Peripécias do Carnaval – O drama de ver o sonho do desfile em risco de desmoronar à última hora

Quem nunca…, quem nunca ouviu relatos de momentos dramáticos e até cómicos ocorridos nos desfiles carnavalescos em S. Vicente? Se não viveu na pele, certamente soube de peripécias que envolveram foliões deste ou daquele grupo: um traje inacabado, um equipamento que se avariou, uma gripe que surgiu no pior momento… Neste mundo de fantasia, quase ninguém fica imune aos azares. Os depoimentos recolhidos pela reportagem do Mindelinsite confirmam esta realidade. Do simples figurante às figuras de destaque há estórias inesquecíveis.
Vamos começar pelo reconhecido compositor Jotacê, que também se destacou como Mestre-sala dos grupos Samba Tropical e Cruzeiros do Norte. É nesta condição que passou por momentos hilariantes. Resumidamente, JC chegou a sofrer um desmaio antes de entrar na Rua de Lisboa e, num outro ano, a sua coroa estragou durante a primeira volta do desfile. Teve que fazer a segunda rodada com o pescoço torto e dançar contra o vento para aguentar a peça no lugar. Por sorte nenhum júri reparou nessa situação e conquistou o prémio de Mestre-sala.

“Foram as duas peripécias que me marcaram mais. No desfile de 2018, se a memória não me trai, sofri um desmaio durante a concentração para o desfile do Cruzeiros do Norte. Quando o meu primo Luís soube, veio a correr e encheu-me literalmente de bolo de chocolate, sumo e Redbull goela a baixo. Quase que me engasguei”, recorda. Entretanto, outras pessoas, como a dirigente Maria José, quis leva-lo para o hospital, mas preferiu arriscar e entrar com toda a folia na Rua de Lisboa. Questionado sobre o motivo do desfalecimento, JC atribui ao cansaço. Explica que costumava sair no Samba na segunda-feira à noite, ir para o baile e voltar a desfilar horas depois no concurso oficial. Um desgaste considerável de energia.
Outros episódios envolvendo justamente os referidos grémios foram relatados por Fatinha do Rosário, uma habitué da festa do Rei Momo no Mindelo. Em 2017, conta, o Cruzeiros do Norte elaborou um carro alegórico em formato de uma árvore. Quando estavam a levar o andor para o centro da cidade depararam com uma viatura estacionada na Avenida Marginal. “O carro estava a impedir a nossa passagem e as pessoas começaram a ficar nervosas. Resultado: vários rapazes uniram forças e removeram o veículo do caminho”, conta. Ultrapassado esse entrave, Fatinha conseguiu vestir o seu grande traje em cima do andor, atirar as roupas para baixo (“parecia que estava a fazer uma striptease”) e ser vivamente aplaudida pelo público. Mais tarde, ficaram a saber que o veículo pertencia a uma pessoa que estava a ajudar o grupo e que lamentou profundamente essa situação.

Decorria o ano 2013 e Samba Tropical apostou no enredo Signos. Nesse desfile, Fatinha e a amiga Kaíta assumiram a ala Balança e tinham trajes “meio complicados”. Talvez por isso, a costura das indumentárias delas e das outras figurantes começou a ficar atrasada. “Demos primazia às roupas das outras pessoas e as nossas ficaram ainda mais atrasadas. Ainda estava a preparar-me, quando soube que o Samba tinha iniciado o desfile. Corri e disse que tinha que entrar na minha ala, o que consegui, com a ajuda do público, quando o grupo passava perto da loja Mendes e Mendes. Fui tão aplaudida que desatei a chorar”, relata Fatinha, que lamentou apenas ter perdido a passagem pela emblemática Rua de Lisboa.
“Vi o meu grupo entrar na Rua de Lisboa pela televisão”
Uma cena muito parecida aconteceu com Vânia Patrícia em 2016, quando viu o Cruzeiros do Norte entrar na Rua de Lisboa pela televisão enquanto a costureira acertava os últimos pontos no seu traje de destaque. Como costuma acontecer, resolveu dar prioridade à construção das roupas das outras integrantes da sua ala, a sua ficou para o fim, e deu nisso. “Fui invadida por um sentimento misto de alegria, por ver o meu grupo entrando com esplendor na Rua de Lisboa, e de tristeza, por não estar lá”, lembra. Nesse ano, a jovem só conseguiu entrar na vibe da festa quando o grupo já estava perto da Praça Nova, praticamente com dois terços do trajeto feito.

No ano passado, Vânia Patrícia ficou também numa situação complicada. Nesse desfile, o Cruzeiros do Norte comemorava o seu 40. aniversário e o grupo teve a ideia de construir um tripé ornamentado com bolo verdadeiro para oferecer ao público em pleno desfile. Coube a ela a responsabilidade de transportar a guloseima. Na azáfama dos preparativos, foi buscar o bolo muito próximo da hora e esqueceu-se que era grande e não o poderia transportar sozinha. “Voltei para o estaleiro e levei 6 rapazes para me ajudar a carregar 2 bolos. Quando chegamos na morada, a Polícia não nos deixou entrar na zona do desfile”, recorda a jovem, que conseguiu resolver esse problema com a ajuda do público, que abriu caminho.
À espera do traje encomendado no Brasil

Quem também se viu numa “saia-justa” no ano passado foi a passista Milla Diogo, rainha da bateria do grupo Estrela do Mar. “Foi uma situação muito grave porque fiquei sem o traje, que deveria vir do Brasil”, revela. À última hora, essa figura de destaque teve que desencadear uma série de expedientes, comprar peças à pressa aqui e ali para refazer a sua indumentária com as próprias mãos para condizer com o enredo do grupo. “Foi uma autêntica correria e, como um azar nunca vem só, como se costuma dizer, a roupa estragou-se quando fui vesti-la”, acrescenta a jovem, que não se deixou abalar psicologicamente nesse momento. Calmamente pediu ajuda a uma pessoa, que lhe forneceu agulha e linha e solucionou o problema.

A passista Wendy Simone tem uma passagem que lhe ficou cravada na memória, ocorrida quando saiu pela primeira vez como figura de destaque do grupo Monte Sossego. No dia do desfile, conta, foi buscar o adereço das costas nos estaleiros, mas viu que nada tinha sido feito ainda. “Desatei aos choros e voltei triste para casa com a armação nas mãos. Ao ver o meu estado, o meu pai ficou indignado. Foi para o estaleiro perguntar o que se passava e disseram-lhe que não tinham tempo para fazer o trabalho, que ele procurasse outro lugar”, relata. Segundo a actual rainha da bateria de Montsu, o seu pai resolveu roçar todos os materiais que estavam ao seu alcance e disse em bom tom que, nesse caso, ninguém iria trabalhar. “Pegaram de imediato no adorno, que ficou pronto em pouco tempo.”
“Stress nas alturas”
Rainha do grémio Flores do Mindelo por dois anos consecutivos, Karen Graça enfrentou alguns contratempos para poder desfilar. Em 2017, quando foi buscar os adereços recebeu algo completamente diferente. “Inicialmente, estes seriam acoplados ao carro-alegórico, mas, quando cheguei ao estaleiro, me entregaram algo parecido com um polvo, que destoava do tema. Porém, o problema maior foi com os adereços da roupa, que só vi na concentração”, conta. Por causa disso, Karen foi içada para o andor, com este já em movimento, quando o grupo já tinha iniciado a entrada na Rua de Lisboa.

No ano seguinte, 2018, a sua roupa tinha de se encaixar numa peça do carro-alegórico, mas as medidas não coincidiram e ela teve de ficar levantada. Conforme Karen Graça, conseguiram remediar a situação na parte de frente, mas foi impossível na parte traseira. “Nesses momentos o estresse sobe às alturas e não consegui segurar as lágrimas”, exclama.
Em 2022, Sissy Delgado foi buscar, à última hora, a sua roupa de rainha de Estrela do Mar e o grupo era o primeiro a desfilar. Quando chegou ao atelier levou um choque: o traje não tinha ainda nenhuma decoração. “A costureira alegou que não sabia fazer as decorações e me direcionou para o estaleiro para fazerem uma cobra de duas cabeças que ficava nos meus pés. O adereço das costas também não estava pronto”, retrata Sissy, que foi por duas vezes ao estaleiro e nada estava a andar. “Fiquei estressada e chorei. “

Para ultrapassar este entrave, teve de chamar alguns amigos para ajudar a concluir o traje. Como iria desfilar no asfalto, tiveram de improvisar um pano para colocar na barra do vestido. Por sorte, conseguiu vestir-se no último minuto no hotel Ponte d’Água. “No final deu certo, mas foi tão corrido que me esqueci de colocar as luvas, o que fiz já na Rua de Lisboa”. Depois foi colocar um sorriso no rosto e entrar no espírito da festa. No entanto, Sissy teve um pequeno incidente na Rua Machado ao tropeçar no tecido da barra e quase cair. Por sorte, foi amparada por um dos guardiões da rainha.

Com uma vasta experiência no Carnaval, Paulo Almeida diz que quase todos os anos aparecem alguns percalços durante os desfiles com a sua pessoa. Recorda, por exemplo, quando a sua costeira quebrou no desfile do Samba Tropical no ano passado. “Eu era o destaque da ala, portanto dava muito nas vistas. Fiz parte do desfile com a costeira nas mãos, mas a abandonei na rua Machado debaixo das bancadas. Nunca mais procurei pelo adereço”, confessa Paulo, enfatizando que depois fica tão feliz na passarela que tudo passa.
Mário Dias não se lembra de nenhum incidente com a sua pessoa, mas já viu muitos foliões com adereços danificados, seja roupas, sapatos e outros. Na maioria das vezes, conta, o pessoal tenta manter a pose e continuar, nem que seja descalço. “No meu caso, enquanto promotor de uma ala no Samba Tropical, já estive quase para ficar sem desfilar porque tive de ceder os meus trajes para outras pessoas. Era preciso priorizá-las porque já tinham pago. Já enfrentamos alguns contratempos porque nem todos os figurantes da minha ala receberam os seus trajes. Por ser o chefe da ala, tive de sacrificar-me”, revela. No último minuto, diz, foi possível improvisar e participar do desfile, mas não era aquilo que queria, de certeza. Mas no final deu tudo certo.
“Socorrista de serviço”

Se há quem quase tem um ataque de nervos para poder estar no sambódromo, outros ficam fora das luzes dos holofotes, que nem anjos da guara. É o caso do empresário Adriano Bento, que tem funcionado como pronto-socorro para quase todos os grupos. A sua intervenção mais recente e de grande destaque foi no desfile do Samba Tropical. Momentos antes do arranque do show, o gerador do trio eléctrico pifou. Presente no local, Adriano prontificou-se logo em ajudar e disponibilizar um gerador, que salvou o desfile. “Já socorri vários grupos. Houve um ano em que levei uma grua para ajudar o grupo Cruzeiros do Norte. O equipamento que estavam a usar pegou fogo e eu estava lá presente ajudando em pleno domingo do Carnaval. E, diga-se, Cruzeiros é concorrente de Monte Sossego, meu grupo”, comenta o empresário.
Aliás, Adriano já interviu para socorrer o próprio grupo Montsu. Num dos desfiles disponibilizou uma viatura que sofreu uma avaria no refrigerador de óleo. Esse imprevisto foi resolvido ainda durante o desfile. Como explica, ciente dos problemas que podem ocorrer, Monte Sossego coloca equipamentos suplentes em pontos estratégicos do percurso.
O Carnaval está de novo à porta com toda a sua maquinaria em ação: estaleiros, ateliers, lojas, transportes, quadras de ensaio… Resta aguardar pelas peripécias e dramas que, certamente, vão surgir dos cantos ou não seria… Carnaval.