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Jornalismo “destemido” em tempo de Covid-19, uma missão de alto risco

A situação é de excepção e exige-se cautela na divulgação de informações sobre a evolução da pandemia do coronavírus no país, até para se evitar o pânico. Convenhamos, ser “destemido” neste tempo de Covid-19 é uma missão de alto risco para a credibilidade do jornalista cabo-verdiano. Receio natural que acabou por ser inflacionado com a nota do Governo que, no início desta crise, ameaçou responsabilizar judicialmente os profissionais da comunicação social por divulgação de notícias falsas ou que carecem de confirmação oficial. O problema é que, neste momento, os jornalistas, sobretudo os que estão fora da cidade da Praia, estão condicionados no exercício da sua profissão devido a concentração de informações no Ministro da Saúde, no Director Nacional e na Presidente do Instituto Nacional da Saúde Pública.

Estas autoridades adoptaram um modelo de divulgação – conferências de imprensa diárias – usado noutras paragens, mas que não se adapta à realidade de Cabo Verde, formado por ilhas. Esta concentração de informação acaba por interferir na liberdade de trabalho dos jornalistas, sobretudo os fora da capital porque dificilmente conseguem uma confirmação junto de uma fonte oficial, no caso a direcção dos hospitais ou delegacias de saúde. Pelo menos esta é a realidade que se vive neste momento em São Vicente e que ficou muito evidente aquando do primeiro caso confirmado de infecção por coronavírus na ilha do Porto Grande. 

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O Mindelinsite, por meios próprios, tomou conhecimento da infecção da chinesa e dos seus meandros muito antes da sua confirmação através do comunicado do Governo, divulgado na noite de sexta-feira. Os detalhes deste caso, cuja origem do contágio ainda é desconhecida, eram relevantes, uma situação que ficou ainda mais evidente pelas informações, ou falta delas, avançadas pelo ministro da Saúde, Arlindo do Rosário. Em S. Vicente já se sabia que a doente trabalha como interprete na Cabnave (faz tradução para os pescadores dos navios chineses que são reparados naquele estaleiro naval), mas também tem uma filha que tinha regressado da Alemanha, país europeu fustigado pelo coronavírus. 

Também este jornal soube que a paciente foi atendida numa clinica privada e, posteriormente, no Hospital Baptista de Sousa, onde acabou por ficar internada no Serviço de Medicina, com uma suposta pneumonia. Pelo meio, há relatos de contacto com um lavador de carro que a ajudou a entrar num taxi quando procurou o hospital em estado grave, onde foi atendida por vários profissionais. O castigo aplicado à enfermeira que levantou a hipótese de Covid-19 também chegou ao nosso conhecimento. Todas estas informações foram avançadas por fontes “normais” e também por profissionais de saúde, mas sempre sob anonimato. O problema é que acabou por ser impossível obter uma confirmação oficial.

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A verdade é que o Hospital Baptista de Sousa, desde as suspeitas de contaminação do escritor Germano Almeida, fechou-se em copas, enquanto que a Delegacia de Saúde alega que o interlocutor neste processo é o DNS. Mesmo assim, é preciso reconhecer que tem sido mais fácil falar com o Delegado de Saúde do que com a directora do HBS.

“Optamos por reter as informação para evitar lançar a desinformação e o pânico. Quando as fontes solicitam o anonimato, a situação fica complicada porque é o jornalista e o órgão que acabam por assumir a responsabilidade total por aquilo que é publicado. No caso concreto da cidadã chinesa era necessária abordar uma fonte oficial. Tínhamos em mãos material para uma reportagem de elevado interesse público, mas entendemos que, perante a particularidade da situação, não valia a pena o risco de sermos taxados de sensacionalistas e irresponsáveis”, explica o jornalista Kim-Zé Brito, director do Mindelinsite, lembrando que este é apenas um entre vários episódios chegados ao conhecimento do jornal e que não são divulgados imediatamente por cautela.

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Agenda própria para driblar monopólio

No caso do A Nação, de acordo com o gestor Fernando Ortet, para driblar a limitação das conferências de imprensa, o jornal tem optado por uma agenda própria, nomeadamente notícias sobre locais de interesse, comportamento das pessoas em supermercados, na rua… E ainda a continuação da actividade em profissões consideradas relevantes. Para este tipo de matérias, o director do A Nação garante que não têm tido grandes problemas. “Há uma concentração das informações num grupo de pessoas que tem interesse em controlar aquilo que deve sair para fora, daí a ameaça do Governo de colocar os jornalistas no Tribunal.”

Apesar disso, Ortet diz não se deixar intimidar. Se tiver a certeza de que uma informação é verdadeira, garante que a vai publicar, mesmo sem nenhuma confirmação. “Podem ameaçar os jornalistas do jeito que quiserem. Estão a fazer o seu trabalho e lá têm as suas razões para divulgar as informações da forma que estão a fazer, mas os jornalistas também têm de fazer o seu trabalho. Nunca a imprensa privada em Cabo Verde foi irresponsável e não vai ser agora”, afirma, não obstante reconhecer que, neste momento, os jornalistas estão limitados. “Cabo Verde é um país de luta, de democracia, de reivindicação desde o tempo colonial e vai continuar a ser. A liberdade de imprensa não foi uma dádiva, foi conquistada”, reforça, lembrando que a AJOC assim como a Associação dos Medias Privadas condenaram o comunicado do Governo que propõe responsabilizar jornalistas criminalmente.

O presidente da Associação Sindical dos Jornalistas de Cabo Verde também   admite que, nesta fase, o trabalho dos jornalistas está condicionado, sobretudo por causa da responsabilidade colocada sobre os profissionais do sector. Carlos Santos concorda que é complicado divulgar algumas informações sem uma confirmação oficial porque paira sempre a dúvida se esta é ou não verdadeira. Por outro lado, o próprio profissional, diz, receia criar pânico no seio das pessoas. “Isso obriga a que os jornalistas façam uma autocensura ou então pensem duas vezes se vale a pena avançar com uma determinada informação. Noutras paragens existem especialistas na matéria que permitem contornar as fontes oficiais. Mas, aqui em Cabo Verde, infelizmente não temos estas fontes à nossa disposição, o que obriga os jornalistas a se sujeitarem às institucionais.”

Este responsável elogia as conferências de imprensa diárias para se fazer o ponto da situação e sublinha que estas não deixam muita margem para se esconder informações. O problema, afirma, é quando os jornalistas fazem as suas próprias investigações. “Antes do Covid-19, os jornalistas iam para as conferências de imprensa e depois tentavam, por meios próprios, confirmar a veracidade das informações avançadas”, diz, recorrendo a Portugal como exemplo, em que a imprensa entrevistou especialistas que colocaram em causa a forma como a contagem dos casos de Covid-19 está a ser feita. Aliás, estes afirmam que a situação real é diferente da oficial.

Perante este cenário, a recomendação de Santos é que os jornalistas continuem a fazer o seu trabalho com maior rigor possível, procurando sempre mais fontes para driblar o monopólio instalado. “Aqui, a melhor forma de se virar este jogo seria através da descentralização da informação. Acho que seria possível dar alguma margem aos delegados de Saúde, que representam o Ministério da Saúde nas ilhas. Estes podiam falar sobre as questões locais que precisam ser esclarecidas, antes das conferências de imprensa, até porque o ritmo de informação, sobretudo dos online, é instantâneo”, pontua, reconhecendo que os jornalistas têm-se esbarrado em muitas portas fechadas.  

O presidente da AJOC admite que, em alguns casos, a urgência pode sacrificar o rigor da informação. Mas aqui, diz, exige-se cautela por parte dos profissionais, que têm a responsabilidade de apurar e confirmar os dados, antes de avançarem alguma informação que pode gerar desconforto ou pânico. “Enfim, temos de continuar a fazer o nosso trabalho com rigor e procurar informar os cabo-verdianos com verdade, cruzar as fontes e dar outras perspectivas, através de um aprofundamento das histórias”, completa. Até porque o publico está a acompanhar, a avaliar e muitas vezes a criticar o trabalho final apresentado pelos jornalistas.

Constança de Pina

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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Um Comentário

  1. A par desta pandemia, de mãos dadas segue outra, que pretende cercear o direito de informar/expressar. Da plateia assistimos despudoradamente os “defendedores” que mais se comportam como verdadeiros/autênticos CARRASCOS da liberdade de informação/expressão, só por que sentem, que se encontram em cima do muro e podem pular para o lado que mais lhes convém. Pena que em CV, você corre a frente do touro para fugir dos cornos e o outro segue atrás segurando o rabo (do mesmo touro), para desfrutar da boleia. Assim não dá! Mas dá se insistirmos em imitar a “MULA DE JOM BINTIM”.

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