecção em espectáculos do Teatro. Adicionalmente, tive oportunidade de participar como Figurinista nos espectáculos “O Duelo” e “Sopro” – este último numa criação para o Festival de Avignon, que acabou por vencer um Globo de Ouro, na categoria de Melhor Espectáculo. 

Tenho trabalhado também como figurinista e na execução de marchas populares de Lisboa, nomeadamente na Bica. Fiz confecção de marchas de Marvila,  Santa Casa e Kaparica. Para este ano estou a desenvolver os figurinos das marchas populares com o Figurinista Paulo Julião. 

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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