Por: António Santos
Através das redes sociais tomei conhecimento que o CEMFA instaurou um processo disciplinar ao Promotor de Justiça do Tribunal Militar na sequência do inquérito ao acidente da Serra da Malagueta, esquecendo que o promotor público é autónomo e independente e que não funciona para “cumprir ordens”. E se realmente é verdade, é declaração de morte desse mesmo Tribunal.
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Com esta atitude, o CEMFA e o poder politico estão a colocar em causa a judicialização progressiva da vida pública, que coloca o poder judicial bem como o Ministério Público na primeira linha dos assuntos públicos, e em potencial conflito com o poder político e militar de forma muito distinta à que a sociedade cabo-verdiana estava habituada.
Evidentemente que a judicialização da vida pública não começou agora: é fruto de uma evolução importante na sociedade cabo-verdiana, para além de não ser uma dinâmica tipicamente ou unicamente de Cabo Verde. A judicialização da vida pública resultou naturalmente de várias alterações importantes, quer do lado da procura (isto é, da sociedade em geral), quer do lado da oferta (isto é, das magistraturas em particular). Do lado da procura, o crescimento da influência do Estado na sociedade e na economia gerou naturalmente mais conflitos, quer entre privados, quer entre os privados e o Estado que, mais tarde ou mais cedo, exigem uma resposta por parte dos tribunais.
É, por isso que se tem que defender o conceito: à justiça o que é da justiça. “À justiça o que é da justiça” significa que juízes, magistrados, tribunais não fazem política, só fazem direito. A justiça não fecha os olhos porque é inconveniente; e não persegue porque é conveniente. Não obedece ao poder, nem às maiorias, seja para punir, seja para esconder. A justiça é, ela própria, um poder, soberano, independente e imparcial.
A parte “à política o que é da política” e “aos militares o que é dos militares” significa que a política ou os militares não julgam pessoas nem factos no plano criminal ou noutro confiado aos tribunais, pois os juízos políticos ou militares são de outra natureza. É a outra face: a política e os militares não se substituem aos tribunais, nem neles se devem intrometer.
Perante estes factos, há que deixar a justiça funcionar e não tentar obstrui-la no TMI (Tribunal Militar Instância) porque quem não deve não tem razões para temer. O Código da Justiça Militar no capítulo III artigo 133 é bem claro: os atos dos membros do TMI, nos termos da Constituição, estão sujeitos a fiscalização e controlo do Conselho Superior da Magistratura Judicial, e não do CEMFA, por pertencer à organização dos tribunais nacionais (artigo 223 da Constituição cabo-verdiana).
Não existe qualquer norma que confira ao CEMFA autoridade sobre os membros do TMI e, por isso, qualquer atuação do CEMFA é ilegal e arbitrária. Não posso deixar de salientar que o Ministério Publico tem, por direito, defender os cidadãos, a legalidade democrática, o interesse público e os demais interesses que a Constituição e a lei determinam (artigo 225 da Constituição da República).