Por: Cídio Lopes de Almeida*
O artigo aborda um poema, Força di Cretcheu, da autoria de Eugénio Tavares, para relacionar seu conteúdo à ideia de logos, como é tratado habitualmente na Filosofia, e à ideia de “logos que se faz carne” no Evangelho de João, literatura sagrada para aqueles da fé cristã. Este artigo foi produzido para o contexto da comunicação oral da III Conferência Cabo-verdiana de Filosofia, Literatura e Educação em 2021, a atual versão se mantém, fizemos alguns ajustes na escrita.
- Introdução
Nesta reflexão temos a intensão de fazer uma triangulação não habitual entre um poema, como símbolo maior de uma cultura, com duas outras referências teóricas que não aparecem regularmente nas relações que aqui proposta.
De um lado o poema “Força di Cretcheu” de Eugénio Tavares, doutro duas tradições textuais. A filosófica, contida na ideia específica da poética de Aristóteles, da poesia como mimesis. No outro conjunto textual temos a linguagem teológica-mística do livro de João, como o “Quarto” livro daquele grupo reformador no ceio do judaísmo do século I “da era comum”. Sendo aí bem específico, naquela primeira parte que discorre de um “deus” logos, e d’um logos que se entranha no real, que se torna efetivamente “carne”, essa metáfora para uma humanidade.
O propósito fundamental desse exercício teórico será dar como totalmente compreensível relacionar três campos que só se separam às vistas dos não especialistas. Ousando indicar que pela poesia cabo-verdiana podemos ir a fundo numa memória coletiva, que é capaz de dizer não só dessa nacionalidade, mas ir mais a fundo. Dizer de uma diáspora colossal que foram os fluxos migratórios entre África e as Américas.
O texto não deseja cobrir o que indica como possibilidade, em primeiro lugar dado o tamanho do assunto que é a nossa memória comum entre África e Brasil, aqui, o corte, dentro que é possível, será para trabalharmos as linhas do poema de Eugénio Tavares e de suas implicações como a ideia de “logos joanino” e logos grego, que é objeto da filosofia em geral. Não se pretende ainda, como muito bem nos adverte Eudoro de Souza (Souza, 1973), se pôr na tarefa de revelar algo do poema em questão, mas tão somente indicar uma relação.
1. O poema Força di Cretcheu
Ca tem nada nes bida más grande qui amor
Não tem nada nessa vida, maior que o amor
Si Deus catem midida, amor inda ê maior
Se Deus não tem medida, o Amor ainda é maior
Maior qui mar qui céu
Maior que o mar e o que céu
Ma d’entre tudo cretcheu, di meu inda ê maior
Mas entre outros cretcheu, o meu ainda é maior
Cretcheu más sabi, ê quêl quê di meu
Cretcheu mais doce, é aquele que é o meu
El ê quê tchábi qui t’abrim nha céu
Ele é que é a chave que abriu o céu
Cretcheu más sabi, ê quêl qui’m crê
Cretcheu mais doce, é aquele que me quer
Ah s’m pêrdel mort dja bem
Ah se eu o perder, a morte já vem
Óh força di cretcheu abrim nha asa em flôr
Ó força de cretcheu abre as minhas asas em flôr
Dixam alcançá céu
Dexa-me alcançar o céu
Pám ba odjá nos senhor
Para ir ver o Nosso Senhor
Pam ba pidil simente d’amor
Para eu lhe pedir semente de amor
Cuma es di meu, pam bem dá tudo djenti
Como este meu, para dar a toda gente
Pa tudo bem conchê céu
Para todos conhecerem o céu.
- Uma ode ao amor, como não ser cristão?
O poema nas suas linhas gerais produz em nós uma imagem impossível de não ser associada a ideia de um amor transformador, não egoísta. E por conseguinte, associarmos ela ao “evangelho de João”, que procura, partindo do contexto de uma cultura helenizada do século I d.c., nos informar quem é o “Khristos” (João 20:31): “Estes porém foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” Essa ideia já para ao final do referido “evangelho” faz sentido quando pensamos na sua emblemática e polémica de um Deus logos, que se faz verbo e vai “se” jogar entre nós, virando “carne”.
No fim do poema, “Pa tudo bem conchê céu”, associado a extensa descrição de que “cretcheu”, esse crer trespassada de muito beleza e amorosidade, sempre excede e movimenta tudo entre nós, faz surgir em nós essa associação tão forte. De um “verbo que se faz carne” (João 1:14), de um “cretcheu” que se faz sangue e dá vida a tudo.
Nessa linha de constatações, paralelos:
Ca tem nada nes bida más grande qui amor
Não tem nada nessa vida, maior que o amor
Si Deus catem midida, amor inda ê maior
Se Deus não tem medida, o Amor ainda é maior
O correlato de um “amor maior que tudo” nos faz associar imediatamente com o “logos” joanino. Vejamos no próprio texto de João :
Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεός ἦν ὁ Λόγος.
En archē ēn ho lógos, kai ho lógos ēn pros ton Theón, kai theós ēn ho lógos.
No principio era o verbo, e o verbo era em com o deus, e (um) deus era o verbo.
No princípio era o verbo (Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος) e no poema o que nos interessa é que amor é amar, portanto um verbo. E como tal está anterior ao próprio Deus e que pode, como condicionante dele, estar “n’ele”. E que sem esse verbo, que no poema é “cretcheu”, deus não faz sentido. Apresenta-se tal ideia de modo evidente em “[ca] tem nada nes bida más grande qui amor” (Não tem nada nessa vida, maior que o amor), remetendo-nos para esse fundamento de um logos, nesse caso o amor, que transpassa o real, de um logos que é amor. E que não se trata do logos grego[i], construído seja no desejo de “harmonia”, pois a palavra legoi, legein, nos remetem a essas partes que se remontam, que da maneira do “lego”, produto infantil que consiste em várias peças que se encaixam. Se observarmos em detalhe a poesia de Eugénio Tavares aqui em análise, o amor de cretcheu perpassa e atua como estruturante do real, análogo em partes à ideia das causas em Aristóteles, ainda que para o poema ronda uma insondabilidade dessa força, um mistério, em como ela atua como causa do real.
O arremate dessa relação do poema Força de Cretcheu como a ideia de logos joanino nos parece ser no sentido em que um amor como força é a causa do sentido da vida. Uma amorosidade que se encontra mesmo no fundamento de uma totalidade e perpassando como causa toda a totalidade.
- A poesia mítica-filosófica, é assim na lusofonia.
Dentro da tradição ocidental, que hoje varre o orbi terrestre como matriz cultural dominante, há uma disputa pelo “logos” procedente da Grécia Antiga. Nessa disputa é bem documentado o afã que toda uma geração se lançou como participantes diletos dela. Em o “Romantismo: uma questão alemã” ou autor assim nos delineia esta ideia (Safranski, 2010). É claro que não é o único caso, citaria ao menos mais uma ideia contida em “Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente” de Edward W. Said. (Said, 1990), podemos também verificar como este “logos” eurocêntrico se colocou no lugar de dizer o que é este outro, o Oriente. Montou mesmo uma cadeia de produção intelectual, segundo Said, para dizer quem eram os “outros”.
Esse contexto macro de um logocentrismo não passa ao largo da nossa aproximação que estamos desenhando com a poesia como filosofia. Ele assentou o que seja filosofia, e certamente ela não se manifesta em poesia, mas se expressa apenas em língua discursiva. Ademais, como já é clássica a provocação que se atribui a Eudoro de Souza (Loia, 2007), naquele círculo da “Filosofia Portuense”, o português não seria mesmo uma língua para se filosofar, o que também, nesse quadro provocativo, incluiríamos o crioulo cabo-verdiano. Que fique vincado que nosso entendimento é justamente o contrário, tanto para as duas línguas aqui em que questão, quanto à forma de manifestar o filosófico no poético.
Curiosamente será na poética de Aristóteles, este monumento da racionalidade ocidental, especificamente no seu conceito de poesia como imitação, que poderemos encontrar aqui em Eugénio Tavares o filósofo poeta. E com mais um outro detalhe que também nos é tão irrelevante, para nós da lusofonia, que é uma mística filosófica, pois nos versos aqui refletidos não temos apenas um logos, mas é um logos amoroso que nos remete aquele ideia de Deus como ato puro em Aristóteles (Leonel Franca, 1964, 48), ou ainda da interação de um inominado com o mundo nominado, naquela ideia de filosofia mítica que Constança Marcondes César sinaliza ter sido objeto de pensadores da “Escola de São Paulo”, dentre eles Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Souza. (César, 2013)
E nessa altura, a contribuição do crioulonão é detalhe, mas algo central. Cretcheu é uma palavra profunda, ela denota no âmbito da semântica uma realidade “possível”, produz um real possível. E esse engendrar o real, dentro da “engenharia” aristotélica que subjaz dois mil anos de história ocidental, não é uma fantasia. Para Aristóteles:
[…] não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; e sim, o de representar o que poderia acontecer, o que quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade‖ (ARISTÓTELES, 1987, p. 209)O possível aqui é decorrente do poeta realmente participar, sentir, estar habitando as puras forças causais do real. É místico, pois ao contatar a totalidade pela mimese é pura mística. Esse contato direto do que seja o real, dentro daquele quadro da poética de Aristóteles, de que a mimeses seja esse trânsito, é que dá total força de realidade a cretcheu, termos já da cultura cabo-verdiana que o poeta habilmente articula no seu poema Força di Cretcheu. Demonstrando a nós o real lugar disso que podemos denominar de um universal situado. Seguindo aquilo que Renato Epifânio (Epifânio, 2018) registra sobre o pensar de Agostinho da Silva e da Filosofia Lusófona, isto é, só é possível que o universal do pensamento se manifeste situado. Portanto, as ideias do poema conseguem na beleza do crioulo cabo-verdiano exprimir uma intricada relação de constituição de uma dada cultura, que é a cabo-verdiana, mas que nela, dado a sua universalidade, poderemos pensar na cultura mais imediata que a da lusofonia e depois noutras culturas.
- Considerações finais
A poema Força de Cretcheu nos lança o desafio que fora posto por Eudoro de Souza:
Mas não há outro meio, outra mediação. E o processo tanto vale, ou tão pouco vale, para a poesia, como para qualquer outra das formas de arte. Por força da própria índole da linguagem racional, da própria estrutura do pensamento lógico-discursivo, o intérprete sempre terá de alegorizar, isto é, dizer sucessivamente outras coisas que todas são, ou melhor, tendem a ser, o que efetivamente, simbolicamente, já veio a ser a obra de arte. (SOUZA, 1973, p. 168)
Nos colocando no lugar nada confortável de apenas alegorizar e nada dizer do que já foi dito. Ainda que em linhas anteriores, o mesmo nos indica que a arte como “símbolo” deve ser interpretada, mesmo que alegorizando. Nossa ideia aqui, portanto, mais modesta, foi de indicar a relação entre o conceito que desprende dos termo cretcheu e de como Eugénio Tavares o articula na estrutura do poema Força di Cretcheu com dois outros conceitos. Nos parece, portanto, um exercício mais modesto que em termos pedagógicos nos serve para demostrar sobretudo aos alunos mais jovens como a filosofia pode nos tocar das formas mais vibrantes e alegres como nesse poema.
Damos por satisfeito, portanto, nessa indicação da possibilidade de transitarmos do logos joanino, naquele esforço do evangelista em estabelecer justamente que um princípio racional é que produz o real e que esse na perspectiva cristã nascente era o princípio da força do amor, para o logos da filosofia, como fundamento do real, do Ser, para uma poesia que de certo modo retoma uma sensação estética muito assente nas mentes dos falantes do crioulo que é o que seja cretcheu. Há para nós uma total possibilidade de tomar nesse contexto a Força di Cretcheu como estratégia pedagogia e estética de tratar de filosofia, para falar de logos e posteriorimente de todas reflexões estéticas em contextos como a fenomenologia existencialista de Heidegger, de Sartre, demonstrando ser produtiva essa aproximação entre literatura, filosofia e educação.
Enfim, como lançamos no título, A mística de fazer-se poema: Força di Cretcheu, o verbo se fazendo carne ao colocar essa ideia como sendo ela um tipo de amor, até mesmo maior que os amores particulares, estabelecendo insistente relação de um fundamento com o que é fundado no real, pensamos que o poema insiste em cada verso justamente nessa transição, como no próprio Evangelho de João podemos notar.
Referências Bibliográficas.
ARISTÓTELES. A Poética. Tradução, comentários e índices analítico e onomástico de
César, Constança Marconde. Liberdade e Reconhecimento. Revista Estudos Filosóficos no 11/2013 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ – São João del-Rei-MG
Dimas, Samuel Fernando Rodrigues. Synesis, v. 6, n. 1, p. 226-244 , jan/jun. 2014, ISSN 1984-6754
Epifânio, Renato. Agostinho da Silva e o conceito de Lusofonia. Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, V. 09; No. 01, 2018
Souza, Eudoro. São Paulo: Nova Cultural, 1987. v. 2. (Coleção Os Pensadores).
Loia, L. O Essencial sobre Eudoro de Souza. Lisboa
SOUSA, E. de. Dioniso em Creta e outros ensaios. São Paulo: Duas Cidades, 1973.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenego do Ocio dente / Edward W. Said ; traducáo Tomás Rosa Bueno. – Sao Paulo : Companhia das Letras, 1990.
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã: São Paulo: Estação Liberdade, 2010
[i] Logos vem do verbo legein, que quer dizer: contar, reunir, juntar, calcular. Ratio
vem do verbo reor, que quer dizer: contar, reunir, medir, juntar, separar, calcular. In: Chaui, M. 2001. Convite à Filosofia. p. 71
*Doutorando em Ciências das Religiões – Faculdade Unida de Vitória
Bolsista FAPES